OPINIÃO

Por 

A Corte de Justiça de maior prestígio do mundo, a Suprema Corte dos Estados Unidos, tem um histórico de decisões emblemáticas e algumas que se constituíram em grandes equívocos.

Ao longo dos anos ela sepultou a discriminação racial amparada pelo Estado (Brown v. Board of Education/1954), que ela própria, outrora, havia afirmado ser legal (Plessy v. Fergusson/1896); autorizou a queima da bandeira como afirmação da liberdade de expressão e de discurso político (Texas v. Johnson/1989); julgou constitucional o aborto (Roe v. Wade/1973) e quase meio século depois revogou o julgado e facultou aos Estados decidirem o tema (Dobbs v. Jackson/2022).

Esse tribunal, fechado em si mesmo, pouco simpático a incursões públicas, decidiu no último dia 18 de maio que os grandes conglomerados que dominam a internet não podem ser responsabilizados pelo que os usuários "publicam" nas suas plataformas.

Eram dois processos: Twitter v. Mehier Taamneh e Gonzalez v. Google, ambos decididos no mesmo dia. A Corte julgou o primeiro caso e o utilizou como fundamento para extinguir o segundo sem necessidade de considerações mais espaçadas.

Embora julgadas em Washington, as ações tinham origem geográfica distintas: uma em Istambul e a outra em Paris. O fato é que parentes de vítimas de atentados terroristas em ambas as capitais acusavam o Twitter, o Google e o Facebook de lucrarem com essas incursões terroristas.

Gonzalez v. Google, talvez o caso mais emblemático, versa sobre Nohemi Gonzalez, 23 anos, estudante de origem humilde da California State University, que com muito sacrifício conquistou uma bolsa de estudos para fazer intercâmbio em Paris. Na capital francesa, Nohemi teve sua vida ceifada em um dos ataques terroristas de 2015, assumidos pelo denominado Estado Islâmico.

Situação parecida com a de Nawras Alassaf, cidadão jordaniano que morreu em Istambul, em 2017, vítima também de ataque terrorista do Estado Islâmico. Seus pais, tal qual os de Nohemi, processaram as três grandes empresas de tecnologia dos Estados Unidos. A Suprema Corte conheceu ambos os casos em grau de recurso.

As famílias das vítimas pretendiam que Google (YouTube), Twitter e Facebook fossem responsabilizados pelos ataques, porque, segundo elas, "por vários anos" eles "permitiram conscientemente" que o Estado Islâmico e seus apoiadores usassem suas plataformas e algoritmos de recomendação como ferramentas para recrutamento, arrecadação de fundos e disseminação de propaganda. Alegaram, ainda, que essas empresas "lucraram com os anúncios do Estado islâmico, colocados nos tweets, postagens e vídeos".

O Tribunal confrontou os argumentos com uma legislação da década de 1990, Lei de Decência nas Comunicações (Communications Decency Act), especificamente a Seção 230 desse ato normativo, que desde então isenta as redes sociais de responsabilidade por conteúdo inserido por terceiros.

A Corte entendeu que as alegações dos familiares "eram insuficientes para estabelecer que os réus ajudaram e instigaram o Isis no ataque" (that plaintiffs'allegations are insufficient to establish that these defendants aided and abetted ISIS in carrying out the relevant attack). E para que houvesse responsabilidade civil nesse tipo de ação era preciso demonstrar "um nexo direto entre os atos do réu e o delito" (a direct nexus between the defendant’s acts and the tort), ou "auxílio generalizado e sistêmico" (showing of pervasive and systemic aid), de modo a deixar patente que "os réus realmente ajudaram e incitaram cada delito" (that defendants actually aided and abetted each tort of that)[1] de que estavam sendo indiretamente acusados.

A decisão (unânime) na apelação do Twitter (estendida ao Google) não significa, entretanto, um cheque em branco às redes sociais. A Corte deixou portas abertas para aferir responsabilidades em situações outras. Por outro lado, uma das juízas, Brown Jackson, elaborou voto em separado afirmando que "os princípios gerais" invocados pela Corte, "não são, no entanto, universais", e que outros contextos podem conduzir à decisão diferente da que acabara de ser tomada.

Atribui-se ao ex-juiz da Suprema Corte, Oliver Wendell Holmes Jr. (1841/1935), a frase de que "casos complicados não se traduzem em bom direito"[2]. Em outras palavras, os casos difíceis de serem resolvidos produzem decisões ruins. Estabelecer o grau de responsabilidade das redes sociais, conjugar a liberdade de expressão com a dinâmica das redes, que processam milhões de informações/dados/imagens a cada dia, será tarefa difícil de produzir "bom direito", mas certamente não será impossível.


[1]. Twitter v. Mehier Taamneh, decisão publicada em 18.05.23.

[2]. Northern Securities Co. v. United States (1904).



 é professor de Direito Constitucional, procurador da Fazenda Nacional e autor de "Suprema Corte dos Estados Unidos — Principais Decisões" (Atlas, 4ª ed/2021).

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2023-mai-24/joao-carlos-souto-vitoria-big-techs-bom-direito2