SENSO INCOMUM

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Constitucionalismo quer dizer "fazer democracia no direito e pelo direito". O ponto central é a institucionalidade.

Democracias consolidadas funcionam assim. Ou alguém viu, na Espanha ou Portugal, pessoas dizendo "essa Constituição atrapalha o país" ou "queremos Franco ou Salazar de volta"? Ou o chanceler da Alemanha dizer "me dá náusea cumprir a Constituição"?

Ou alguém viu um ex-deputado na Espanha ou Alemanha tecendo hediondas ofensas a uma juíza do Tribunal Constitucional, quebrar as condições de sua prisão domiciliar, receber a polícia à bala e com granadas praticando quatro tentativas de homicídio e, depois, tomar cafezinho (ou algo desse quilate) com o policial, tudo "assistido" por um padre de festa junina?

Não? Então me sigam.

O constitucionalismo — essa invenção democrática — criou mecanismos para evitar que maiorias eventuais destruam a democracia. Autopreservação, eis a chave. Se eu habito com outras pessoas e tenho um contrato pelo qual as decisões são tomadas por votação, isso não garante que alterem o contrato e me joguem pela janela.

Como me salvo? Colocando uma cláusula pela qual podem alterar o contrato por votação, menos a cláusula que diz que minha vida e dignidade devem ser preservadas acima de tudo. Essa é a metáfora ulisseana de todos conhecida. As correntes que me amarram... e me salvam das sereias, dos jeffersons, dos kelmons e quejandos.

As cláusulas pétreas e as garantias institucionais (por exemplo, a divisão de Poderes) representam uma espécie de "quarto de pânico da democracia".

Para que serve esse "quarto do pânico"? Simples. Quando os bárbaros — e existem muitos — ameaçam as instituições, protegemo-nos. Simbolicamente, é ali que nos abrigamos.

Porém, não se trata, simplesmente, de possuirmos um "quarto do pânico". O ponto é possuirmos instituições robustas.

A institucionalidade é algo tão complexo que, por vezes, nem o "quarto do pânico" resolve. Voltando à metáfora de Ulisses, de nada adianta ser amarrado ao mastro e dar as ordens aos marinheiros, se estes retirarem a cera dos ouvidos e ouvirem o canto das sereias...!

Explico melhor.

Instituições tem uma função. Metaforicamente, são como limpadores de para-brisas. São inúteis se não estiverem do lado de fora do carro, se me permitem essa plus platitude. Todavia, essa aparente obviedade é necessária porque estamos em um país em que... bem, aconteceu e acontece tudo isso-que-está-aí, d'onde o "fator jefferson" completa a ópera trágica e ao mesmo tempo bufônica. Não preciso elencar as vezes em que o presidente da República ofendeu ministros do Supremo, ameaçou — implícita e muito explicitamente — rupturas institucionais, além da retomada da segunda edição do famoso livro Coronelismo, Enxada e Voto (isso é uma metáfora; ou alegoria!).

Cabe a pergunta: dizer que as "instituições funcionam" pode apenas ser uma ficção da realidade ou, quem sabe, o nosso pânico diante do perigo da realidade da ficção?

Daí minha outra indagação — fulcral: o direito pode salvar a democracia?

No Brasil, o STF já deu mostras de que, até aqui, com muito custo político-institucional — veja-se as correntes de ódio contra a Suprema Corte —, isso não foi apenas possível como foi necessário, se pensarmos nas decisões sobre a pandemia, o inquérito em autodefesa contra os ataques à corte (episódio que mais lhe gera críticas) e o quase-golpe de 7 de setembro de 2021 (em que ministro foi chamado de canalha).

Isso não é motivo para um "pânico institucional"? Bom, se você estiver em dúvida, ligue na Jovem Pan por cinco minutos e o coeficiente de pânico sobe para o grau máximo.

As eleições estão às portas. A corda está esticada. Torcemos pela institucionalidade. Pelo Direito. Pelo Estado Democrático de Direito. Pela democracia.

Como o Rubicão foi atravessado tantas vezes, a tarefa, no futuro, é evitar tais travessias. Bem antes. É a institucionalidade democrática que funciona como superego dos "rubicanheiros" e das vivandeiras.

Ou seja, para evitar a tentação da travessia do Rubicão os nossos limpadores de para-brisas devem estar up to date. Do lado de fora do carro, é claro. E, também, sempre bom ter um estoque de cera, suficiente para tapar os ouvidos dos marinheiros de Ulisses.

Continuo em "pânico institucional". Difícil expressar isso em palavras. É algo que aperta o peito. Temos o quarto para nos abrigarmos. Mas com quem está a chave?

Numa palavra final: como diz Jon Elster (quem criou a metáfora "constitucionalismo-correntes de Ulisses"), o problema não é explicar por que tantas constituições fracassam em impor obediência a seus criadores e nunca passam de meros pedaços de papel escrito. A questão está em compreender de que maneira muitas constituições conseguem adquirir essa misteriosa capacidade de serem obedecidas.

Qual será o nosso caso? Só Freud explica.

Bom, se o Direito nada pode dizer, porque só faz furo n'água, então talvez Freud, tão referido na cultura popular ("isso só Freud explica"!), possa ajudar. Está tudo ali, no livro Psicologia das Massas e Análise do Eu.

A formação do discurso foi tomada por agrupamentos de egos vivendo em pequenos rebanhos. Juntando esses grupos (redes sociais, hoje) e pela velocidade pós-moderna, temos o efeito rebanho. Manada.

Já não há opinião pública. Há apenas a opinião narrada. A liquidez dos fatos.

Ainda dá tempo para procurar na internet as freudianas explicações para entender comportamentos "tipo" jeffersonianas. Como já contei há algum tempo, tenho uma tia que... Bom, deixa pra lá. Vocês entenderam.

Numa palavra final: Freud explica que, se a psicologia do sujeito depende do contexto no qual ele se encontra, é preciso admitir que um outro ambiente pode permitir-lhe mudar de conduta.

Pronto. Mudemos o ambiente, pois.

 é jurista, professor de Direito Constitucional, pós-doutor em Direito e sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-out-27/senso-incomum-panico-institucional-perguntemos-freud-ele-explica