Admitir como natural a redução dos Direitos Sociais a créditos é chancelar que algo infungível perca seu valor em troca de preço em uma lógica não apenas desumana, como anti-humana.

Oscar Krost

Há 15 anos, no ano de 2007, segundo o critério cronológico comum, mas há Eras se considerada a profundidade e velocidade das mudanças e rupturas vivenciadas, a respeito do instituto do sobreaviso, escrevi:

“Impõe-se reconhecer como de sobreaviso o tempo alheio à jornada, pelo qual o trabalhador se coloca à disposição do empregador, mesmo em caráter atenuado e com relativo espectro de circulação, ensejando seu chamamento imediato por qualquer forma.

Do contrário, seguir-se-á legitimando o cerceio da liberdade do empregado, do pleno gozo de seu tempo de folga, sem a contrapartida econômica, em proveito exclusivo do tomador de serviços, pelo sacrifício do direito ao lazer e ao repouso.

Potencialmente, gera-se o risco do desencadeamento de moléstias psíquicas relacionadas ao stress no trabalho, em prejuízo de toda a sociedade.”1 (grifei)

Ocupava as demandas judiciais e os debates acadêmicos o impacto das tecnologias na modalidade de plantão instituída pela CLT, originariamente idealizada aos trabalhadores das ferrovias. Uma corrente entendia que o estado rarefeito de disponibilidade exigiria o aguardo de chamado na residência do empregado, enquanto a outra relativizava tal requisito, sequer previsto em lei, levando em consideração, pelo estado, à época, dos meios de informação e de comunicação.

A Súmula nº 428 do TST, originada da Orientação Jurisprudencial nº 49 da SDI I do próprio TST, atenta à polêmica, endossava a segunda corrente. Contudo, comumente era lida de modo oposto o entendimento de que “o uso de aparelho de intercomunicação, a exemplo de BIP, ‘pager’ ou aparelho celular, pelo empregado, por si só, não caracteriza o regime de sobreaviso, uma vez que o empregado não permanece em sua residência aguardando, a qualquer momento, convocação para o serviço.”

Com frequência, manifestavam-se Julgadores e Tribunais não no sentido de que o simples fato de portar equipamentos não configurava sobreaviso, mas ao ocorrer impediria o sobreaviso. Eis que em dezembro de 2011 é promulgada a Lei nº 12.551, acrescentando o parágrafo único ao art. 6º da CLT, pelo qual “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.

A Súmula da mais alta corte trabalhista do país sofre mudança em sua redação, desdobrando-se, pela Resolução nº 185/2012, em dois itens:

428. SOBREAVISO APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 244, § 2º DA CLT.

I – O uso de instrumentos telemáticos ou informatizados fornecidos pela empresa ao empregado, por si só, não caracteriza o regime de sobreaviso.

II – Considera-se em sobreaviso o empregado que, à distância e submetido a controle patronal por instrumentos telemáticos ou informatizados, permanecer em regime de plantão ou equivalente, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço durante o período de descanso.

O Direito pelas vias constitucional (art. 7º, XXXII), legal (art. 6º da CLT) e jurisprudencial (Sumula nº 428 do TST) não deixava dúvidas sobre a ausência de diferenças substanciais entre o empregado que fora da jornada estivesse à disposição, portasse ou não aparelho de comunicação remota. A ferramenta e o detalhe não poderiam se sobrepor ao sujeito e à relação, atentando-se aos Princípios da Proteção e da Primazia da Realidade, bem como à dignidade da pessoa humana, fundamento da República.

Em 2017, há tanto e tão pouco tempo, é promulgada a Lei nº 13.467, conhecida por “Reforma Trabalhista”, alterando e revogando dezenas de dispositivos da CLT, inserindo, ainda, outros, dentre os quais o inciso III ao art. 62 e os arts. 75-A a E, sobre o “teletrabalho”. Àquele tempo, com base nas reflexões acerca do sobreaviso e do próprio art. 62 da CLT,2sustentei a incompatibilidade fática e normativa da exclusão dos trabalhadores que atuassem de modo remoto e com uso da tecnologia do campo de incidência das regras do capítulo sobre a duração da jornada.3

Havia apenas a legislação de Portugal, praticamente, regendo o “teletrabalho”, mais protetiva do que a nacional. Logo depois, Argentina, Uruguai e Espanha disciplinaram a matéria, trilhando caminho ainda mais tuitivo do que o Brasil,4 que durante a pandemia de Covid-19 flexibilizou in pejus o instituto do “teletrabalho” por meio das Medidas Provisórias nº 927/205 e 1.046/21.6

No começo de 2022, pela Medida Provisória nº 1.108, convertida na Lei nº 14.442, promove-se nova mudança da CLT quanto ao limite/controle de jornada do “teletrabalho”. Destaque ao art. 62, inciso III, da CLT, que deixou de se aplicar a toda e qualquer situação de trabalho remoto com uso de tecnologia, restringindo-se aos empregados “que prestam serviço por produção ou tarefa”.

Houve, ainda, mudança na redação do art. 75-B da CLT, que exigia a preponderância do serviço fora das dependências do empregador para considerar configurado o “teletrabalho”, não mais o fazendo. Como dito, repetido e desagradavelmente afirmado: não existe ontologicamente “teletrabalho”, tampouco diferença entre o fazer próximo, mediato ou distante de quem emanam as ordens.7

Há trabalho intelectual, manual, braçal ou híbrido, enquanto que “tele” é o meio pelo qual o resultado do serviço se desloca no espaço. A petição do Advogado é a mesma redigida dentro e fora do escritório, assim como o projeto da Arquiteta ou a programação da/do Analista de Sistemas. O fazer e o feito não tem qualquer distinção.

Diga-se o que se disser, lançando mão de opiniões, figuras de linguagem e recursos retóricos, não há o que opere a modificação da realidade das coisas, sendo o local do serviço a única diferença entre aquilo que se chama “trabalho presencial” e “trabalho remoto”, sem desconsiderar, por óbvio, a tecnologia telemática. Não raras vezes, mesmo a atividade presencial se desenvolve dentro das dependências empresárias via redes – internet ou intranet – sem que isso venha a ser considerado “teletrabalho”.

Se o “fazer já feito” vai até o cliente, a uma colega ou à chefia pela internet, via pendrive ou em papel, data maxima venia, o “como” não altera em nada o “que”.

A digressão aqui apresentada, com menção a diversos textos, artigos, capítulos e comentários, tem por objetivo confirmar que embora a tecnologia seja um fenômeno complexo, dinâmico e multifacetado, promotora de mudanças sutis ou nem tanto de como vivemos e nos relacionamos, o fundamento e o propósito do ordenamento jurídico recaem sobre o respeito, proteção e promoção da dignidade da pessoa humana. Tudo o que existe e o que vier a existir deve ser condicionado à tutela do sujeito, de sua saúde e realização.

Falar em limitação e controle de jornada, bem como direito à desconexão, não se restringe à remuneração por tempo de serviço ou à disposição. Contraprestação por minutos, horas, dias.

Refere-se, ainda e primordialmente, à saúde, à vida, à autorrealização e ao lugar no mundo de cada uma e de cada um. Alguém que vive para o trabalho e não trabalha para viver, de tanto se sujeitar, se assujeita, tornando-se objeto.

Admitir como natural a redução dos Direitos Sociais a créditos é chancelar que algo infungível perca seu valor em troca de preço em uma lógica não apenas desumana, como anti-humana. E daí para frente, enquanto civilização, é só para trás…

Notas

1 KROST, Oscar. A caracterização do regime de sobreaviso diante das inovações tecnológicas dos meios de comunicação. Revista LTr. São Paulo: LTr Editora, ano 71, no 09, setembro/2007, p. 1111-4.

2 KROST, Oscar. Releitura do conceito de atividade externa incompatível com fixação de horário: uma abordagem vinculada aos Direitos Fundamentais. Revista LTr. São Paulo: LTr Editora Editora, ano 70, no 10, outubro/2006, p. 1194-8.

3 KROST, Oscar. Comentários aos arts. 62, III, 75-A a E In: LISBÔA, Daniel; MUNHOZ, José Lúcio. (Organizadores). Reforma Trabalhista comentada por Juízes do Trabalho: artigo por artigo – Atualizada até o fim da vigência da MP 808/17 e Lei 13.660. São Paulo: LTr, 2018, p. 96-99 e 104-118 e KROST, Oscar. Proibição de distinção entre trabalhos manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos, Reforma Trabalhista e ‘teletrabalho’: diferenciando iguais para reduzir direitos. In: ARAUJO, Adriane Reis de; D´AMBROSO, Marcelo José Ferlin. (Coordenadores). Democracia e Neoliberalismo: o legado da Constituição de 1988 em tempos de crise. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 331-360.

4 KROST, Oscar Teletrabalho na Argentina e no Brasil: tão perto, mas tão longe”, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.wordpress.com/2020/08/28/teletrabalho-na-argentina-e-no-brasil-tao-perto-mas-tao-longe/>, desde agosto/2020. Acesso em: 06 nov. 2022.

KROST, Oscar. Análise da regulação do teletrabalho na Argentina, Brasil e Uruguai: estudo comparativo No prelo.

KROST, Oscar; TRINDADE, Rodrigo. As relações de trabalho no século XXI: desafios da sociedade tecnológica, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2021/07/27/teletrabalho-na-espanha-redescobrindo-a-america/> e <http://revisaotrabalhista.net.br/2021/07/27/teletrabalho-na-espanha-redescobrindo-a-america/>, desde julho/2021. Acesso em: 06 nov. 2022.

5 KROST, Oscar. Teletrabalho, Covid-19 e Medida Provisória no 927/20: reduzindo distâncias entre meios e fins. In:MOLINA, André Araújo; COLNAGO, Lorena de Mello Rezende; MARANHÃO, Ney. (Coordenadores). Anais do 1o Ciclo de Palestras do grupo eletrônico “Ágora Trabalhista”: Direito e Processo do Trabalho no ano de 2020. São Paulo: OAB/SP ESA, 2020, posição 1.862-2.205/16.086 (e-book).

6 KROST, Oscar; PASOLD, Andrea. Medida Provisória nº 1.046/2021 – primeiras linhas (deja vu ou remake), disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2021/04/29/medida-provisoria-n-1-046-2021-primeiras-linhas-deja-vu-ou-remake/> e <https://www.evoluindodireitodotrabalho.com/post/medida-provis%C3%B3ria-no-1-046-2021-primeiras-linhas-deja-vu-ou-remake>, desde abril/2021. Acesso em: 06 nov. 2022.

7 KROST, Oscar. Teletrabalho: a verdade que esqueceu de acontecer, disponível em <https://direitodotrabalhocritico.com/2022/03/21/teletrabalho-a-verdade-que-esqueceu-de-acontecer/&gt>. Acesso em: 06 nov. 2022

Fonte: Direito do Trabalho Crítico
Data original da publicação: 06/11/2022