Uma lista com dez medidas sugeridas pelo MPF (Ministério Público Federal) para o combate à corrupção desperta polêmicas.
De um lado, ganha o apoio de quem vê chances de mudanças na impunidade.
Na outra ponta, recebe críticas entre os que temem excessos entre agentes da lei.
Conheça, a seguir, uma opinião contrária ao pacote e as medidas propostas pelo MPF.
As 10 medidas propostas por membros do Ministério Público não objetivam combater a corrupção. Querem só mudar o direito para punir mais e mais rapidamente.
Deixando de lado a retórica moralista e os eufemismos utilizados nessa campanha, a lista de medidas propostas é de uma nota só: aumentam os poderes do Ministério Público; criam-se novos crimes; aumentam penas dos atuais; alonga-se a prescrição; diminuem as nulidades do processo; autorizam-se provas ilícitas; limita-se o habeas corpus; os réus perdem direitos, notadamente a presunção de inocência; os juízes podem condenar com menos provas.
Medidas inspiradas no princípio da justiça medieval: "na dúvida, contra o réu".
Nesse caso, o punitivismo contraria garantias constitucionais. A nossa Carta Magna edificou uma fortaleza de civilidade e de moderação penal. Proibiu a utilização de provas que foram colhidas de maneira ilícita.
Rejeitou não só a pena de morte, mas também a prisão perpétua, considerando primordial a vida e a liberdade do condenado. Proibiu a punição antes do trânsito em julgado, e reconheceu aos réus uma extensa lista de direitos.
Alguém pode discordar dessa opção que protege os inocentes, mesmo correndo o risco de não punir os culpados.
Mas não pode ignorar que é a opção feita pela Constituição que todos, começando pelos integrantes do Poder Judiciário, devem observar, mantendo íntegras suas garantias contra as sirenes do punitivismo.
Junto à inconstitucionalidade das dez medidas temos sua ineficiência. A corrupção política nasce em estruturas partidárias e empresariais que se alimentam da União dos poderes político e econômico. Essas estruturas monetarizam a democracia, desprezando a legalidade e a moralidade.
Enquanto permanecem, a perseguição desse ou daquele indivíduo não mudará nada na corrupção sistêmica.
Não se elimina a Hidra de Lerna cortando uma de suas cabeças. Quem diz que punições mais severas acabarão com a corrupção está iludindo a população. Exatamente como faz quem vê no agravamento das sanções penais a solução para erradicar o tráfico de drogas, a violência contra as mulheres, a brutalidade policial ou a degradação ambiental.
As dez propostas são punitivistas em campos nos quais o direito penal é ineficiente. Isso transforma o punitivismo em proposta populista, um discurso radical sem benefício real.
O ministro do Supremo Tribuna Federal Gilmar Mendes usou palavras duras contra os idealizadores dessa campanha. Podemos discordar das expressões, mas devemos reconhecer que ele defendeu a substância do constitucionalismo penal brasileiro.
DIMITRI DIMOULIS é professor de direito constitucional da Escola de Direito de São Paulo da FGV.
AS DEZ MEDIDAS DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Pacote enviado ao Congresso é composto por 20 anteprojetos de lei que se apoiam em dez eixos
1) Prevenção à corrupção, transparência e proteção à fonte de informação
Ações práticas: Criar testes de integridade, com simulações de suborno sem o agente público saber. Ministério Público passa a garantir o sigilo da fonte
O que diz o MPF: Testes são incentivados pela ONU e úteis em alguns países. Ninguém será condenado com base apenas na palavra de um informante confidencial
Argumentos contra: A ONU só apoia testes em países com leis para regulá-los; sigilo não permite ao investigado confrontar versão, diz Renato Vieira, do IBCCrim
2) Criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos
Ações práticas: Tornar crime o enriquecimento ilícito, com pena de 3 a 8 anos de prisão, mas passível de substituição no caso de delitos menos graves
O que diz o MPF: A criminalização garante que o agente não fique impune até quando não for possível descobrir ou comprovar os atos específicos de corrupção
Argumentos contra: —
3) Aumento das penas e crime hediondo para corrupção de altos valores
Ações práticas: Subir a pena para corrupção de 2 a 12 anos para 4 a 12 anos. Escaloná-la segundo o valor desviado, indo de 12 a 25 anos se passar de R$ 8 milhões
O que diz o MPF: As penas aplicadas são normalmente inferiores a quatro anos e perdoadas depois do cumprimento de um quarto. Assim, crime compensa
Argumentos contra: "O juiz já pode fixar pena acima de quatro anos. Eles [do MPF] precisam tentar mudar a mentalidade dos juízes, e não mudar a lei", diz Vieira
4) Aumento da eficiência e da justiça dos recursos no processo penal
Ações práticas: Executar a condenação quando for reconhecido abuso do direito de recorrer; executar pena após condenação em segunda instância
O que diz o MPF: Ações com réus de colarinho branco demoram mais de 15 anos em tribunais após a condenação, pois as defesas protelam até a prescrição
Argumentos contra: Há condenações revistas em tribunais superiores, diz Hugo Leonardo, do IDDD; o direito ao recurso não pode ser considerado como abuso
5) Celeridade nas ações de improbidade administrativa
Ações práticas: Criar varas, câmaras e turmas especializadas para julgar ações de improbidade administrativa e ações decorrentes da lei anticorrupção
O que diz o MPF: Ações de improbidade são mais complexas e, nas varas comuns, são deixadas de lado pelos juízes, que agilizam antes os casos mais simples
Argumentos contra: —
6) Reforma no sistema de prescrição penal
Ações práticas: Mudar Código Penal para, entre outras coisas, evitar que o prazo para prescrição corra enquanto se espera julgar recursos ao STJ e ao STF
O que diz o MPF: Estudo recente mostra que, entre 2010 e 2011, a Justiça deixou prescrever 2.918 ações de corrupção, lavagem e improbidade (11% delas)
Argumentos contra: Assunto já é objeto de projeto de lei e não tem a ver com o combate à corrupção. "É matéria de direito penal", afirma Vieira, do IBCCrim
7) Ajustes nas nulidades penais
Ações práticas: Incluir causas de exclusão de ilicitude na obtenção de provas. Exemplo: tornar válida prova se obtida por agente público que agiu de boa-fé
O que diz o MPF: O objetivo das mudanças é que só se anulem ou excluam provas de um processo quando houver uma violação real dos direitos do réu
Argumentos contra: Abre-se espaço para que agentes persigam seus fins sem precaução, um perigo num país com grande histórico de violência policial, diz Leonardo, do IDDD
8) Responsabilização dos partidos e criminalização do caixa dois
Ações práticas: Responsabilizar partidos por práticas de corrupção, criminalizar o caixa dois e tornar crime eleitoral a lavagem de dinheiro proveniente de infração penal
O que diz o MPF: O objetivo é estender às agremiações partidárias as exigências feitas a quaisquer pessoas jurídicas
Argumentos contra: —
9) Prisão preventiva para evitar a dissipação do dinheiro desviado
Ações práticas: Prender para localizar o recurso ilegal, para assegurar sua devolução ou para evitar que ele seja usado na fuga ou na defesa do investigado
O que diz o MPF: Trata-se de uma proteção da ordem pública contra novos crimes. Por se tratar de prisão preventiva, a medida deve ter caráter excepcional
Argumentos contra: Para Vieira, viola a garantia do investigado de não ter que fazer prova contra si mesmo. Ao pagar, ele estaria "assumindo comportamento de culpa"
10) Recuperação do lucro derivado do crime
Ações práticas: Criar o "confisco alargado": tomar a diferença entre o patrimônio comprovadamente lícito e o patrimônio total de um condenado em definitivo
O que diz o MPF: Coloca o sistema jurídico brasileiro em harmonia com o de outros países. A medida atinge apenas o patrimônio de origem injustificada
Fonte: Folha de S.Paulo, 28 de agosto de 2016.