DIÁRIO DE CLASSE

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Chega a ser constrangedor como nos últimos tempos as reivindicações por “intervenção militar” têm ganhado espaço no Brasil e, por último, durante a paralisação dos caminhoneiros. Faixas, pichações, discursos e movimentos na frente dos quartéis... Ora, será que cansamos da trajetória de construção da democracia? Ou será que esses 30 anos de democracia constitucional são, de fato, insuficientes para romper com o imaginário autoritarista (e militarista) herdado do século XX no Brasil? Penso que há um grau de senilidade e/ou déficit de memória e de fobia histórica de outros, jovens ou não-jovens (p. ex. veja a fala de L. Karnal aqui ou de L. F. Pondé aqui). Se o autoritarismo que precedeu nossa democracia tivesse sido produtivo e justo, não estaríamos às voltas com comissão da verdade e anistia. Verdade sobre o que?! Anistia de que?! Esqueceram que durante a ditadura militar foram perseguidas, executadas e torturadas diversas pessoas, assim como outras desapareceram (adultos, mulheres, crianças)?! E o impacto do Ato Institucional 5? Fechamento do Congresso, censura, suspensão de direitos, ilegalidade de reuniões sem autorização da polícia e etc. A “sensação de segurança” que muitos justificam era mantida apenas por um clímax de repressão e censura, enquanto isso a violência, a corrupção e os sistemas de propina com empreiteiras e outros interesses obscuros se consolidavam (leiam p. ex. sobre os casos Luftalla, Coroa-Brastel, hidrelétricas de Itaipu e de água vermelha, General Eletric e “deofim” entre diversos outros), ao fim do regime, o Brasil foi entregue quebrado econômico e financeiramente (dívida externa, inflação descontrolada e indexada e desajuste das contas públicas)[1]. Aliás, é bom que se diga que mesmo na transição democrática, alguns privilégios do regime foram institucionalizados ou incorporados (supersalários, prerrogativas e mordomias de altos escalões – p. ex. imóveis funcionais, carros oficiais, serviçais, segurança e verbas de auxílio de toda a natureza -, as pensões a familiares etc.), ou seja, ao lado de uma ruptura com a refundação do Estado de Democrático e de Direito com a Constituição de 1988 algumas marcas da história ainda se perpetuaram e hoje ainda incomodam. Está claro que a corrupção, os desmandos políticos irresponsáveis, a manutenção no poder, as regalias à custa do sofrimento do povo precisam ser superadas, mas não ao preço da Constituição. É como jogar fora a água suja da banheira com a criança junto! Logo, flertar com o autoritarismo hoje representa uma espécie de síndrome de neovassalagem daquele que não tem valor pela democracia e pela construção protagonista de uma sociedade melhor e pior, sem saber que, ao fim e ao cabo, estará rendendo homenagem a uma elite que manipula em todas as frentes. Lembrem que somente as grandes corporações ganharam com os regimes de exceção e o resto do povo fica apenas com “ordem e progresso”.

É claro que os resultados da democracia ainda estão longe de proporcionar os melhores resultados, pois mesmo 30 anos pós-Constituição de 1988 ainda existe um imaginário dominante político, social, jurídico e econômico no contrafluxo, contudo, a liberdade, muito mais que o autoritarismo, tem inegavelmente melhores possibilidades construtivas. A política nos representa sim, essa é a opção. Não acreditem num parêntese de exceção, numa intervenção parcial, numa suspensão provisória de direitos ou numa microconstituinte ou qualquer insanidade desse jaez, essas brechas e jeitinhos são um caminho sem volta, aliás, como diz Bauman, somente com conhecimento, homens e mulheres livres têm pelo menos alguma chance de exercer sua liberdade[2]. Entretanto, a busca pelo conhecimento em tempos de pós-verdade tem feito com que o acesso a informação substitua a realidade histórico-prática fazendo com que os discursos odiosos, binários e irresponsáveis, além de dividirem o país, ganhassem ares de verdade ou credibilidade. A “verdade” se subsume e se mede em likes e compartilhamentos. A quem isso interessa? No que você quer acreditar? Qual o seu papel para a vida coletiva? Acorde!!! É somente dentro do paradoxo da ampliação do acesso a informação e do menor compromisso com o conhecimento que surge o espaço da ignorância e da estupidez, daí porque isso, aliado ao individualismo, passa a coincidir com o aumento da impotência coletiva[3]-[4], do descrédito na democracia e na política. Então, como afirmou Castoriadis, o homem supostamente livre para dar sentido a sua vida - a que ele desejar -, ele só lhe dá o não-sentido do aumento indefinido para o consumo, de modo que sua autonomia se transforma em conformismo generalizado; como ele mesmo disse, o capitalismo não precisa de sua autonomia, mas de seu conformismo[5].

A cidadania foi substituída pelo engodo do consumismo e agora a Política parece já não ter mais importância! O quanto se perde por não abastecer, não trabalhar ou estar parado diante de uma manifestação pública de A, B ou C ou não fazer a “economia girar”. Fazer sumir ou reprimir quem luta é a solução? Não esqueça que o totalitarismo se encaminha ou se legitima assim... Suprimir o espaço público de debate ou a figura do outro (pessoa, categoria, ideologia, qualquer que seja) é um golpe na democracia e na Constituição, penso que a liberdade que temos (ou achamos que temos)[6] só é na e a partir da coletividade, ao menos na democracia é assim, é uma autolimitação sustentável e fertilizadora. De modo que nem o excesso de individualidade (ou de individualismo), nem a histeria coletiva nas redes sociais p. ex. são sinais de emancipação política, muito pelo contrário. Observem que quase sempre nesse tipo de cenário (crise) é que as bases da democracia são questionadas e franqueadas, ou ao autoritarismo, ou ao oportunismo dos salvadores da pátria. Isso sempre interesse a alguém.

Dentro das regras do jogo constitucional (e do Direito), com todos os defeitos, a Política ainda é o modo pelo qual a sociedade é capaz de se emancipar; a política não é um bem de consumo de uso instantâneo e um remédio de ação imediata, é um construído. Uma decisão política errada tem efeitos ruins, mas sempre tem a chance de ser revertida ou mitigada, ainda que a longo prazo. Daí porque precisamos acompanhar, dialogar e trabalhar cotidianamente, na esfera pública e também privada, dentro de uma ideia de responsabilidade e de compromisso com a democracia, para transformar o status quo.

Vamos celebrar e lutar por aquilo que é capaz de nos emancipar como pessoa e como cidadão, a democracia! Ocupar o espaço público de debate, tomar partido, é o locus e o modus, para transformar a política e a sociedade! Isso é indelegável! Ao invés de buscar destituir-a-ação coletiva, devemos, como diz o professor Lenio Streck, lutar pelo constituir-a-ação da Constituição.

[1] Para mais, confira os 5 volumes da coleção Ditadura de Elio Gaspari Elio Gaspari (A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada, A Ditadura Encurralada e A Ditadura Acabada) todos publicados pela editora Intrínseca.

[2] In: Em busca da política. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. p. 10.

[3] BAUMAN, 2000, loc. cit.

[4] Excesso de informação não se traduz necessariamente em conhecimento.

[5] CASTORIADIS, Cornelius: As encruzilhadas do labirinto IV: A ascensão da insignificância. Trad. Regina Vasconcellos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 76; 115.

[6] “Aterrorizado diante deste vazio – individualismo - o homem contemporâneo se refugia na acumulação laboriosa do seu ‘lazer’ cada vez mais repetitivo e acelerado. CASTORIADIS, Ibid. p. 76.

Rafael Fonseca Ferreira é advogado, pós-doutor, doutor e mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professor da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

Revista Consultor Jurídico, 4 de junho de 2018