OPINIÃO

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No dia 25 de fevereiro de 2022, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por seis votos a cinco, o direito dos aposentados a incluírem em seus benefícios os salários de contribuição anteriores a julho de 1994. Isso ocorre pois, em virtude de uma regra de transição, os salários anteriores a este período não são considerados para o cálculo da renda mensal inicial do benefício previdenciário, o que resulta em prejuízos financeiros a grande parte dos segurados,

Porém, é princípio fundamental do direito que uma regra de transição nunca pode ser pior do que a definitiva. Diante de tamanha aberração jurídica, o reconhecimento desse direito revisional pelo STF foi uma vitória constitucional e social, tendo gerado esperança de dias melhores a todos os idosos que dependem dos valores pagos pelo INSS.

Entretanto, no dia 8 de março de 2022, com todos os votos já publicados e faltando poucos minutos para o fim do prazo do julgamento ocorrido no plenário virtual, o ministro Nunes Marques — inusitadamente — apresentou um pedido de destaque.

Tal mecanismo tem por objetivo tornar a debater de forma ampliada e irrestrita o tema no plenário físico e ocorre, normalmente, nos casos em que novas provas e relevantes dados foram apresentados pelas partes, podendo gerar uma mudança de entendimento por parte do colegiado.

Obviamente, não é esse o caso da revisão da vida toda (tema 1.102 — STF), cujo mérito já havia sido exaustivamente debatido, com inúmeras sustentações orais pelas partes, apresentações de memoriais intermináveis, e com todos os votos muito bem fundamentados e já publicados, inclusive o divergente/perdedor de autoria do ministro Nunes Marques.

Por consequência dessa manobra ardilosa e descabida, que tem por objetivo desesperado mudar o placar do julgamento, o tema será remetido sabe-se lá quando ao plenário físico, para que todos os ministros apresentem novamente os mesmos votos já apresentados anteriormente.

O grande imbróglio nesse caso é sobre o voto proferido com excelência pelo ministro aposentado Marco Aurélio de Mello, que foi acolhido pela maioria de seus colegas de toga, mas pode ser apagado dos autos, caso o presidente do STF, ministro Fux, opte de maneira equivocada por não mantê-lo e dar, ao ministro André Mendonça, uma belíssima oportunidade de jogar o trabalho árduo e brilhante da Suprema Corte e de renomados juristas no lixo.

No mesmo ato, vão para o lixo, também, as esperanças de uma vida um pouco menos sofrida para os inúmeros aposentados que seriam justamente beneficiados com a revisão. Aposentados estes que tem, em sua maioria, idade avançada e ficarão a ver navios até que o processo seja colocado em pauta novamente. Vale ressaltar que a justiça tardia se torna injustiça institucionalizada, haja vista que, em virtude da ordem natural, o final da vida dos "grandes" beneficiários desses processos está próximo, impedindo que eles recuperem o que é efetivamente devido.

Paralelamente ao tema 1.102, não é a primeira vez que o pedido de destaque é utilizado pelo ministro Nunes como forma de tentar manipular os resultados desfavoráveis aos interesses do presidente da república. Tal manobra já foi, inclusive, elogiada pelo senhor presidente Jair Messias Bolsonaro — que, no auge de seus 67 anos, não depende e jamais dependerá da previdência social.

O ministro, utilizando-se tortamente do destaque, interferiu no julgamento de inúmeras causas que, se aprovadas, sairiam demasiadamente caras ao Planalto. De fake News à vacina, passando por armas de fogo, Amazônia, Moro e temas LGBTQIA+, o magistrado tem deixado claro que, conforme disse o senhor Jair, 10% do STF representa exclusivamente os interesses do Planalto:

"'Quando se fala em pautas conservadoras, ele já pediu vista de muita coisa que tem que a ver com conservadorismo. Porque, se ele apenas votasse contra, ia perder por oito a três, ou dez a um. A gente não quer perder por oito a três ou dez a um. A gente quer ganhar o jogo ou empatar. Ele está empatando esse jogo', afirmou Bolsonaro em novembro, 'Hoje eu tenho 10% de mim dentro do Supremo', acrescentou sobre Nunes Marques.".

A resolução 642 do STF criou o mecanismo do "destaque". Entretanto, restou ao código de processo civil disciplinar a forma e o momento correto para sua aplicação, que, evidentemente, não é após a publicação dos 11 votos e com o resultado definido a favor dos aposentados e contra os interesses do ministro Nunes.

A título de exemplo ilustrativo, o advogado deve apresentar sua sustentação oral antes da exposição da decisão do plenário e, caso não o faça no momento adequado, perderá seu direito de expor suas razões. O mesmo ocorre com o destaque; o momento correto para que o seja apresentado é, evidentemente, o anterior à publicação dos votos pelo Colegiado. Portanto, no instante em que o ministro Nunes abriu a divergência com a publicação de seu voto, ocorreu a preclusão consumativa do direito de apresentar qualquer outro pedido, independente de qual seja. Levando em consideração a legislação processual e a inexistência de fatos novos após a publicação do Voto, a conduta manipuladora e fora do prazo do ministro Nunes Marques não deve ser aceita por seus pares, assim como a conduta preclusiva do citado advogado ilustrativo também não seria.

Apesar de o excelentíssimo ministro ter utilizado de um artificio criado e permitido pelo regimento interno do STF, a forma que o fez passou longe da decência, tendo em vista a desvirtuação de seu fim e as consequências devastadoras de tamanha indecência jurídica.

Aliás, em tempos obscuros como os que estamos atravessando, é sempre bom relembrar e evidenciar o significado da palavra decência:

"Decência:
1. conformidade com os padrões morais e éticos da sociedade; dignidade, correção, decoro.
2. conformidade com o que se espera da sua apresentação, qualidade, utilidade etc.

FONTE: Oxford Languages"

Ter decência é, resumidamente, muito mais do que somente aplicar as normas jurídicas. É aplicá-las em conformidade com o espírito do legislador constitucional, de modo a trazer dignidade e corrigir as injustiças causadas aos mais frágeis e vulneráveis.

Não é decente, etimologicamente falando, utilizar -se do poder do cargo que ocupa para interferir, ardilosamente, em um julgamento que já havia finalizado, no qual todos os 11 ministros apresentaram seus votos muito bem fundamentados e no qual os aposentados haviam se consagrado vencedores.

A forma de agir do ministro Nunes Marques, além de vergonhosa, passa longe da decência esperada de um Ministro do Supremo Tribunal Federal e evidencia que seus interesses e os interesses do Planalto se sobrepõem aos interesses da Corte Constitucional.

Tal modus-operandi cria um precedente perigoso no órgão, diminuindo ainda mais a segurança jurídica no nosso país e menosprezando a importância das decisões impostas pelo Colegiado, que, a partir do momento que vão em desencontro com os interesses políticos, podem ser anuladas ou enterradas a toque de caixa.

A título de complementação, vale lembrar do conceito de Reserva Institucional, trazido por Steven Levitsky, pelo qual se defende que não basta seguir as normas que estão escritas na lei, mas, também, seguir as que não estão escritas em nenhum código ou regimento. É necessário seguir um código de atuação moral decente.

Em um cenário com tantos problemas como os enfrentados em nosso país, é impossível criar regras, normas e códigos que disciplinem toda e qualquer conduta, eventualmente, adotada para um funcionamento decente das instituições. É necessário que os indivíduos que efetivamente atuam à frente destas instituições não somente operem o direito material, mas também sigam um código de atuação moral decente. Como consequência, devem agir com ética e de forma honesta com os demais, ou seja, seguir as regras do jogo! Conduta que o INSS não tem adotado e muito menos o ministro Nunes Marques.

A pior parte nisso tudo é que quando um dos lados não tem decência e age de forma indecente, o outro lado se sente um completo idiota em tê-la. Eventualmente, em um cenário imaginário, o outro lado também se sentiria no dever de não ser decente e, então, entraríamos em uma espécie de espiral da decência, no qual cada lado faria o que lhe coubesse sem se importar com os demais, com as regras e com os resultados devastadores de suas ações.

Ao final, fica o questionamento: quão forte é a decência daqueles que estão à frente das instituições, quando contraposta com a indecência do sistema?

Processualmente, o não reconhecimento do pedido de destaque pelo ministro presidente do STF, bem como a manutenção do excelente voto do ministro Marco Aurélio de Mello é a única medida correta que se impõe.

Seguimos confiantes, ainda que indignados, pois moralmente falando, a decência se encontra junto da vitória dos aposentados, mesmo que, mais uma vez, a indecência tenha atentado contra este tribunal.

 é advogado e sócio do escritório Marcos André Advocacia Previdenciária.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-mai-18/gabriel-almeida-indecencia-pedido-revisao-vida-toda