Quando a internet e as redes sociais surgiram, elas foram comemoradas como um marco na democratização da informação. As pessoas passariam a ter acesso ao acervo das principais bibliotecas e museus do mundo e ganhariam um amplo espaço para a discussão e tomada de decisão. Uma “grande ágora”, comemorava-se. O início da revolução que trocaria a democracia representativa por um novo modelo de democracia direta.

A profunda perversidade humana demoliu essa utopia. De fato, qualquer um tem acesso ao acervo das principais bibliotecas do mundo, e tours virtuais a museus como o Louvre estão disponíveis. Só não fazem nenhum sucesso. Em vez do amplo acesso ao conhecimento, a internet e as redes sociais têm sido usadas para a produção de realidades paralelas. Um confuso processo de distorção do que de fato acontece que propicia episódios lamentáveis como o ocorrido no último domingo (8). Em vez da “grande ágora”, a manipulação perversa das redes produz o ambiente para que o cometimento de graves crimes seja compreendido pelos autores como “atos patrióticos”. Talvez sem as redes não houvesse invasão do Capitólio nos Estados Unidos e dos três principais prédios da República brasileira aqui.

E talvez sem as redes não se produzisse vídeo tão ridículo como o da senhora que pede “Socorro, Damares!” como se não houvesse razão alguma para que estivesse presa.

O golpe tentado no domingo felizmente falhou miseravelmente. E, diante da falha, os grupos começam a construir uma outra narrativa distorcida para continuar vivendo na realidade paralela que criaram. A tentativa de querer atribuir os bárbaros atos de depredação dos palácios, de destruição de obras de arte de valor inestimável, de peças históricas que não poderão ser substituídas, a “infiltrados”.

O primeiro grande problema dessa narrativa é que os idiotas, em outro aspecto destes novos tempos de redes sociais, registraram com detalhes tudo o que faziam. Não há nenhum vídeo em que apareça alguém tentando impedir que os baderneiros quebrassem o secular relógio que a família real portuguesa trouxe para o Brasil em 1808, ou que furassem a tela “Mulatas” de Di Cavalcanti, ou não urinassem em cima da tapeçaria de Burle Marx. A horda produziu tais barbaridades e não houve ninguém de verde e amarelo que a contivesse.

O segundo ponto importante é que inteligência ou falta de inteligência não é atributo nem de esquerda nem de direita. As informações sobre a arquitetura do caos perpetrada no domingo parecem mesmo mostrar que a depredação não fazia parte do plano original.

Quem organizou a coisa escolheu o domingo para invadir os três prédios da República exatamente porque no domingo não haveria expediente. A estratégia era invadir e ocupar os prédios. Para não sair dali. A partir da ocupação, os demais atos planejados aconteceriam: invasão de refinarias para cortar fornecimento de combustíveis, bloqueio de rodovias para seguir parando o país, derrubada de torres de transmissão para produzir um apagão de energia. O caos instalado produziria a condição para que fosse pedida a Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Nesse momento, a baixa oficialidade se insurgiria. Na contenção desse caos, surgiriam as condições para um golpe de Estado. Mas, então, quebraram tudo dentro dos prédios e nada do que estava planejado para depois aconteceu.

O terceiro grande problema dessa argumentação é que a ocupação pacífica dos prédios não elidiria os demais crimes. Arquitetar uma tentativa de golpe de Estado é crime. O artigo 359-M do Código Penal o estabelece como: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”.  A pena prevista vai de quatro a 12 anos de prisão.

Está também na Lei 1.802, de 1953, que trata dos crimes contra o Estado e a Ordem Política e Social, no seu artigo 5º: “Tentar, diretamente e por fato, mudar, por meios violentos, a Constituição, no todo ou em parte, ou a forma de governo por ela estabelecida”. No caso, a lei prevê uma pena de três a 10anos para os “cabeças” e de dois a seis anos para os “demais agentes, quando não couber pena mais grave”.

A “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” está prevista na Lei 14.197 de 1º de setembro de 2021. Uma lei, portanto, sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, o “mito” dos golpistas. A “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” é assim descrita: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”: No caso, a pena é de prisão de quatro a oito anos, além de pensa correspondente à violência que tiver sido cometida.

Todas essas leis mostram que simplesmente tentar impedir o “exercício dos poderes constitucionais” já é crime. Em sendo crime, a horda que foi para a Esplanada dos Ministérios para invadir os palácios associou-se para cometê-lo. O crime de “associação criminosa” está previsto no artigo 288 do Código Penal: “Associarem-se três ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes”. A pena prevista é prisão de um a três anos.

Um dos grandes erros históricos brasileiros, cometido talvez pela forma como aqui se combinou a anistia ao final da ditadura, é fazer esses desordeiros pensaram que o que aconteceu em 1964 não foi crime. Foi crime. Houve uma ação violenta para derrubar um presidente constitucionalmente constituído. A diferença ali é que naquele momento houve adesão de outras instituições. O Congresso de então aceitou o golpe. Autoridades do país também. Houve apoio internacional. Felizmente, não há nada disso agora.

Não havendo nada disso agora, que se pague pelo crime. É o que as leis preveem. Dentro das quatro linhas da Constituição…

RUDOLFO LAGO Diretor do Congresso em Foco Análise. Formado pela UnB, passou pelas principais redações do país. Responsável por furos como o dos anões do orçamento e o que levou à cassação de Luiz Estevão. Ganhador do Prêmio Esso.

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