OPINIÃO

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No domingo foram divulgadas notícias pelo site The Intercept dando conta de mensagens secretas trocadas entre membros do Ministério Público Federal componentes da operação Lava Jato. Entre estes, o antigo magistrado federal da 13ª Vara Criminal de Curitiba, Sergio Fernando Moro. As reportagens têm os seguintes títulos: “Deltan Dallagnol duvidava das provas contra Lula e de propina da Petrobras horas antes da denúncia do triplex; Procuradores da Lava Jato tramaram em segredo para impedir entrevista de Lula antes das eleições por medo de que ajudasse a ‘eleger o Haddad’; Moro sugeriu trocar a ordem de fases da Lava Jato, cobrou novas operações, deu conselhos e pistas e antecipou ao menos uma decisão, mostram conversas privadas ao longo de dois anos; e Como e por que o Intercept está publicando chats privados sobre a Lava Jato e Sergio Moro”(aqui).

Diversos aspectos chamam atenção, ante a gravidade do que foi revelado até o momento. O conteúdo das mensagens trocadas por Moro e integrantes do Ministério Público Federal na Lava Jato, reveladas pelo The Intercept parece ser verídico, a se tirar pela leitura das notas apresentadas pelo atual ministro da Justiça e pelos integrantes da força tarefa do MPF do Paraná. O teor das notas confirmam a veracidade das transcrições, uma vez que não foram desmentidas, ou falseadas, ao contrário, apenas normalizadas.

Na sua recente nota pública, diz o ministro da Justiça, que nas revelações do The Intercept “não se vislumbra qualquer anormalidade ou direcionamento da atuação enquanto magistrado, apesar de terem sido retiradas de contexto e do sensacionalismo das matérias, que ignoram o gigantesco esquema de corrupção revelado pela operação Lava Jato”. Com esta declaração, parece reconhecer a veracidade dos diálogos, mas imprime aos mesmos um verniz de normalidade, ou seja, para o Ministro, é normal que juízes e membros do Ministério Público combinem em segredo, longe da participação dialética da defesa, as estratégias de produção de prova (arrolamento de testemunha), de prolação de decisões (levantamento de sigilo).

A nota do MPF revela que alguns de seus “membros foram vítimas de ação criminosa de um hacker que praticou os mais graves ataques à atividade do Ministério Público, à vida privada e à segurança de seus integrantes”, tendo sido obtidas informações de “comunicação privada e no interesse do trabalho”, mas declara que os “dados eventualmente obtidos refletem uma atividade desenvolvida com pleno respeito à legalidade e de forma técnica e imparcial”.

Com essa declaração, os procuradores não atacam diretamente as mensagens, nem desmentem seu conteúdo na totalidade ou em parte, e, ao mesmo tempo, o descrevem como legal e normal.

Não se pode negar que tais conversas constituem provas ilícitas, e isto não pode ser relativizado, como, aliás, sempre queriam os integrantes da força tarefa. Basta ler suas propostas sobre os dez pontos contra a corrupção.

O problema é mais grave porque as conversas e acertos travados entre acusação e juízo violam a ordem jurídica constitucional e infraconstitucional vigente: afrontam a separação pretendida no sistema processual penal, entre muitas outras violações. Nesse ponto particular, deve-se ressaltar que decorre do texto constitucional que o Estado Democrático de Direito brasileiro adota o sistema acusatório, estabelecendo, este sistema a separação intransponível de funções na persecução penal, quais sejam: acusar, defender e julgar (vê-se aqui). No caso revelado pelo The Intercept, tem-se uma figura nefasta do magistrado inquisidor, soma de juiz com acusador (vê-se aqui)

A pretendida normalização deste fato por meio de argumentos meramente mediáticos e insistentemente reproduzidos obriga-nos a uma regressão de mais de seiscentos anos, para um processo penal como aquele descrito pelos monges alemães, autores do Malleus Malleficarum[1]. Mais: o tratamento que ao assunto recente tem recebido na mainstream media é revelador da assimetria de publicidade e destaques sempre em favor da força tarefa da Lava Jato e de seu antigo juiz, em aberta desvantagem aos denunciados, conduzidos coercitivamente, sentenciados, delatores etc.

A ironia da história nada perdoa. O chamado “projeto anticorrupção” - PL 4850/2016 – foi aprovado no dia 30 de novembro de 2016 pela Câmara de Deputados, e dentre as medidas previstas pelo projeto a serem adotadas contra a corrupção, estão algumas propostas de “alterações no capítulo do Código de Processo Penal que trata de nulidades, com o objetivo de que a anulação e a exclusão da prova somente ocorram quando houver uma efetiva e real violação de direitos do réu”.

Essa relativização da ilicitude da prova não opera apenas em favor de ocorrências episódicas de juízes e membros do Ministério Público, mas também em favor do réu.

Assim, pelo projeto, pode-se imaginar poder relativizar o episódio do levantamento do sigilo da interceptação telefônica entre o ex-presidente Lula e a então presidenta Dilma, em que o atual Ministro da Justiça não viu “maior relevância”.

Certamente, por outro lado, as mesmas propostas podem ser utilizadas pela defesa para relativizar a ilicitude da prova colhida e apresentada pelas reportagens do The Intercept.

Segundo a proposta anticorrupção apresentada pelo Ministério Público Federal[2], a ilicitude da prova poderia ser excluída se obtida, por exemplo, em estrito cumprimento de dever legal exercidos com a finalidade de obstar a prática atual ou iminente de crime ou fazer cessar sua continuidade ou permanência.

As informações trazidas pelo The Intercept poderia ser consideradas um dever do jornalista, que estaria em estrito cumprimento ao que estatui o art. 9º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, [3] especialmente de divulgar todos os fatos que sejam de interesse público e combater e denunciar todas as formas de corrupção.

Também se pode olhar sob o viés de exercício do direito ao acesso à informação, que é público e “inerente à condição de vida em sociedade, que não pode ser impedido por nenhum tipo de interesse”, conforme o Código de Ética, e assim enquadrqado em outra exclusão de ilicitude da prova previsto na proposta, que seria “exercício regular de direito próprio, com ou sem intervenção ou auxílio de agente público”.

Certamente não se pode negar a relação direta que guarda as mensagens apresentadas pelo The Intercept com os desdobramentos da operação Lava Jato e muitas pessoas investigadas, acusadas e até condenadas. O caso mais notório é o do ex-Presidente Lula, que, inclusive, tem questões processuais citadas diretamente pelas conversas. A obtenção das provas pela provável via de ataque de hackers também poderia ser relativizada se fosse utilizada para “provar a inocência do réu ou reduzir-lhe a pena”, ou , ainda, “em legítima defesa (..) terceiros”.

Assim, com fundamento na proposta legislativa apresentada e apoiada pelo Ministério Público Federal, e invocando como premissa de análise as palavras proferidas pelo Procurador chefe da Operação Lavajato em seu Twitter , parafraseando o advogado Rene Dotti, assistente de acusação no caso Lula, de que, no caso de eventual conflito entre o direito à privacidade e o direito à infirmação sobre crime grave, deve prevalecer o interesse público, verificamos que o ex-presidente Lula teria seu processo ab initioanulado por parcialidade do juízo, senão fosse de fato completamente absolvido por ausência de provas, pois as que foram apresentadas e serviram como base da condenação estão aparentemente maculadas de nulidade.

O que o episódio tem revelado, por fim, nada mais foi do que a partidarização de instituições, para a consecução de um objetivo político. Não há mais nada o que se dizer sobre o grau de compromisso negativo perante a sociedade a recair sobre Ministério e Público e Poder Judiciário. Por outro, a resposta do Estado Democrático de Direto haverá de vir destas mesmas instituições, que devem respeitar a Constituição e as leis, a fim de apurarem não somente o que efetivamente ocorreu, com provas e ampla defesa, mas ainda de corrigirem rapidamente as arbitrariedades cometidas.

[1] KRAMER, H. e SPRENGER, J. Malleus Maleficarum: “O Martelo das Feiticeiras”. Paulo Fróes (trad.). 26ª ed. Rio de Janeiro, Rosa dos Ventos

[2] “Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação de direitos e garantias constitucionais ou legais. § 2º Exclui-se a ilicitude da prova quando:

VI – obtida em legítima defesa própria ou de terceiros ou no estrito cumprimento de dever legal exercidos com a finalidade de obstar a prática atual ou iminente de crime ou fazer cessar sua continuidade ou permanência;

VIII – necessária para provar a inocência do réu ou reduzir-lhe a pena;

IX – obtidas no exercício regular de direito próprio, com ou sem intervenção ou auxílio de agente público;”.

[3] Art. 9° – É dever do jornalista:

– Divulgar todos os fatos que sejam de interesse público;
– Lutar pela liberdade de pensamento e expressão;
– Defender o livre exercício da profissão;
– Valorizar, honrar e dignificar a profissão;
– Opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem;
– Combater e denunciar todas as formas de corrupção, em especial quando exercida com o objetivo de controlar a informação;
– Respeitar o direito à privacidade do cidadão;
– Prestigiar as entidades representativas e democráticas da categoria;

Jorge Bheron Rocha é defensor público do estado do Ceará, professor de Direito e Processo Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e doutorando em Direito Constitucional.

Martonio Barreto Lima é professor titular da UNIFOR.

Revista Consultor Jurídico