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Após a Segunda Guerra Mundial, a perplexidade invadiu a alma das pessoas e de seus governos após a divulgação dos campos de extermínios, que levaram ao holocausto milhões de pessoas apenas por serem judias, homossexuais, comunistas, deficientes, ciganas. Isso aconteceu em pleno meados do século 20, aos olhos de uma população indignada e amedrontada. A dignidade humana foi violada em seu âmago.

Para combater e prevenir todas as desastrosas formas de desvio humano, como a da dominação, as nações, a partir de 1945, com base nos valores mais universais e caros ao processo civilizatório, buscaram uma nova ordem mundial e se uniram não tão somente visando à reconstrução dos países dilacerados, mas principalmente para coibir os horrores escancarados, ainda que depois vivêssemos a guerra do Vietnã, a eliminação de um milhão de habitantes no Camboja e a África do Sul suprimisse as liberdades individuais e fizesse do racismo um terror para a sua população até 1994.

A necessidade de recompor e defender a dignidade das pessoas após tantos desatinos fez nascer organismos internacionais como a ONU (1945), a OMS (1948) e outros como medida de segurança jurídico-política da paz social.

Foi nessa mesma época, 1948, que nasceu o sistema de saúde de acesso universal, no Reino Unido, o qual serviu de parâmetro para outros sistemas universais que se expandiram na Europa, como na Itália, França, Espanha, Portugal, assim como no Canadá e vários outros, visando garantir direitos humanos, como o da saúde, e especialmente a dignidade das pessoas, que passaram a ser positivados em normas constitucionais e legais, e mesmo os sistemas constitucionais que não tutelaram de forma explícita o direito à saúde permitem inferir a sua proteção que se dá de forma implícita, tornando latente esse direito ao proteger a vida e a dignidades, por ser a saúde corolário de ambos.

Quarenta anos após, o Brasil, em 1988, pela sua Constituição, instituiu no país o Sistema Único de Saúde (SUS) para dar efetividade ao direito à saúde positivado no artigo 196. O SUS nasceu durante a maturidade dos sistemas europeus de saúde universal, como o inglês, que à época contemplava 40 anos, e, interessante anotar, ao tempo em que os ventos do neoliberalismo mundial começavam a impor mudanças no sistema inglês, ainda que quanto à sua forma de gestão e não ao seu núcleo duro de direito de acesso universal e gratuito, que não foi alterado nem pretensamente questionado, dada a hegemônica defesa pela sociedade que homenageou o National Health System (NHS) durante os Jogos Olímpicos de Verão em 2012.

Essas medidas inglesas de reorientação da gestão do sistema de saúde influenciaram a organização, nos anos 90, do nascente sistema brasileiro de saúde no governo FHC (1995-2002), com a reforma bresseriana (Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado), que deu origem à EC 19, de 1998, e ainda às organizações sociais na gestão pública de serviços (Lei 9.637, de 1998). Medida polêmica e judicializada (ADI 1.923), as organizações sociais proliferaram na área da saúde, merecendo até os dias de hoje discussões e propostas de ajustes em seu funcionamento. Contudo isso em nada influenciou o direito à saúde por se tratar de inovações quanto à forma de gestão dos serviços no âmbito administrativo e não quanto ao direito à saúde. Isso tudo para dizer que o SUS, ao ser implantado tardiamente no país, já teve que conviver com propostas de mudança de modelo de gestão administrativa, em razão daquelas que vinham sendo implementadas em sistemas mais antigos.

Na época, o Ministério da Saúde precisava ser alterado em seus aparatos administrativos, gerenciais e assistenciais para compatibilizar sua estrutura ao seu novo papel de direção nacional do SUS. Ressalte-se, entretanto, que o sistema brasileiro começou a atuar rumo ao direito à saúde a partir dos anos 80, com os programas que apontavam para a integração de serviços dos entes federativos[1], para a descentralização político-administrativa, para o acesso universal que surgiu no Programa SUDS (Decreto 94.657, de 1987), que abriu as portas dos serviços do Inamps para toda a população.

Assim, o SUS constitucional começou a ser de fato implantando no país a partir da edição da Lei 8.080, de 1990, devendo ser anotado que somente após a sua implantação e funcionamento foi possível perceber que a garantia orçamentária prevista no artigo 55 dos ADCT quanto à divisão dos recursos do orçamento da seguridade social (30%) para a saúde, cabendo à lei de diretrizes orçamentárias fixar seus valores a cada ano, não estava sendo nem seria cumprida. Isso porque esse percentual foi abandonado ser nunca ter sido cumprido de fato pelas autoridades econômicas até o advento da EC 29, de 2000, que fixou percentual mínimo de gasto com saúde.

Nessa linha do tempo — 30 anos da Constituição — pode-se apontar os percalços da saúde, sendo de se destacar aqueles surgidos nos últimos 15 anos, que passaram a exigir das autoridades públicas sanitárias mudanças nos parâmetros assistenciais, como: a) o avanço da biotecnologia e da tecnologia de informação e seus altos custos; b) as alterações no perfil demográfico da população pela maior expectativa de vida; e c) o excesso de diagnóstico — overdiagnose — incluindo o evitável e o desnecessário.

Essas transformações trouxeram novo olhar para a medicina e para a elaboração das políticas públicas de saúde que devem ainda hoje ser repensadas em razão dos custos que ensejam; novas formas de cuidar das pessoas, de organizar a gestão de serviços e pensar o sistema produtivo da saúde.

Além dessas inovações que atingem quase todos os sistemas de saúde universais, há as dificuldades próprias do SUS pelo fato de o mesmo não ter alcançado, até os dias de hoje, solidez em suas políticas, suficiência orçamentária e qualidade na prestação de seus serviços. Diante dessas dificuldades, deve-se perguntar o que amadureceu nesses 30 anos e se consolidou?

Essa pergunta deve primeiramente mirar questões de maior peso na organização e funcionamento do SUS e deter-se em dois aspectos nucleares: a consolidação do SUS como sistema imprescindível às pessoas e o reconhecimento do direito constitucional à saúde pelas cortes judiciais, premissas que devem anteceder qualquer análise do SUS pela fundamentalidade do reconhecimento do direito à saúde em sua concepção tridimensional — protetiva, prestacional e regulatória — atendimento de necessidades públicas.

A consagração do núcleo duro da saúde — as necessidades de saúde da população e o seu direito a serviços protetivos, prestacional-assistenciais e de regulação — deve ser o alicerce social e jurídico de qualquer exame que exija análises e respostas sobre o SUS, tendo como ponto de partida os deveres públicos do Estado face a Constituição, que pauta toda a nação brasileira. À luz desse axioma jurídico-político e social é possível incorrer na seara do que restou, ou não, consolidado nas políticas públicas de saúde. Pode-se afirmar que amadureceram no SUS serviços e políticas como:

  • os serviços de atenção primária em funcionamento em todos os municípios brasileiros, elemento essencial no modelo constitucional de assistência à saúde, ainda que sua estruturação careça de efetiva priorização nacional para a elevação da sua resolutividade a pelo menos 80% dos atendimentos, além de reparos próprios; e
  • as políticas públicas de: controle de qualidade do sangue, com hemocentros públicos em todo o país; transplante, com lista única nacional; desinstitucionalização das pessoas com transtorno mental, com a criação dos centros de atenção psicossocial em larga escala no país; assistência farmacêutica gratuita, essencial para a recuperação da saúde; imunização em âmbito nacional; serviços de urgência e emergência, o Samu, implantado no país; vigilância sanitária e a própria Anvisa; descentralização dos serviços, havendo serviços de saúde em todos os municípios brasileiros; participação social, com os conselhos de saúde e as conferências de saúde.

Seria impensável a sociedade brasileira viver sem esses e muitos outros serviços que atendem à população. Sabe-se que há problemas em quase todos os serviços, mas eles existem, estão implantados e o SUS realizou em 2017 cerca de 3,9 bilhões de procedimentos de saúde. São 47 políticas públicas, algumas definidas por lei, e outras por portaria ministerial, com deliberação tripartite: União, estados e municípios.

Outro aspecto que merece ser destacado é a estruturação administrativa das instâncias tripartites, bipartites e regionais de deliberação da operacionalidade descentralizada das políticas de saúde, com a criação e consolidação das Comissões Intergestores Tripartite, Bipartite e Regional (Lei 12.466, de 2011), sem o que o SUS não poderia definir, de modo transparente, descentralizado e democrático, as bases e a execução de seus planos de saúde. Tal espaço de decisão consensual é essencial para a governança interfederativa do SUS que requerer compartilhamentos em âmbito nacional, estadual e regional. O mesmo se diga da consolidação do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) como legítimos representantes dos secretários de saúde estaduais e municipais pela lei mencionada.

A participação da comunidade, diretriz constitucional do SUS, o qual não pode atuar sem essa participação, sob pena de ferir a Constituição, ainda que se possa apontar a que há espaço para maior amadurecimento no exercício da democracia direta, os conselhos de saúde se espraiam por todo o país — dos menores e nos mais longínquos municípios ao Conselho Nacional de Saúde. As próprias conferências de saúde que reúnem a população a cada quatro anos para diagnosticá-la e traçar diretrizes em âmbito nacional e de forma ascendente são instituições que estão consolidadas no SUS.

Outras consolidações dizem respeito ao lema todo o dinheiro da saúde no fundo de saúde, com estruturação de fundos de saúde em todos os entes federativos; os relatórios de gestão da saúde anuais; a alimentação do Sistema de Informação sobre Orçamento Público da Saúde (Siops) que permite aferir o cumprimento do gasto mínimos constitucional em saúde e outros sistemas de informações. A própria Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia em Saúde (Conitec) e a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) são destaques positivos do SUS. O sistema de orçamentação e gestão financeira do próprio Ministério da Saúde merece destaque dada a sua profissionalização e transparência nesses anos.

O que não amadureceu nem se consolidou? Pode-se apontar algumas estruturas que não se consolidaram, atividades que não foram realizadas a contento e o financiamento e sua insuficiência, os restos a pagar, a desvinculação de recursos. Elencamos a seguir as que julgamos serem essenciais:

  • a ciência e tecnologia na saúde, como setor produtivo indispensável para o SUS e para a própria economia do país, mesmo com as parcerias para o desenvolvimento produtivo (PDP) na saúde não lograram o sucesso requerido;
  • a regionalização territorial, com suas redes assistenciais, resolutiva em pelo menos 90% dos atendimentos: mesmo existindo 438 regiões e elas estando definidas no Decreto 7.508, de 2011, sua organização não alcançou resolutividade, tampouco tem-se observado haver planejamento regional efetivo e o devido contrato organizativo de ação pública da saúde necessário para a segurança jurídica das responsabilidades pactuadas entre os três entes federativos na região de saúde, nos termos do decreto mencionado;
  • o financiamento insuficiente. A parcela federal do financiamento público estacionou desde o início, em 1,7% do PIB, com os municípios e estados elevando suas parcelas, totalizando hoje 3,9% do PIB (total nacional), quando deveria minimamente dispor de 6 a 7%, como ocorre nos países com os melhores sistemas de saúde. Suas dificuldades tendem a se agravar com a EC 95, que congelou os gastos públicos por 20 anos;
  • a gestão pública burocrática a interferir no próprio planejamento da saúde, que não consegue cumprir suas metas, tanto pela falta de recursos quanto pela sua gestão insuficiente para atender as necessidades impostas por um sistema que deve atender a toda população brasileira e que exige novos elementos de gestão, como a informatização dos dados de saúde, do prontuário assistencial, do controle das filas e muitos outros aspectos relevantes que atingem diretamente o usuário bem como a racionalidade do gasto;
  • a carreira dos servidores da saúde e a formação médica para o SUS. Dada a sua importância, essa questão chegou a figurar na Lei 8.142, de 1990, como uma das exigências para a transferência de recursos da União para estados e municípios (planos de carreira); até o presente momento não logrou solução quanto à carreira de médicos e demais profissionais de saúde que tendem a ser terceirizados, contratados como profissionais autônomos, por cooperativas, por pessoas jurídicas e outras formas que não contam com adequada regulamentação. É relevante para um sistema de saúde público contar com profissionais de saúde formados em acordo às suas necessidades e modelo de atuação. O SUS deve se assentar em sua atividade prestacional-assistencial na atenção primária como principal porta de acesso aos serviços assistenciais e ordenadora da rede, o que nem sempre ocorre, tanto pela falta de profissionais formados para esse nível de atenção como por outros motivos. O baixíssimo financiamento do SUS e a não implementação do artigo 200, item III da CF e dos artigos 6º, item III e 16, item IX da Lei 8.080, de 1990, além da falta de formação clínica para os primeiros cuidados em saúde, ensejou o Programa Mais Médicos para suprir carências nos serviços de atenção primária;
  • a participação do setor privado, onde viceja confusões entre o instituto da complementaridade, que requer a existência de serviços privados complementando os serviços públicos, e a gestão por terceiro de serviços públicos. As incompreensões requerem clareamento dessas relações entre o sistema público e o setor privado, bem como os modelos de gestão pública, como as organizações sociais e outras formas que nem sempre são adequadamente regulamentadas e fiscalizadas.

Por outro lado, não se pode deixar de comentar a judicialização da saúde que cresceu, se firmou e tantas são as dificuldades que parece haver uma perpetuação pelos mais diversos motivos.

Ressalta-se de outra banda que o SUS, ao ter sido disciplinado na própria Constituição, garantindo diretrizes e forma organizativa, goza de proteção constitucional tanto quanto o direito à saúde. O mesmo se deve dizer do seu financiamento, que se faz expresso na Constituição, antes no ADCT e depois no artigo 198, ainda que os percentuais mínimos sejam quase sempre, face a União e aos estados, aplicados como se tetos fossem, em prejuízo de sua adequada sustentabilidade.

Desse modo, a expressão formal do direito à saúde (artigo 196), materializado pelo SUS (artigo 198), e a sua sustentabilidade financeira, que deve se dar em conformidade aos pisos mínimos — que não podem ser tratados como máximos —, não sofreram retrocessos. O STF assim tem se manifestado quanto ao direito à prestação de serviços adequados, norma que deve ser considerada como de eficácia plena e imediata, nos termos das políticas que a define, tendo o postulante direito subjetivo público a este[2]. O ministro Lewandowski, em recente decisão liminar, fixou haver vedação no retrocesso das garantias do direito à saúde, o qual não pode sofrer retroação em seu financiamento (STF, Medida Cautelar na ADI 5.595, de 2017).

O SUS tem sido nesses 30 anos o baluarte das políticas públicas de elevação da vida, da dignidade humana, da melhoria das condições de vida das pessoas. Nada mais indigno do que não ser possível proteger a saúde individual e coletiva de agravos preveníveis pela ausência do Estado; ou de não se poder recuperá-la, ou minorar o sofrimento, pela falta de serviços de saúde, quando então se deve inquirir para que serve o Estado.

No século XXI, o século do desenvolvimento da biotecnologia e das tecnologias de informação com seus sucessos e riscos, não pode se deslocar da era dos direitos que marcou as sociedades, no seu caminhar civilizatório, pelas políticas de bem-estar social. Para somar-se um ao outro, é preciso defender diuturnamente a garantia do direito à saúde — bem como outros — em nome da liberdade e da dignidade humana, que não podem ser sacrificadas por qualquer tipo de disruptura tecnológica, econômica ou política.


[1] Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), Decreto n. 78.307, de 1973; 7ª Conferência Nacional de Saúde, 1979; 1º e 2º Simpósios de Políticas de Saúde na Câmara Federal, 1979 e 1982; Dez Encontros Municipais de saúde de 1978 a 1989; Programa das Ações Integradas de Saúde (AIS), criado em 1984, no âmbito do Plano de Reorientação de Assistência à Saúde no âmbito da Previdência Social (Plano CONASP-1982), tendo havido ainda o Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde (PREV-SAÚDE), em 1980.
[2] STF – RE com agravo 76853 – RS 2014. Min. Ricardo Lewandowski.

 é advogada, especialista em Direito Sanitário pela USP, doutora em Saúde Pública pela Unicamp e coordenadora dos cursos de especialização do Idisa — Instituto de Direito Sanitário Aplicado.

Revista Consultor Jurídico, 6 de dezembro de 2018