Procuradores só podem fazer o que está na lei, e a legislação não prevê que eles destinem recursos seja lá para o que for

Mario Cesar Carvalho
SÃO PAULO

fundo de R$ 2,5 bilhões virou o saco de pancada da Lava Jato, atacado por um arco que vai de ministros do Supremo ao Tribunal de Contas da União, do senador Renan Calheiros (MDB-AL) à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, porque contém aparentes ilegalidades, conflitos de interesse e mais pontos obscuros do que ideias claras.

Por trás do fundo há também um conceito que parece ter ofendido a sensibilidade dos nacionalistas: o de que a Petrobras foi criminosa ao permitir que a corrupção dominasse a estatal, e não vítima, como repete a Lava Jato há cinco anos. Esta é a visão que os EUA, a fonte dos recursos do tal fundo, têm da Petrobras.

A suposta ilegalidade é a previsão de que os procuradores da Lava Jato vão destinar R$ 1,25 bilhão para um fundo de combate à corrupção criado pela Procuradoria da República no Paraná.

A lei brasileira não prevê que procuradores possam cuidar da destinação de recursos, uma atribuição do Poder Executivo (governos municipais, estaduais e federal).

Tudo bem que os procuradores não vão gerir essa fundação no dia a dia. Isso seria feito por um corpo diretivo escolhido por entidades respeitadas, como a Fundação Dom Cabral e a Transparência Internacional. A questão é que procuradores só podem fazer o que está na lei, e a legislação não prevê que eles destinem recursos seja lá para o que for.

Há também um problema ético, de conflito de interesse. A função dos procuradores é investigar e abrir processos contra crimes e irregularidades. Se ele passa a destinar dinheiro para um projeto de combate à corrupção, que isenção teria para processar a entidade que recebeu a verba caso haja desvio de recursos?

Parece um caso clássico de conflito de interesse.

Está certo que a tal fundação, se vier a ser criada, será fiscalizada pelo Ministério Público Estadual, não pelo Ministério Público Federal, órgão do qual fazem parte os procuradores da Lava Jato.

Pode parecer um detalhe, mas quem se dispõe a combater corrupção, como de fato a Lava Jato o fez, não pode permitir nem uma gota de dúvida sobre dilemas éticos.

Um professor da Faculdade de Direito da USP disse à Folha, sob condição de anonimato, que a Lava Jato caiu no problema que ela escancarou nas empreiteiras e na Petrobras com a criação desse fundo: o de falta de governança, de regras éticas claras a serem seguidas.

O objetivo da fundação, descrito no acordo, contém platitudes do tipo "promoção da cidadania", "aperfeiçoamento das práticas políticas" e "promover a conscientização da população".

Imagine o que os procuradores da Lava Jato diriam se encontrasse esses objetivos ao lado da montanha de dinheiro que é o R$ 1,25 bilhão? Prisão preventiva.

Há ainda o problema do nacionalismo que o fundo despertou, gerando comentários simplórios ou tolos, como o do teólogo Leonardo Boff, que tratou o dinheiro destinado como "propina milionária" para a Lava Jato.

O fundo foi criado a partir da multa que a Petrobras pagou ao Departamento de Justiça dos EUA, o equivalente ao ministério brasileiro.

Os americanos concordaram em devolver 80% da multa (US$ 682 milhões), porque o acordo usou contra a Petrobras as informações que a Lava Jato levantara sobre corrupção na estatal.

Os US$ 682 milhões (cerca de R$ 2,6 bilhões) teriam uma dupla destinação: metade iria para a fundação da Lava Jato, metade para um fundo para ressarcir investidores minoritários da estatal.

Para o Departamento de Justiça, a Petrobras lesou os investidores americanos ao não criar controles que evitassem o saque da estatal.

Como a Petrobras é controlada pelo Estado brasileiro, os americanos não viam sentido em retornar parte da multa para o governo.

O problema da fundação da Lava Jato é que no Brasil já existe um fundo gerido pelo Ministério da Justiça que recebe recursos desviados, chamado de Fundo de Defesa de Direitos Difusos.

A Lava Jato tem críticas sérias a esse fundo, de que ele é gerido de maneira amadora e não consegue gastar nem 0,5% do que tinha em caixa em 2017. Se é esse o problema, por que a Lava Jato e o ministro Sergio Moro (Justiça) não atacam o problema do fundo que não funciona?

Folha de S.Paulo