Em 2017, o Brasil aprovou uma reforma trabalhista que flexibilizou a legislação, entre outras coisas, reduzindo o papel da negociação coletiva e facilitando as contratações temporárias. Um dos exemplos seguidos pelo governo brasileiro à época, então sob comando de Michel Temer (MDB), era a Espanha. Contudo, no início deste ano, o país europeu aprovou uma reforma trabalhista no sentindo contrário, revertendo décadas de flexibilização e voltando a fortalecer o papel dos sindicatos e a priorização de contratos de trabalho sem prazo determinado.

Nesta quinta-feira, Clemente Ganz, sociólogo e assessor do Fórum das Centrais Sindicais (FCS), participou de um evento promovido pelo Sindicato dos Engenheiros do Rio Grande do Sul (Senge) sobre a reforma trabalhista brasileira. Na pauta de Ganz, as mudanças recentes na Espanha.

Antes da palestra, o sociólogo conversou com o Sul21 por telefone e explicou o processo de alteração das leis trabalhistas na Espanha e o que ele podem ensinar para o Brasil.

“O que a Espanha tinha como prevalente, tem ainda, era o contrato de curtíssima duração, que eram contratos temporários, predominantemente de curtíssima duração. Cerca de um terço desses contratos temporários tinham duração inferior a uma semana de trabalho. Eram contratos de dois ou três dias, ou seja, os trabalhadores tinham dezenas de contrato de curtíssima duração”, explica. “Ao longo do ano, chegavam a ter 30 vínculos de trabalho com a mesma empresa. (…) Esse tipo de coisa foi gerando, ao longo de anos e décadas, toda uma engenharia organizativa, onde mais de um terço dos postos de trabalho que eram gerados na Espanha eram contratos de curtíssima duração. Então, você observou uma precarização acentuada do mundo do trabalho, uma queda na massa salarial, portanto, perda de dinamismo na economia interna espanhola e uma queda na produtividade do trabalho. Ou seja, essas pessoas não agregavam capacidade produtiva e incremento de produtividade, porque a inserção delas era tópica, as empresas não faziam investimento em qualificação, em melhoria de processos de trabalho. O que se observou nessa pactuação [realizada no final de 2021] é que era preciso mudar a natureza da relação de trabalho para justamente ter uma dinâmica virtuosa de incremento de produtividade, de crescimento dos salários e crescimento da demanda interna resultado do incremento da massa salarial”, complementa.

Ganz também fez uma avaliação sobre o cenário trabalhista no mundo, notadamente sobre os desafios que os países vêm enfrentando para regular as modalidades de trabalho mediadas por aplicativos e plataformas.

“De 2008 para cá, mais de 140 países fizeram reformas trabalhistas predominantemente regressivas. Alguns países que tinham um nível de proteção muito baixo fizeram até a reforma também no sentido de melhorar, mas países muito pobres. No geral, os países que tinham sistemas mais robustos, principalmente na Europa, fizeram reformas regressivas, no sentido de flexibilizar o sistema de relações de trabalho. É da pandemia para cá que a gente começa a observar a iniciativa no sentido de reverter”, diz. “Tem várias iniciativas sendo tomadas, seja focadas no trabalho por aplicativo, seja de revalorização das negociações e das relações de trabalho. Mas isso é muito recente, praticamente pós-pandemia que começam no sentido de reposicionar, especialmente, o papel da negociação coletiva e, vamos chamar assim, de limitação dessas formas precárias de ocupação, de legalização de formas precárias de ocupação”.

A seguir, confira a íntegra da entrevista:

Sul21 – Como foi a reforma trabalhista feita pela Espanha?

Clemente Ganz: Bom essa reforma vem em um contexto de um novo governo na Espanha, que assume antes da pandemia e faz uma trajetória de enfrentamento da pandemia, como medidas pactuadas entre trabalhadores e empregadores. No desdobramento desse processo de enfrentamento da pandemia, eles abrem uma agenda para repensar o sistema de relações de trabalho na Espanha, as formas de contratação, com o objetivo, que era parte do projeto do governo e também dos compromissos que o governo espanhol assumiu com a União Europeia, de fazer uma revisão de quase quatro décadas de reformas trabalhistas feitas na Espanha e que criaram um descompasso muito grande entre o padrão de regulação do trabalho na Espanha com aquele observado na União Europeia.

O governo apresenta uma agenda de mudanças e, em vez de apresentar um projeto de mudanças que o governo proporia, como fez por exemplo o governo Temer aqui, o Congresso Nacional aprovando sem nenhum tipo de diálogo, o governo espanhol abriu uma mesa de negociação, que chamou de diálogo social, entre governo, empresários e trabalhadores, para formular uma proposta de mudança no sistema de relações de trabalho e de regulação, especialmente, das formas de contratação. Isso resulta num acordo um acordo celebrado no final de 2021, que se transforma em um decreto real, que é como se fosse uma Medida Provisória na Espanha, e em fevereiro desse ano é aprovado no Congresso Espanhol e, portanto, transformado na nova legislação que já passou a vigorar a partir do início desse ano.

Essa legislação aponta para uma reorganização do sistema de relações de trabalho, colocando prevalência sobre os acordos coletivos setoriais, dá empoderamento aos sindicatos para celebrarem essas convenções, esses acordos setoriais. Valoriza, portanto, a negociação coletiva. E redefine que o padrão de contratação na Espanha volta a ser o contrato por prazo indeterminado, uma resposta a uma prevalência do contrato parcial ou prazo determinado, que existe até hoje na Espanha, mas que deixa de ser prevalente.

Sul21 – Que é o chamado contrato de hora zero, por horas trabalhadas, não?

Clemente Ganz: Na verdade, o que a Espanha tinha como prevalente, tem ainda, era o contrato de curtíssima duração, que eram contratos temporários, predominantemente de curtíssima duração. Cerca de um terço desses contratos temporários tinham duração inferior a uma semana de trabalho. Eram contratos de dois ou três dias, ou seja, os trabalhadores tinham dezenas de contrato de curtíssima duração e isso era predominante no processo de contratação na Espanha. O que o acordo resultou foi a implementação de contratos por prazo indeterminado como prevalente, criando limite e restrições ao contrato temporário. Ele não tá extinto, ele cabe em várias situações, inclusive para qual ele deve se aplicar, a substituição, por exemplo, de uma mulher grávida é correto. Ou seja, um trabalho temporário para substituir aquela pessoa que está afastada do trabalho e vai voltar para aquele posto de trabalho. Então, esse é um contrato temporário com o objetivo bem definido, isso continua existindo. O que não pode mais é ter a prevalência de que qualquer trabalhador e qualquer empresa pode contratar por qualquer prazo, por um dia, por 12 dias, por três dias. Não mais, e, se assim o fizer, o curto dessa contratação é muito mais elevado do que um contrato indeterminado. E em muitos casos passa a não ser mais aceita esse tipo de contratação.

Sul21 – Esses contratos de dois ou três dias, isso causava uma rotatividade muito grande nos postos de trabalho ou eram as mesmas pessoas sendo contratadas, mas sempre temporariamente?

Clemente Ganz: Eram as mesmas pessoas, que ao longo do ano chegavam a ter 30 vínculos de trabalho com a mesma empresa. A empresa, naquele momento de sazonalidade, ela contratava o mesmo trabalhador. Na sexta-feira, quando eu preciso fechar o jornal, eu contrato o mesmo jornalista, mas paga um dia de trabalho. Esse tipo de coisa foi gerando, ao longo de anos e décadas, toda uma engenharia organizativa, onde mais de um terço dos postos de trabalho que eram gerados na Espanha eram contratos de curtíssima duração. Então, você observou uma precarização acentuada do mundo do trabalho, uma queda na massa salarial, portanto, perda de dinamismo na economia interna espanhola e uma queda na produtividade do trabalho. Ou seja, essas pessoas não agregavam capacidade produtiva e incremento de produtividade, porque a inserção delas era tópica, as empresas não faziam investimento em qualificação, em melhoria de processos de trabalho. O que se observou nessa pactuação [realizada no final de 2021] é que era preciso mudar a natureza da relação de trabalho para justamente ter uma dinâmica virtuosa de incremento de produtividade, de crescimento dos salários e crescimento da demanda interna resultado do incremento da massa salarial. Portanto, essa mudança visa simultaneamente melhorar a performance da economia, produtividade e demanda, e melhorar a qualidade dos postos de trabalho, mais proteção, mais estabilidade, melhores salários. É isso que faz parte e conforma. E é um acordo de transição, ou seja, economia começa a apresentar já ao longo desses anos resultados aonde começam a aparecer de forma muito mais presente nos resultados estatísticos a prevalência das ocupações com prazo indeterminado.

Sul21 – Clemente, eu gostaria de avançar um pouco, mas queria antes voltar à questão que tu falou dos acordos coletivos. Aqui no Brasil, a gente teve essa questão da prevalência de acordo coletivo, mas foi no sentido contrário, me parece. Não é exatamente a mesma coisa que aconteceu aqui no Brasil, correto?

Clemente Ganz: Então, o que eles fizeram na Espanha foi justamente reverter aquilo que o Brasil implementou. Lembra que, em 2017, o governo Temer e o Rogério Marinho no Congresso diziam: a Espanha é o nosso farol. Eles olhavam pra Espanha e diziam: vamos fazer aqui no Brasil um modelo semelhante ao que a Espanha vinha fazendo há 40 anos. E uma das coisas que fizeram lá foi tirar poder do sindicato para negociar, estabelecer que o acordo na empresa era mais importante do que o acordo setorial e é mais importante do que a própria lei, que foi que o Brasil fez. O Brasil fez mais do que isso, inclusive, dizendo que acordos individuais poderiam substituir a convenção coletiva e a própria lei. Ou seja, a pessoa poderia reduzir jornada, reduzir salário, coisas que a Constituição proíbe, mas a legislação autorizou e o próprio STF [Supremo Tribunal Federal] depois acabou convalidando, em uma decisão que fere um preceito constitucional.

A Espanha fez esse caminho e o Brasil copiou esse caminho em 2017. O que eles fizeram agora foi justamente rever essa dinâmica.


Eles voltaram a colocar que a negociação coletiva passa a ser executada pelo sindicato e a negociação coletiva prevalente, a negociação coletiva que é a base do sistema, é a convenção coletiva setorial. O acordo em uma empresa não pode reduzir o que uma convenção setorial definiu, coisa que no Brasil hoje pode acontecer e na Espanha também podia. Então, eles acabaram reorganizando e dizendo: a partir de agora, voltamos a ter uma convenção setorial e ela pode ser complementada por um acordo por empresa, desde que esse acordo seja melhor do que a convenção setorial. Mas um acordo por empresa não pode reduzir aquilo que foi pactuada numa convenção setorial. É uma coisa que nós devemos voltar a fazer aqui no Brasil. Deveremos, espero, recolocar essa relação, que não é a relação que está presente hoje. Hoje, no Brasil, o acordo por empresa vale mais do que uma convenção coletiva setorial.

Sul21 – A gente tem esse histórico de precarização das regras trabalhistas, o mundo vinha rumando nessa direção. Como tu mesmo disse, a flexibilização anterior na Espanha serviu de modelo ao Brasil. Te parece que essa revisão na Espanha tem condição de se adaptar às necessidades que o mercado de trabalho brasileira enfrenta, como na questão da uberização, na plataformização? Eles responderam algo nesse sentido ou é um caso diferente na Espanha?

Clemente Ganz: Veja, a gente tem que pensar em dimensões estruturantes, ou seja, em movimentos estruturantes da economia e do mundo do trabalho. O fundamento é de que nós vivamos, como país, uma estratégia de desenvolvimento econômico orientada pelo incremento de produtividade, portanto pela capacidade de agregar valor na economia, e essa capacidade demandar qualidade no mundo do trabalho. É essa dinâmica que precisa ser impulsionada no Brasil para que a gente tenha uma dinâmica que puxe, que demande geração de empregos de qualidade, portanto investimento em formação, em qualificação de mão de obra, e assim por diante. É isso que gera emprego de qualidade e crescimento dos salários, não é o que nós temos hoje. Nós temos uma economia de baixa agregação de valor, de péssima estruturação da produtividade, inclusive os resultados estão aí. Estamos gerando milhares de empregos de baixa escolaridade, de baixos salários e alta precarização. Então, essa dinâmica hoje presente gera posto de trabalho de péssima qualidade, cuja reforma trabalhista de 2017 veio recepcionar. Ou seja, é uma reforma muito boa para esse mundo do trabalho que existe hoje, porque ela reconhece a precarização e diz: está legalizada a precarização. É isso que essa reforma fez. Portanto, a legislação está em conformidade com o mundo precário, reconhecendo que ele existe e dando legalidade a ele, dando as empresas a possibilidade de contratar da forma precária que quiser. O que nós temos que imaginar é que, se a gente consegue ter uma dinâmica virtuosa de crescimento econômico, nós temos que ter uma legislação que propicie que a distribuição dos resultados econômicos repercuta em bons empregos, em crescimento dos salários e da proteção social e laboral. Se a gente pensar nessa perspectiva, de um lado podemos dizer: ‘Olha, para isso, nós temos que ter o fortalecimento da negociação e o sindicato disputar o resultado do produto do trabalho, portanto o crescimento dos salários e da melhoria dos postos de trabalho’. De outro lado, uma legislação que olhe para o conjunto da força de trabalho e vá gerando para esse ambiente e dinâmica econômica o mundo da proteção social, laboral e previdenciária adequado a essas transformações. No caso brasileiro, um desafio enorme de gerar um sistema de proteção que dê efetividade à dimensão social, trabalhista e previdenciária para metade da força de trabalho que está excluída dessa produção. Então, é preciso, para além de fortalecer a negociação que protege uma parte da força de trabalho, aquela assalariada clássica, aquela que está ali na tangente dessas relações, terceirizadas e assim por diante, pensar um sistema que negocie a proteção dessa força do trabalho. Mas há uma parte da força de trabalho que não está em relações assalariadas clássicas, que precisa e que merece proteção, e que cuja proteção precisa ser criada, e há uma força de trabalho é presente nesse mundo cuja base não está necessariamente assentada nesses conceitos clássicos que estavam em vigor até agora. O autônomo por conta própria ou o assalariamento. Nós temos o trabalhador mediado por aplicativo, por plataformas que estabelecem relações de trabalho, mas não necessariamente relações de trabalho assalariada clássica, um empregador e um trabalhador. São trabalhadores, muitas vezes, com relações de trabalho com várias empresas e com relações de trabalho para vários consumidores, cuja proteção e cujo reconhecimento da relação de trabalho rebatido nas responsabilidades que as empresas e os consumidores terão, e os próprios trabalhadores, são responsabilidades que precisam ser definidas e atribuídas, assim como os benefícios das partes. Portanto, não adianta a gente dizer: Olha, é um trabalhador do Uber, ele tem uma relação assalariada com o Uber. Ele trabalha para o Uber, trabalha para o iFood trabalha, trabalha para várias empresas. Como que a gente resolve esse problema de um trabalhador que está inserido nesse tipo de atividade? Tem que perguntar se essa atividade deve continuar existindo. Se ela continuar existindo, que tipo de relação é essa e que tipo de proteção é dada efetivamente a esse trabalhador.

Sul21 – Essa solução vem pelo reconhecimento de vínculo, mesmo que seja de múltiplos vínculos para quem trabalha para várias empresas? Ou isso passa, no caso específico do Brasil, por uma rede de proteção social que dê suporte a esses trabalhadores? Como tu vê esta solução?

Clemente Ganz: Primeiro, é importante destacar que o debate especificamente sobre esse mundo do trabalho que a gente destacou agora, o trabalho para o aplicativo, é objeto de debate no mundo todo. Os países todos estão se defrontando com esses desafios e procurando estabelecer padrões regulatórios, definindo. É uma diversidade grande de inserções ocupacionais, você tem várias e várias situações muito diferentes. O que está justamente tentando se produzir mundo afora é uma leitura dessa dinâmica e rebater sobre essa dinâmica proteções trabalhista, social e previdenciária. Reconhecendo, de um lado, que esse tipo de vínculo está associado a um tipo de atividade que aparece que ninguém sabe exatamente para onde que ela vai. Ela sofre tantos impactos e transições que ninguém sabe exatamente como que ela se estruturará no médio e longo prazo, portanto, provavelmente é preciso pensar um sistema de proteção que vai acompanhando a própria mudança desse mundo econômico, dessa atividade, mas que tem que gerar um conceito, uma criação de uma abordagem, que garanta a proteção a esses trabalhadores similares àquela proteção gerada aos trabalhadores assalariados clássicos. Em uma situação que não é de assalariamento clássico, mas, na minha visão, exigirá responsabilidades por parte dessas empresas. Não sei exatamente qual o nível de responsabilidade, mas exigirá. Exigirá responsabilidades, provavelmente, por parte dos consumidores e exigirá responsabilidade por parte do Estado e também por parte do trabalhador. De que forma? Bom, nós vamos ter que criar essa forma. Eu sempre uso como exemplo pra gente pensar, que no governo Dilma nós conseguimos a regulação do direito de proteção, de vínculo de trabalho, para trabalhadora doméstica. Mas nós conseguimos isso para trabalhadora doméstica mensalista. Por quê? Porque mesmo o empregador sendo uma família, que não é uma empresa, o vínculo de trabalho mensal repercutia em formas de materializar esse direito similar a um trabalhador mensalista de uma empresa qualquer. Por que a gente não regulou esse mesmo direito para trabalhadoras domésticas diaristas? Porque elas tinham múltiplos vínculos de trabalho ao longo da semana e ao longo do mês, com múltiplos empregadores. A complexidade de fazer a regulação dessas atribuições e responsabilidades não é a mesma coisa. Vou te dar um exemplo: a trabalhadora doméstica que atua na minha casa e na tua, ela sofre um acidente na minha casa e fica um mês sem poder trabalhar. É um direito dela de ter o salário garantido, a substituição e todos os direitos dela. Bom, mas ela se acidentou da minha casa, né? O que acontece com o trabalho feito na tua casa, onde ela não se acidentou? Se tu é um consumidor e não é responsável pelo acidente, como é que fica esse atendimento? Ela vai ficar ausente do trabalho da minha casa e na tua vai ter que trabalhar? Isso não pode. Então, você vai ter que criar instrumentos que deem a solidariedade nas responsabilidades desses múltiplos empregadores. Então, quando você contrata um trabalhador diarista na tua casa, você sabe que você está de forma solidária assumindo corresponsabilidades com outros empregadores e, portanto, nós vamos compartilhar riscos, que é desse trabalhador se acidentar em algum dessas locais e todos eles repercutirem esse risco. Bom, isso é uma cultura. Esse tipo de coisa exige um padrão regulatório que é muito diferente de pensar uma regulação de vínculo assalariado clássico que a gente inventou e hoje é dado como natural.

Sul21 – Além da Espanha, que outros países promoveram nos últimos anos reformas no sentido de aumentar a proteção dos trabalhadores e a proteção social na contramão dessas reformas neoliberais que a gente tem visto, como tu disse, nos últimos 40 anos?

Clemente Ganz: De 2008 para cá, mais de 140 países fizeram reformas trabalhistas predominantemente regressivas. Alguns países que tinham um nível de proteção muito baixo fizeram até a reforma também no sentido de melhorar, mas países muito pobres. No geral, os países que tinham sistemas mais robustos, principalmente na Europa, fizeram reformas regressivas, no sentido de flexibilizar o sistema de relações de trabalho. É da pandemia para cá que a gente começa a observar a iniciativa no sentido de reverter. A Espanha é um caso, e é um caso porque a União Europeia olha para a Espanha como um país que estava com um nível muito rebaixado do ponto de vista trabalhista e diz: Ó, para você permanecer como membro aqui da União Europeia, você tem que se aproximar do que o padrão europeu. Então, você tem uma mexida nesse caso.

Você tem um outro caso, por exemplo nos Estados Unidos, que com Biden começa a fazer um processo de revalorização do sindicato, da negociação coletiva e das políticas públicas do trabalho. Por exemplo, eles voltaram a revalorizar uma política pro salário mínimo e estão procurando iniciativas no sentido de garantir proteções sindicais, direito à sindicalização e assim por diante.

O México está fazendo o processo de revisão trabalhista também procurando recolocar a negociação de estrutura sindical em um novo padrão regulatório. A Argentina está fazendo um esforço de regulação no trabalho por aplicativos, especificamente. O Equador está fazendo coisas também.

Alguns estados americanos, como a Califórnia e Nova York, estão fazendo iniciativa também de regulação do trabalho por aplicativo. Tem várias iniciativas sendo tomadas, sejam focadas no trabalho por aplicativo, seja de revalorização das negociações e das relações de trabalho. Mas isso é muito recente, praticamente pós pandemia que começam no sentido de reposicionar, especialmente, o papel da negociação coletiva e, vamos chamar assim, de limitação dessas formas precárias de ocupação, de legalização de formas precárias de ocupação. Isso, por exemplo, na Europa, está fortemente associado aos imigrantes. Os precários na Europa, predominantemente, são imigrantes, que também sofrem com os ataques de toda a direita que combate as migrações. Portanto, não é uma luta só trabalhista, também tem a luta política junto. Os partidos de direita, no geral, não só vem dizendo que querem mandar os imigrantes para fora, como não querem dar nenhum direito trabalhista para que ele fique. Então, você tem várias dimensões associadas a essa disputa regulatória. No caso brasileiro, não é a mesma coisa. Nós não estamos falando da regulação do trabalho do imigrante, estamos falando da regulação de metade da força de trabalho, de pessoas que aqui vivem e que não tem proteção laboral, uma coisa muito diferente do ponto de vista do impacto socioeconômico.

Agora, é muito recente essa guinada de recolocar a negociação, o papel do sindicato, ainda não é predominante. Ainda predomina em boa parte esse discurso neoliberal, do indivíduo acima do coletivo, que o sindicato só atrapalha, flexibilidade para contratação, meritocracia, todos os princípios que foram recepcionados nas reformas feitas. No caso da Espanha, um país que primou por sofisticou as iniciativas neoliberais no mundo do trabalho. E se deram mal, o resultado é péssimo para a economia e para a vida em sociedade.

Fonte: Sul 21
Texto: Luís Gomes


Data original da publicação: 19/09/2022

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