"Importa dizer que a condição de pobreza imposta aos grupos sociais mais vulneráveis é de fato uma decisão política tomada na surdina do poder. Aponta o fracasso de nossa democracia inacabada e especialmente reescreve a ditadura da opressão internalizada pela linha da desigualdade, pelo aprofundamento da exclusão social, até finalmente se revelar no flagelo da fome", escreve Rafael dos Santos da Silva, Professor da Universidade Federal do Ceará - UFC e Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra-PT. 

Eis o artigo. 

Observar o cinismo da pobreza me faz regressar ao pensamento do iluminista inglês François Marie, popularmente conhecido por Voltaire. Para este pensador “o conforto dos ricos depende de uma oferta abundante de pobres.” Pois bem, é desconfortável identificar que no Brasil quase 30% da população encontram-se afetados por algum tipo de pobreza na renda, 7% deles estão no Ceará. É o que revela o IBGE a partir do seu mais recente relatório de Indicadores Sociais, publicado na última Pnad-continua.

Para entender esse resultado é preciso pensar as raízes do problema e imaginar que o Brasil sempre foi marcado pela pobreza material do seu povo. Desde as caravelas que operavam nestas terras um modelo econômico baseado no patriarcado e no colonialismo. Esses dois elementos foram centrais para se estabelecer aqui uma espécie de capitalismo dos trópicos, onde o gênero masculino (patriarcado) e a concentração da riqueza (colonialismo) tudo podia para garantir o enriquecimento fácil e ilícito.

Importa dizer que a condição de pobreza imposta aos grupos sociais mais vulneráveis é de fato uma decisão política tomada na surdina do poder. Aponta o fracasso de nossa democracia inacabada e especialmente reescreve a ditadura da opressão internalizada pela linha da desigualdade, pelo aprofundamento da exclusão social, até finalmente se revelar no flagelo da fome.

Com o tempo o capital modernizou sua estrutura, mas não sua substância. A redenção das pessoas escravizadas não reparou o estrago social da escravidão. A abolição mal acabada resultou no analfabetismo estrutural; em parcas infraestruturas sanitárias; em moradias precárias. Em outras palavras, a república chegou sem o apelo da coisa pública. Como resultado as periferias das cidades foram ganhando contornos inumanos.

Por consequência, sempre tivemos problemas em radicalizar a democracia. Todos os esforços ocorria para que não passássemos de uma “sociedade civilizada”, bem expressa no horrível dizer de Gilberto Freyre; uma “democracia racial.” A ausência da democracia entre nós teve consequências gravíssimas quanto ao acesso a direitos sociais, civis e políticos. A cidadania no Brasil sempre foi assunto de segunda ordem e até a simples democracia eleitoral fora instrumentalizada para perpetuar o poder da elite econômica. Basta lembrar a experiência em 1964, e mais recentemente em 2016. Na melhor expressão de Jacks Rancière, alimentamos historicamente um letal “ódio a democracia” O primeiro sintoma de uma sociedade democraticamente esfacelada é o aumento da pobreza. Este é o caso do Brasil, sobretudo depois que sua classe política reformou a previdência, as leis trabalhistas e impôs o mais severo teto aos gastos públicos evitando investimentos em áreas essenciais à cidadania.

A reforma do trabalho causou redução nos ganhos médios dos trabalhadores e lhes impôs a modalidade do trabalho intermitente. A reforma da previdência evitou acesso a direitos historicamente consagrados. Tudo isso somada a redução dos gastos públicos, com boa razão podemos lembrar a expressão de Darcy Ribeiro, para quem a questão social no Brasil virou um “moinho de gastar gente”

A tragédia não para! Soma-se aos fatos acima a maior pandemia sanitária já enfrentada no mundo, e principalmente: a incompetente, covarde e sorrateira gestão do planalto central. Essa realidade produziu como resultado os piores números relativos à pobreza como passo a apresentar a seguir:

Antes importa entender que a pobreza é um estágio de privação das necessidades básicas que em última instância, retira do indivíduo a capacidade de se relacionar socialmente. Nesse cenário há insuficiência das condições de acessar elementos materiais da cidade, como infraestrutura básica, trabalho, educação, mobilidade, saúde, segurança e etc. Várias escolas associam essa fase à ausência da cidadania. Ou seja, a pobreza como uma profunda síntese da injustiça social.

Compreender a dimensão da pobreza exige ainda dimensionar o problema da insegurança alimentar. Nesse campo a principal contribuição vem da Rede Persan que em 2022 alertou para o crescimento do grupo das pessoas expostas à fome. Segunda a pesquisa intitulada “Olhe para a Fome” são mais de 33 milhões de brasileiros expostos a condição famélica, e 125 milhões são afetados por algum tipo de insegurança alimentar.

Contudo, outras escolas entendem que o recorte da renda é suficiente para entender a pobreza. Essa linha de raciocínio argumenta que uma vez possuindo renda, todos os outros acessos ficam garantidos. Não concordamos totalmente com essa visão, mas é preciso aceitar que tal método se revela pedagógico por facilitar leitura. Pois bem, tomando a renda como referência, os últimos dados do IBGE apontam que no mesmo Brasil, onde se assistiu a ascensão de 40 novos bilionários durante a pandemia, viu também a chegada de 17,9 milhões de pessoas na extrema pobreza. Este grupo teve um aumento de 48,2%, sendo 46,2% composta por crianças e 37,7% por pessoas negras e pardas. Ainda consta que 44,9% da população do Norte, e 48,7% do Nordeste vivem na pobreza. De modo geral, o aumento é assustador, e apesar de se tratar do perfil renda, revela as entranhas de um país desigual.

No Ceará, as pessoas afetadas pela extrema pobreza chegam a 1,4 milhão. Esse número representa 15% da população local. Se comparado ao ano anterior que era 9,3%, o salto é injustificável. O Estado ainda amarga 27,3% com renda inferior até U$ 3,2, enquanto 46,8% não alcançam renda à U$ 5,50. Com isso é correto afirmar que 4.319.84 milhões de cearenses estão afetados por algum nível de pobreza na renda. Uma tragédia!

De modo geral, esses resultados determinam por assim dizer o fracasso dos Objetivos do Milênio levantado pelas Nações Unidas, especialmente em seus objetivos 1 e 2, quando se propôs acabar, pela metade, a pobreza, e erradicar a fome até 2030. Nessa toada, as metas não serão cumpridas, mas revelam o cinismo da pobreza.

Entretanto, uma notícia alvissareira ecoa na grande mídia. Ela dá conta de um Projeto de Emenda Constitucional – PEC da transição - proposta pelo presidente eleito Lula da Silva, visa retirar do teto dos gastos públicos os investimentos aos mais vulneráveis. Estimado em R$ 190 bilhões, mesmo a contra gosto da “Faria Lima”, os valores funcionarão como amortecedores da desigualdade, e principalmente da fome. Com esse pouco dinheiro será possível realocar o pobre no orçamento público. Associado a isso, volta a pulsar nas periferias das capitais, iniciativas coletivas de enfrentamento a fome e fortalecimento da democracia. O papel dos movimentos sociais nesse novo cenário político será determinante para recuperar o espaço perdido. Será preciso caminhar com o governo, disputar o orçamento público e colocar a democracia em movimento. Será preciso erguer-se novamente após um longo e tenebroso inverno.

Finalmente, é preciso reafirmar que a pobreza em todas as suas dimensões é resultado de uma decisão política tomada por um conjunto da sociedade a partir do sequestro da democracia. Diante dessa realidade enfatizamos que somente decisões igualmente políticas, coletivas e racionais poderão realizar seu real enfrentamento. Qualquer caminho que não aponte para o seu fim é por definição um cinismo plutocrata. Porém, qualquer inciativa que a enfrente precisa ser recebida com o entusiasmo de que um país rico é um país sem pobreza!!!

IHU-UNISINOS

https://www.ihu.unisinos.br/624645-o-cinismo-da-pobreza-no-brasil