Muitas têm sido as manifestações contra o PL da Uberização (PLP 12/24) vindas de setores conservadores e neoliberais — entidades, movimentos e personalidades — e isto tem causado certa perplexidade em alguns setores da esquerda.

Jorge Luiz Souto Maior*

Já ouvi dizer que como estes segmentos estão se posicionando contrários ao PL, então o que cabe à esquerda é ser a favor. Uns admitindo que o apoio estaria vinculado à necessidade de se buscar algum aprimoramento, mas, por certo, sem alterar a essência; e, outros, concluindo, desde já, que o projeto apresentado foi o melhor que se pode fazer e o único capaz de ser aprovado nas condições adversas impostas pela composição ideologicamente desfavorável do Congresso.

Já outros, mais aderentes à base de sustentação política do governo, afirmam que os conservadores e neoliberais são contrários porque não querem admitir os grandes avanços preconizados no PL, no que diz respeito aos direitos garantidos aos trabalhadores. Dito de outro modo, a contrariedade de representantes desses vieses ideológicos seria prova suficiente do quanto é positiva a proposta apresentada pelo governo.

Não faltam também aqueles(as) que compreendem que a contrariedade de conservadores e neoliberais ao projeto não passa de ato político, oposição para enfraquecer o governo, advertindo que qualquer crítica ao PL, vinda de onde vier, representa forma de alimentar a oposição e enfraquecer o governo.

De outro lado, ainda no campo da esquerda, sustenta-se que a oposição ao PL é mero jogo de cena, fruto de oportunismo, qual seja, o de se colocar contra a proposta que, no fundo, atende aos interesses dos que se posicionam contrários, pois, com esta estratégia, buscam, de fato, evitar que, no debate congressual, a proposta ganhe rumos diversos daqueles que foram inicialmente pronunciados e até mesmo para que se possa ir além, no sentido da ampliação da regulação para proposta de outras categorias de trabalhadores e trabalhadoras.

Ao me deparar com todas essas avaliações, não tenho como deixar de reiterar as preocupações há muito (e de forma reiterada) manifestadas, no aspecto do quanto o raciocínio moldado pela lógica dos resultados, sobretudo quando induzido por cálculo eleitoral ou pela preocupação da manutenção da dita “governabilidade”, tem nos impedido de promover análises objetivas e debates efetivamente envolvidos e comprometidos com a construção de realidade social, econômica e política mais condizente com a condição humana, tomadas pelos pressupostos da liberdade e da igualdade reais.

O poder de reflexão é algo que exige ser exercitado. Na atrofia mental, esse se perde.

Debate de conteúdo
No estado de abstinência intelectiva todo tipo de raciocínio, mesmo desprovido de lógica ou empiria, incluindo os de cunho negacionista ou baseados em discursos de ódio, apresenta-se como válido e da mesma ordem de grandeza de qualquer outro.

Este, aliás, é o grande problema de se colocar, em primeiro plano, a defesa abstrata da liberdade de expressão, fazendo com que a preocupação com o conteúdo fique completamente fora das discussões.

A questão é que a censura, em si, não é promotora do conhecimento.

E o maior problema é que quando a preocupação com o conhecimento é desprezada ou afastada pela circunstância emergencial de se priorizar a criação de obstáculo ao advento de algo considerado ainda pior (lógica do mal menor), o compromisso com o real e a busca do saber se esvaem, sobretudo, quando, para cumprir esses objetivos, apresentam-se, como razoáveis e inexoráveis, argumentos retóricos e, assumidamente, falseados, desprovidos de lógica e coerência.

Este é o processo pelo qual o irracional tem apontado o que seria ainda mais irracional, para se fazer racional.

Tomando por base a política nacional há muito vigente, o Partido dos Trabalhadores, dentro da sua preocupação de se apresentar como partido de esquerda, mas que, concretamente, apoiado na estratégia de conciliação de classes, reproduz e reforça a lógica neoliberal que é de interesse da classe dominante, precisa da criação de ameaça conservadora, para se apresentar como o avanço possível.

Mas como esta é a própria lógica da sua existência, o PT necessita da nomeação de inimigo concreto e que represente efetiva ameaça. Foi assim que antes se alimentava do fantasma do PSDB, e, agora, é dependente do bolsonarismo.


O problema é que, neste contexto, a retórica ganha vida e a própria ameaça criada toma forma concreta e se retroalimenta toda vez que as argumentações falseadas para combate-la transparecem.

Quando o irracional dominante atrai novas irracionalidades, com as quais se rivaliza, o que se estabelece é 1 círculo vicioso em direção à barbárie. As guerras estão aí para demonstrar isso...

Desnaturalizar o absurdo
Os antagonismos, quando fogem de qualquer preocupação com o real e a produção do conhecimento, desenvolvendo-se no plano da conveniência e da dissimulação, estimulam a naturalização do absurdo.

Nesta roda que se move para trás, até mesmo os negacionismos, terraplanismos e discursos de ódio ganham força.

Quando se diz, por exemplo, que o autoritarismo é necessário para defender a democracia ou que qualquer ato e argumentos são válidos para combater o fascismo, o que se consegue é apenas atrair o autoritarismo e o fascismo para rivalidade no mesmo plano. Este, ademais, é o grande risco de conferir o título de herói a quem comete arbitrariedades em nome da defesa da democracia, deixando-se de lado, inclusive, a essencial discussão de que democracia, afinal, se está falando. Que democracia está sendo defendida, para quais sujeitos e com quais objetivos?

Os reais interesses da classe trabalhadora e os desafios para a construção de sociedade efetivamente justa, igualitária e humana não estão, definitivamente, incluídos neste debate.

Fragilidade ideológica
Fato é que, diante da fragilidade ideológica que direciona as ações e pensamentos do atual governo, o que se verifica é o aumento do risco de volta do fascismo, que, inclusive, se apresenta como defensor da liberdade.

E assim, numa aspiral de retrocessos, caminhamos em direção ao caos.

O PL da uberização e os argumentos para a sua defesa demonstram bem o processo em curso, como já destacado em vários outros textos.

Importa, agora, explicitar como a utilização estratégica da contrariedade de conservadores e neoliberais contra o projeto para defender o governo é forma ainda mais aprofundada desse “epstemicídio”.

Vale perceber que nas manifestações sobre a contrariedade conservadora e neoliberal ao PL, acima expostas, não há nenhuma tentativa de compreender as razões efetivas pelas quais a contrariedade se explicitou, da qual geraram, inclusive, mobilizações de rua de muitos motoristas.

Rejeição de qualquer grau de racionalidade
As reações às contrariedades rejeitam qualquer grau de racionalidade aos opositores e transferem para estes a sua própria racionalidade. Na lógica dos defensores do PL, se o PL avança em direitos e alguém é contra é porque ou não entendeu bem o PL ou o é porque quer sua intenção é impedir que os avanços sejam consagrados ou que o governo obtenha proveito político com a aprovação do PL.

Esta avaliação representa total abstinência analítica.

A primeira grande constatação que se precisa realizar e que explícita essa abstinência diz respeito ao movimento de colocar como mesmo objeto, PL e governo, fazendo com o que coloque em debate é a governabilidade e não a pertinência do conteúdo do PL.

O que importa, concretamente, é a discussão acerca do conteúdo do PL e seus possíveis efeitos na realidade concreta das relações de trabalho.

Mas, o que estas avaliações vislumbram é impedir desgastes à governabilidade. Então, nesta perspectiva passa a ser preciso dizer que as objeções ao PL são da mesma ordem, ou seja, que não dizem respeito ao conteúdo, ou que falseiam o conteúdo e se destinam, unicamente, à desestabilizar o governo.

A adoção desse método para desviar o foco do debate sobre o conteúdo pode ser constatada pelo fato de que as manifestações oficiais de defesa do PL tomam como alvo apenas os argumentos de conservadores e neoliberais, de modo a fazer transparecer que, de fato, a contrariedade é meramente ato político partidário.

Objeções apenas de conservadores e neoliberais
Veja-se que a nota das centrais sindicais, expedida em 5 de abril, “dialoga” apenas com as objeções vindas de conservadores e neoliberais, muito embora, inúmeros argumentos muito distintos contra o PL já tenham sido explicitados por acadêmicos(as), pesquisadores(as), juristas, sociólogos(as) e entidades e movimentos do mundo do trabalho, além de diversos trabalhadores e trabalhadoras, sobretudo, da categoria de entregadores (os quais não aceitaram a proposta de regulação do governo, cabe lembrar), todo(as) ligados(as) ao pensamento de esquerda.

Primeiro, a nota das centrais aprofunda o descompromisso com a realidade, quando diz, por exemplo, que “o trabalho autônomo, assim devidamente caracterizado, passa a ser considerado como uma relação de trabalho entre a empresa que opera o aplicativo e a pessoa que trabalha de forma autônoma”, como se a exclusão da relação de emprego, como todos os direitos daí consequente, fosse vantagem, ou que o PL garante “remuneração base de R$ 5.650”, quando, de fato, 3/4 desse valor, segundo os termos do próprio PL, destinam-se à reposição dos custos do trabalho, resultando em efetiva remuneração, pelo número de horas de trabalho indicado na referida nota, no importe de R$ 1.412.

Mas o mais grave mesmo, como dito desde o início deste texto, é a postura assumida de não tentar compreender as motivações, ligadas ao conteúdo, que levam conservadores e liberais a serem contrários ao projeto de lei que, como se sabe, atende aos interesses destes segmentos ideológicos.

Por certo, os defensores do PL não vão reconhecer isto e aí já se tem vício primário incontornável, que é motivador de todos os demais desvios de avaliação.

Relação de emprego
Ora, o PL ao negar o reconhecimento da relação de emprego e de, consequentemente, afastar a aplicação das garantias fixadas na CLT e em todas as demais normas trabalhistas, sobretudo, constitucionais, vai na direção do que neoliberais e conservadores vêm preconizando há décadas e que não conseguiram levar a efeito, nem mesmo na “reforma” trabalhista de 2017, apoiada pelo governo golpista de Temer, e no projeto da Carteira Verde e Amarelo, do governo ultraliberal e fascista de Bolsonaro.

Ocorre que os conservadores e neoliberais têm efetivas razões para se posicionarem contra o conteúdo do PL e a negação proposital dessa percepção é denunciadora de limitação que, gravemente, há muitos anos afeta certa parcela da esquerda brasileira.

Interrogações
Afinal, por que neoliberais e conservadores são contra o PL?

Eis a questão, que precisa de análise mais detida, pois algumas lições e apreensões podem ser dessa extraída, como veremos.

Primeiro, o fato de se colocarem contra projeto de lei que atende o seu ideário está relacionado a ideário que há muito foi abandonado por setor da esquerda e que acabou, de certo modo, sendo apropriado pela direita: a utopia.

Os governos conservadores e neoliberais têm sido radicais nas defesas de suas pretensões, chegando mesmo, muitas vezes, a falar em “revolução”. Fato é que estes segmentos, desde o enfraquecimento da utopia socialista, abandonaram a postura defensiva e passaram ao ataque declarado. Querem e buscam sempre mais: mais lucros; mais privilégios; mais irresponsabilidade social; mais opressão; mais exploração...

 Vínculo e direitos
Ou seja, o PL, ao não reconhecer o vínculo de emprego e afastar os direitos trabalhistas, é muito bom para os seus interesses, mas esses querem mais. Vale, inclusive, perceber que esta parte do PL não é objetada. O que se contraria são as proposições do PL em que se tentam, mesmo de forma bastante tímida, acoplar a algumas fórmulas de cunho social.

No entanto, tragicamente, a rejeição a essas vinculações é mais coerente que a sua defesa. Digo tragicamente porque esta situação acaba conferindo à direita, na balança dos argumentos, vantagem em termos de razoabilidade.

O PL e os argumentos de sua defesa são ruins também por isso.

Senão, vejamos.

Autonomia e valores neoliberais
O PL pronuncia que os motoristas são autônomos e ao se estabelecer este pressuposto o que se acolhe são os valores neoliberais clássicos da liberdade, do individualismo e do empreendedorismo. No entanto, de forma dissimulada, os trata como trabalhadores integrados à categoria que se deve mover por espírito de solidariedade e coletivamente, com o gravame de que a organização coletiva preconizada não é aquela que representa o efeito de movimento espontâneo da categoria e sim vinculação imposta de cima para baixo, a partir de estruturas pré-concebidas e que estão atreladas à lógica diversa das relações de emprego.

Essa previsão bipolar faz com que a rejeição à vinculação sindical aludida no PL tenha coerência e, isto, aí sim de forma estratégica, mas por culpa do próprio conteúdo do PL, alimenta e reforça a argumentação de direita contra os sindicatos, a sindicalização e a mobilização coletiva dos trabalhadores e trabalhadoras, já que o artificialismo e captura autoritária constituem a base da vinculação desenhada.

Além disso, se o PL reafirma aos motoristas que eles são geridos pela autonomia, expressão máxima da livre manifestação da vontade, estes, então, terão boas razões para acreditar que não lhes pode ser imposta contribuição social, valores pré-fixados do custo do trabalho ou mesmo limites de horas de trabalho.

A incoerência do PL, ao tratar dessa figura imaginária do “autônomo com direitos”, mas direitos que, na verdade, não representam inclusão social e melhora das condições de vida e de trabalho, no plano do que se tem constitucionalmente assegurado aos trabalhadores e trabalhadoras em geral, sendo, em verdade, limitações à livre manifestação da vontade, acaba conferindo motivos suficientes para que neoliberais e conservadores invoquem coerência e razoabilidade para extraírem do PL tudo (ainda que seja muito pouco ou quase nada) o que transborda da condição de autonomia.

Afinal, ao contrário das políticas institucionais desta esquerda burocratizada, guiadas há muito pela lógica do mal menor ou do circunstancialmente possível, a direita não se contenta com pouco.

Diferença de horizontes
E cumpre perceber essa trágica diferença de horizontes: esta parcela da esquerda diz que o PL é o máximo a que se pode chegar (e, concretamente, já são vários passos para trás); enquanto a direita, já tendo a seu favor) os passos dados pela esquerda, vislumbra passos a mais, até onde a ganância possa alcançar, mesmo que, para tanto, se destruam vidas e o próprio planeta.

Isso, aliás, nos obriga a explicitar o quanto são inviáveis os objetivos da direita. Por outro lado, não nos conduz a acreditar que apenas ser resistência à destruição possa ser o nosso horizonte para projeto de vida e de socialização.

No contexto das linhas de delimitação de horizontes previamente traçadas, da esquerda, já no máximo, e da direita, com campo a ser ampliado, o único resultado a que se pode chegar no processo legislativo, sobretudo se considerada a dita “correlação de forças no Congresso”, é da piora do PL, notadamente no aspecto da ampliação da mesma lógica de autonomia plena para outras categoriais de trabalhadores e trabalhadoras.

E o pior de tudo é que tendo em mente a governabilidade, baseada na conciliação de classes, o horizonte do mal menor, o desprezo à realização de análises críticas e o abandono das utopias, o que se anuncia é que poderão vir, pelas mãos do governo e com apoio de partidos de esquerda e de entidades sindicais de trabalhadores e trabalhadoras, outras iniciativas regulatórias com a mesma lógica do combate à CLT.

Talvez dessa maneira, quem sabe, o presidente Lula cumpra a sua promessa, feita na campanha, em mais um momento de descuido retórico, de revogar a “reforma” trabalhista, pois, com a aprovação do PL e a reverberação de sua racionalidade neoliberal pela voz das representações sindicais, em concreto, toda legislação trabalhista deixará de existir.

(*) Professor livre-docente de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (desde 2002); coordenador do GPTC (Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital); membro da Renapedts (Rede Nacional de Grupos de Pesquisa em Direito do Trabalho e da Seguridade Social); e juiz do Trabalho (desde 1993), titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí (SP), desde 1998.

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