Comentário sobre “O solo movediço da globalização”, de Thiago Aguiar, destacando que o livro decifra alguns dos mecanismos de funcionamento da Vale.

Ricardo Antunes

FonteBlog da Boitempo
Data original da publicação: 25/04/2022

Quando fui pela primeira vez a Marabá, tive uma daquelas sensações que um sociólogo crítico jamais esquecerá. Algo similar ao que senti quando, anteriormente, estive em Criciúma, visitando uma mina de carvão. Na viagem ao Pará, ao sobrevoar a cidade e me aproximar dela, pude ver uma fotografia desoladora. Crateras imensas se esparramavam, desertificando completamente o espaço. Era a herança da horrorosa “era do ouro” da Serra de Carajás, tão cultuada pela ditadura militar.

Não são poucas as atividades econômicas que flertam com a predação e a exploração mineral, e assim enfeixam um trágico entrelaçamento entre a destruição da natureza e a devastação do trabalho.

Para melhor compreender esse complexo, o livro de Thiago Aguiar – apresentado originalmente como tese de doutorado (sociologia, USP) – é agora publicado pela coleção Mundo do Trabalho. O texto analisa a Vale desde sua origem estatal até sua conversão em corporação global.

Em 2007, uma década depois da privatização pelo governo FHC, a empresa modificou seu nome de Companhia Vale do Rio Doce para Vale. E muito rapidamente foi responsável pelas duas maiores tragédias ambientais de nossa história, em Mariana e Brumadinho. A dupla catástrofe resultou em quase 300 mortos, arrasando o rio Doce e seu lindo vale e soterrando a bela e pacata Brumadinho. Dilapidação da natureza, assolação do trabalho e vilipêndio da humanidade, tudo junto e amalgamado na extração mineral.

Decifrar alguns dos mecanismos de funcionamento da empresa, eis o objetivo central de O solo movediço da globalização: trabalho e extração mineral na Vale S.A. Como ela se relaciona com seus milhares de trabalhadores e trabalhadoras? Como age em relação aos sindicatos? Por que foi no solo dessa empresa – que se diz praticante da “responsabilidade social e ambiental” – que ocorreu a deflagração de uma das maiores greves do setor, no Canadá, onde a Vale também atua?

Num estudo meticuloso, o autor realizou pesquisas de campo com operários e sindicalistas (no Brasil, no Canadá e nos Estados Unidos) e ouviu também atuais (e antigos) gestores da empresa. Realizou várias incursões etnográficas em Carajás, onde se localizam as maiores minas de ferro a céu aberto do mundo, e em São Luís do Maranhão, onde estão situadas as suas principais instalações portuárias.

Dada a dimensão global da Vale, sua investigação o levou também à unidade canadense, em Ontário, onde realizou entrevistas. Lá mesmo, a corporação atuou para desorganizar uma antiga comunidade mineira e enfraquecer o importante sindicato dos mineiros (United Steelworkers), e assim impedir a deflagração de greves. Sabemos que é um princípio basilar dos CEOs que se esparramam pelo “mundo corporativo” agir obstinadamente para impedir ou isolar os sindicatos e dificultar a união e a organização dos operários e operárias.

Por fim, o livro apresenta também os resultados do estudo das relações entre a Vale e os governos (particularmente os de Lula e Dilma); o papel agudo dos fundos de pensão no processo de privatização; e a atuação “generosa” do BNDES, que incentivou a Vale a dar o salto que possibilitou a sua conversão em uma pujante corporação global.

Descortinando, passo a passo, o modus operandi corporativo, O solo movediço da globalização é uma obra atual, forte e original, que nos ajuda a entender a nefasta imbricação entre a destruição da natureza e a dilapidação do trabalho no mundo da extração mineral.

Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

https://www.dmtemdebate.com.br/entre-a-destruicao-da-natureza-e-a-dilapidacao-do-trabalho/