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No Uruguai, o 1% mais rico recebe ingressos similares aos 50% mais pobres

Como é possível que o 1% mais rico, aproximadamente 23.000 pessoas, ganhem quase o mesmo que os 50% mais pobres, 1.15 milhão de pessoas? O 0,5% capta mais renda que os 40% mais pobres e o 0,1% um pouco menos do que recebem os 30% mais pobres.” A reflexão é de Antonio Elias, em artigo publicado na revista uruguaiaVoces, 03-04-2014. A tradução é de André Langer.

 

Eis o artigo.

Uma nova medida de distribuição da renda aplicando uma metodologia que incorpora registros tributários demonstra que a desigualdade e a concentração de renda, para o período 2009-2011, são muito maiores que as estimadas em base às Pesquisas Contínuas de Domicílio.

 

1. Introdução

Em diversas oportunidades pesquisadores e analistas questionaram estatísticas oficiais, em particular quando estas se referiam a temas socialmente importantes como a distribuição de renda; nível de desemprego; evolução do salário e inflação. Com efeito, as estimativas estatísticas têm importantes limitações devido, basicamente, a problemas metodológicos, insuficientes fontes de informação, erros derivados do próprio processo de medição-observação, questionário e informante – e problemas de agregação. O que coloca em questão a exatidão e a precisão das estatísticas e indicadores econômicos, particularmente os que são elaborados com base em pesquisas.

 

As estatísticas baseadas em registros administrativos teriam uma margem de erro menor, se bem que podem ser afetadas – como no caso dos registros de impostos – por problemas de evasão e desvios facilitados pelos processos de liberalização e desregulação da economia.

 

As estatísticas permitem uma aproximação à realidade econômica, maior ou menor, e servem para tomar decisões e avaliar os resultados das políticas. Por esta razão, é fundamental manter um espírito crítico em relação às mesmas para que sejam cada vez mais precisas e evitar que sejam manipuladas e utilizadas como instrumento legitimador das políticas econômicas implementadas e/ou para modificar índices utilizados como instrumentos de política econômica.

 

Um exemplo recente de manipulação das estatísticas é a diminuição da taxa de variação do IPC – modificando itens com alta ponderação como, por exemplo, a energia elétrica com o Plano UTE Premia – no momento em que devem ser reajustados os salários. Esta é uma política regressiva de distribuição da renda que se aplicou em dezembro de 2012 e 2013.

 

É óbvio que a instrumentalização das estatísticas com fins políticos e econômicos não é uma novidade, nem é patrimônio de nenhum setor ou ideologia. As limitações assinaladas no sistema estatístico oficial não colocam em questão a honestidade intelectual e a dedicação dos profissionais e trabalhadores encarregados dessa tarefa.

 

Nesta nota são apresentadas estimativas e análises estatísticas extraídas de uma recente pesquisa realizada pelo Instituto de Economia da Faculdade de Ciências Econômicas e de Administração que traz elementos metodológicos e instrumentais para ampliar o conhecimento sobre a distribuição da renda no Uruguai. Em “Desigualdade e Altas Rendas no Uruguai”, elaborado por Gabriel Burdín, Fernando Esponda e Andrea Vigorito estima-se a distribuição da renda por pessoa para o período 2009-2011 utilizando uma metodologia baseada nos microdados tributários do imposto de renda da pessoa física obtidos pela DGI que permite captar de maneira muito melhor as rendas do capital.

 

2. Os instrumentos para medir a distribuição da renda

 

Em nosso país [o Uruguai] a medição oficial da distribuição da renda é realizada pelo Instituto Nacional de Estatística utilizando os dados da Pesquisa Contínua de Domicílio. Esta estimativa foi questionada reiteradamente porque subestima as rendas do capital e, portanto, mostra uma distribuição de renda muito mais progressiva do que é na realidade. A pesquisa que estamos analisando estima a distribuição pessoal da renda com base nas fontes de informação que permitem superar, ao menos parcialmente, algumas das dificuldades do sistema de pesquisas. Para isso utilizaram os microdados dos registros tributários do Imposto de Renda das Pessoas Físicas e do Imposto de Assistência à Seguridade Social para o período 2009-2011.

 

No trabalho do Instituto de Economia analisa-se a desigualdade, com ênfase na participação dos setores de maiores rendas relativas (1%, 0.5% e 0.1% superior) e estuda-se a progressividade e capacidade redistributiva dos impostos sobre a renda. Estas estimativas são comparadas com aquelas obtidas utilizando a Pesquisa Contínua de Domicílio, principal fonte de informação dos estudos desta natureza realizados no país até agora.

 

Para isso, compatibilizam-se ambas as fontes de informação com base em uma definição de renda primária ou de mercado (rendas do trabalho, do capital e aposentadorias) em nível de pessoas. Com essa finalidade, os autores comparam o número de recebedores, os montantes de rendas e impostos pessoais e a distribuição da renda das Pesquisas Contínuas de Domicílio com a informação proveniente do registro administrativo da DGI, com especial ênfase nas fontes de trabalho e nas rendas altas: estuda-se a participação na renda total do 1, 0.5 e 0.1% das pessoas de rendas maiores. Para compatibilizar as duas fontes de informação consideraram as rendas da Pesquisa Contínua de Domicílio assimiláveis aos cobertos pelo registro da DGI (rendas de trabalhadores formais, rendas do capital e passividades), que correspondem com a definição da renda primária ou de mercado.

 

No estudo não se incluiu a imputação pelo seguro de saúde para os trabalhadores formais ou seus dependentes, como é feito no INE.

 

Os microdados do registro administrativo da DGI utilizados na pesquisa foram preparados especialmente a partir das bases de dados com as rendas das Categoria I (exceto juros), Categoria II e aposentadorias e pensões, unificados a nível de contribuinte do Imposto de Renda das Pessoas Físicas e do Imposto de Assistência à Seguridade Social.

 

Para as rendas do trabalho, dado que o BPS é a unidade de retenção, dispuseram de informações de todas as pessoas que contribuem para o sistema de seguridade social, independentemente de se tributam ou não o Imposto de Renda das Pessoas Físicas. Da mesma maneira, contou-se com informações de todas as pessoas que recebem aposentadorias e pensões. No caso das rendas do capital, dispôs-se de informações para os recebedores de rendas gravadas de caráter nominal.

 

Na medida em que a Pesquisa Contínua de Domicílio contém declarações de rendas líquidas dos trabalhadores, para fazer uma comparação com os dados fornecidos pela DGI, estas rendas líquidas foram convertidas em rendas nominais. No documento assinalam-se aspectos que não podem ser compatibilizados diretamente, que é o caso dos trabalhadores independentes que cotizam para a seguridade social e não é possível identificar se corresponde tributar por retiro de utilidades em categoria I ou se as rendas retiradas devem ser consideradas como categoria II; da mesma forma também não é possível identificar se estes trabalhadores contribuem para a seguridade social pela totalidade das suas rendas.

 

3. Alguns resultados

 

Dada a grande quantidade de quadros e gráficos que integram o documento selecionamos, para este primeiro momento, aqueles dados apresentados pela Pesquisa Contínua de Domicílio e da DGI, sem nenhum tipo de ajuste, para compará-los entre si e incorporamos no quadro a informação de distribuição da renda por domicílio elaborado e publicado pelo INE.

 

“A desigualdade aqui calculada é notoriamente diferente da que habitualmente se calcula com base na Pesquisa de Domicílio, pois estima-se com base na renda nominal autônoma. Além de basear-se em rendas líquidas, nessas estimativas considera-se a totalidade da fonte de rendas somadas e divididas entre o número de membros do domicílio. Deve-se recordar que aqui se considera cada recebedor de renda como a unidade de análise” (p. 31).

 

1. Distribuição da renda total por decil

 
                       
   

2009

     

2010

     

2011

 

Percentil

Perceptores

Hogares

 

Perceptores

Hogares

 

Perceptores

Hogares

 

DGI

ECH

ECH

 

DGI

ECH

ECH

 

DGI

ECH

ECH

                       

Decil 1

0,5

1,5

2,2

 

0,5

1,7

2,4

 

0,6

1,7

2,4

                       

Decil 2

1,7

2,6

3,5

 

1,8

2,8

3,7

 

1,9

2,8

3,9

                       

Decil 3

2,7

3,7

   
   

4,6

 

2,7

3,9

4,8

 

2,7

3,8

5

                       

Decil 4

3,5

4,7

5,6

 

3,6

5,1

5,8

 

3,7

5,1

6,1

                       

Decil 5

4,8

6,3

6,8

 

4,8

6,2

6,9

 

5

6,4

7,2

                       

Decil 6

6,3

7,1

8,1

 

6,4

7,8

8,2

 

6,6

7,8

8,5

                       

Decil 7

8,6

9,3

9,7

 

8,6

9,3

9,8

 

8,7

9,3

10,1

                       

Decil 8

11,7

11,7

11,8

 

11,7

11,9

12,1

 

11,7

12,3

12,2

                       

Decil 9

17,1

16,3

15,8

 

17,0

16,4

15,8

 

16,8

16,7

15,8

                       

Decil 10

43,1

36,8

31,9

 

43,0

34,8

30,5

 

42,3

34,2

28,8

Fonte: Elaborado pelo autor com base no INE “Estimación de la pobreza por el Método del Ingreso 2012”, cuadro 23 y a "Desigualdad y altos ingresos en Uruguay”, quadros 13, A3.2 e A3.3.

                       

 

Os autores do trabalho assinalam que “a distribuição da renda por decis mostra uma maior concentração da renda nos estratos superiores no registro administrativo da DGI do que na Pesquisa Contínua de Domicílio. A concentração no decil superior na DGI supera em 20% o valor observado na Pesquisa Contínua de Domicílio” (p. 29 e 30).

 

A diferença é muitíssimo maior em relação à informação apresentada pelo INE. Por exemplo, em 2011, os domicílios do decil superior captam 28,8% das rendas e os dados da DGI, que consideram que cada recebedor de renda é uma unidade de análise, captam 42,3%. Neste último caso as rendas do primeiro decil são maiores que a soma dos oito decis inferiores e são 70 vezes superiores ao decil mais pobre.

 

Nas medições baseadas na Pesquisa Contínua de Domicílio as rendas do decil superior são muito menores e a participação dos setores mais pobres é muito maior. A título de exemplo, o decil inferior recebe 0,6% com a informação da DGI e 2,4% no cálculo do INE baseado nas Pesquisas Contínuas de Domicílio. Além disso, o decil superior é 12 vezes maior que o decil inferior (28,8% dividido 2,4%).

 

Os níveis de desigualdade apresentados no quadro 2 evidenciam o alto nível de concentração da renda, o que confirma os questionamentos realizados entre outros, por Jorge Notaro e a Rede de Economistas da Esquerda do Uruguai.

 

2. Altas rendas em relação às rendas dos deciles mais baixos

             
   

2009

 

2010

 

2011

Percentil

Perceptores

 

Perceptores

 

Perceptores

 
 

DGI

ECH

DGI

ECH

DGI

ECH

             

1% Superior

12,8

10,2

13,2

8,5

13,2

10,2

             

0,5% Superior

9

6,9

9,4

5,4

9,5

6,9

             

0,1% Superior

4,2

2,7

4,4

1,9

4,6

2,7

             

50% menor

13,2

18,8

13,4

19,7

13,9

19,8

             

40% menor

8,4

12,5

8,6

13,5

8,9

13,4

             

30% menor

4,9

7,8

5

8,4

5,2

8,3

             

20% menor

2,2

4,1

2,3

4,5

2,5

4,5

             

Fonte: Elaborado pelo autor com base em "Desigualdad y altos ingresos en Uruguay", quadros 13, A3.2 e A3.3.

 

Os dados apresentados no trabalho são impactantes e merecem uma profunda reflexão: como é possível que o 1% mais rico, aproximadamente 23.000 pessoas, ganhem quase o mesmo que os 50% mais pobres, 1.15 milhão de pessoas? O 0,5% capta mais renda que os 40% mais pobres e o 0,1% um pouco menos do que recebem os 30% mais pobres.

 

O total de pessoas consideradas corresponde à população com 20 anos ou mais.

 

Com os dados da Pesquisa Contínua de Domicílio, que subestima as rendas mais altas, a concentração é um pouco menor, mas é igualmente muito grande: o 1% mais rico concentra 10,2% da renda, mais que os 8% que recebem os 30% mais pobres.

 

Por último, vejamos no quadro 3 as diferenças de nível que adquire o índice de Gini segundo a metodologia que se utilize. Deve-se ter em conta que quanto menor for o valor do índice de Gini menor será a desigualdade da renda.

 

3. Índice de desigualdade da renda

 
 

2009

 

2010

 

2011

 
 

DGI

ECH

DGI

ECH

DGI

ECH

Gini

0,57

0,488

0,568

0,474

0,559

0,457

             

Fonte: Elaborado com base no quadro 15 de "Desigualdad y altos ingresos en Uruguay".

 

 

Os autores afirmam que: “Em termos de desigualdade, observam-se também diferenças significativas entre o registro da DGI e a Pesquisa Contínua de Domicílio compatibilizada e por fontes de renda (Quadro 15). A desigualdade aqui calculada é notoriamente diferente da que habitualmente se calcula com base na Pesquisas em Domicílios” (p. 31). Os valores do índice de Gini estimados pelo INE com base na Pesquisa Contínua de Domicílio foram os seguintes: 0,432 (2009); 0,421 (2010) e 0,401 (2011).

 

Os resultados apresentados, neste primeiro momento, mostram que a distribuição da renda é mais regressiva que o reconhecido até agora, que há uma maior concentração da renda no decil superior e que o percentil das rendas mais altas aumenta sua participação no período.

 

Verifica-se, por sua vez, o que se colocou no começo desta nota: a metodologia e os instrumentos utilizados para representar a realidade econômica podem gerar resultados estatísticos muito diferentes entre si. Neste caso, a pesquisa realizada pelo Instituto de Economia traz elementos substanciais para conhecer os níveis de desigualdade e a concentração da renda nos estratos superiores.

 

Nota: Gabriel Burdín, Fernando Esponda e Andrea Vigorito; “DESIGUALDAD Y ALTOS INGRESOS EN URUGUAY. Un análisis en base a registros tributarios y encuestas de hogares para el período 2009-2011”, Instituto de Economía-FCEA, Janeiro, 2014.

 

 

Fonte: IHU, 17 de abril de 2014

 

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