Frente à disparada dos preços e à explosão do desemprego, é preciso oferecer novos horizontes políticos. Inspiração pode vir do movimento contra a carestia que, em plena ditadura, mobilizou ruas e entidades. Mas Lula ainda opta por “jogar parado”

As páginas de economia dos jornalões e as telinhas dos grandes meios de comunicação não conseguem mais deixar de mencionar a escalada de preços que vem ocorrendo em nossa sociedade ao longo dos últimos meses. Ao que tudo indica, até mesmo o quarto ano consecutivo da presença do todo-poderoso super-ministro Paulo Guedes no comando da economia vai se revelar um desastre completo. Aquele que era saudado por grande parte das elites tupiniquins e dos operadores do mundo do financismo como o redentor de todos os nossos pecados, na verdade vai entrar para a história como o destruidor do Estado e o desmontador das políticas públicas. Mas também vai ficar reconhecido por sua mais completa incompetência para solucionar problemas macroeconômicos básicos em conjuntura adversa. A se confirmarem a expectativas do próprio sistema financeiro para o ano em curso, o quadriênio 2019/22 deverá registrar um crescimento nulo das atividades econômicas medidas pelo PIB.

A persistência da equipe do aprendiz de banqueiro em menosprezar o fenômeno da retomada da inflação como um assunto sério e com graves consequências em termos sociais e políticos começa a incomodar aquele que é candidato à sua própria reeleição ao Palácio do Planalto. Os responsáveis pelo Ministério da Economia e pelo Banco Central insistem em considerar o aumento do IPCA como mera consequência de um aumento desproporcional da demanda sobre a oferta. Assim, a única solução que conseguem enxergar em sua miopia econômica é o esfarrapado recurso ao aumento da taxa oficial de juros. E foi exatamente o que fizeram. Ao longo dos últimos 12 meses, a SELIC saiu do patamar de 2% ao ano para chegar aos atuais 11,75%. Mas ao contrário do prometido pelo povo do financismo, a inflação não arrefeceu. Muito pelo contrário, os preços continuaram a subir.

Essa insistência da realidade em negar os modelitos de planilha dos neoliberais de carteirinha terminou por provocar – ora, vejam só! – uma reação inusitada do Presidente do Banco Central. Para Roberto Campos Neto, a grande dúvida permanece sendo a busca de uma explicação razoável para a ausência de crescimento de nosso PIB, mesmo depois de eles terem implementado a agenda das reformas. É provável que daqui a pouco ele também venha a público para colocar a dúvida sobre as razões para tal persistência da inflação, apesar da explosão da taxa de juros. É a tal da teimosia do fenômeno real, que insiste em incomodar as certezas das simplórias explicações de gabinete da tecnocracia.

Inflação prejudica os mais pobres

Ocorre que a conjuntura dos últimos anos tem promovido a cruel combinação de um aumento generalizado nos preços com a permanência de desemprego em níveis bastante elevados. Acrescente-se a esse quadro a redução significativa na renda das famílias, em especial aquelas situadas na base de nossa pirâmide da desigualdade. Essa radicalização da crise social encontra sua expressão mais trágica no aumento da violência urbana e da marginalidade, com a ampliação do número de famílias em condições de fome e de miséria. De acordo com cálculos do DIEESE, o salário mínimo reajustado para 2022 não consegue comprar nem mesmo 2 cestas básicas em grande parte das capitais do país.

As gerações mais novas talvez não estejam muito habituadas ao termo “carestia”. De acordo com o dicionário Houaiss, as alternativas de definição seriam:

(…) “carestia: 1. escassez de víveres ou de determinado produto; 2 p.ext. encarecimento do custo de vida” (…)

Infelizmente, essa combinação de escassez de acesso aos produtos, o aumento de seus preços e a redução da renda disponível das famílias é fenômeno social recorrente em nossa sociedade. Há quase 50 anos atrás, durante a ditadura militar, o Brasil conheceu o fortalecimento de um amplo movimento para denunciar e enfrentar esse aprofundamento do quadro de crise social. Durante a década de 1970 foi organizado o “Movimento Contra a Carestia” (MCC), que aglutinou diferentes setores e entidades por todo o território. Com forte presença nos movimentos populares nas periferias das grandes metrópoles, o MCC também era conhecido por Movimento do Custo de Vida (MCV) e contribuiu para formação de importantes lideranças e chegou a encaminhar ao governo do general Geisel e ao Congresso Nacional um abaixo-assinado com mais de 1 milhão de assinaturas, um recorde à época. A proposta era de congelamento dos preços de alimentos e itens de maior necessidade, além da reivindicação de mais creches e escolas.

Em vez jogar parado, Lula deve ampliar a mobilização popular

Ora, a aproximação da data das eleições faz com que as dificuldades enfrentadas por Bolsonaro nas esferas política, econômica e social se reflitam também na liderança de Lula na preferência da população quando indagada a respeito de suas intenções de voto. A dificuldade do governo em retomar o ritmo de crescimento da economia, a existência de um nível preocupante de desempregados, a memória recente das mais de 600 mil mortes pela covid-19, os sucessivos escândalos públicos de corrupção na antessala do presidente e o nível estratosférico dos preços de alimentos e derivados de petróleo são fatos mais do que evidentes. No então, o que mais surpreende os analistas é que eles não estejam encontrando a contrapartida adequada em termos das denúncias da oposição e do quartel-general da campanha de Lula.

A estratégia de priorizar os contatos e articulações “por cima” para assegurar a vitória na disputa de outubro acaba por deixar relegada a um segundo plano a tarefa política fundamental e emergencial de organizar os setores mais afetados pelo aprofundamento da crise econômica e social. A opção do ex-presidente por “jogar parado” implica uma aposta arriscada e equivocada de que a eleição já estaria definida “a priori” e de que tudo deve ser feito para evitar qualquer tipo de acirramento da conjuntura. Ocorre que a distância de pouco mais de seis meses que nos separa do primeiro turno se assemelha a uma eternidade na atual dinâmica política em que estamos mergulhados. A oposição não pode menosprezar a capacidade de Bolsonaro promover mudanças no estado de ânimo da população, como já ocorreu quando promoveu a ampliação do auxílio emergencial à época mais aguda da crise sanitária.

O anúncio de que pretende demitir o presidente da Petrobrás indicado por ele há pouco mais de um ano, general Luna e Silva, se encaixa bem na estratégia de Bolsonaro de buscar retirar a sua própria responsabilidade na elevação dos preços dos derivados. Tudo seria culpa dos governadores pelo ICMS e desse “pessoal” da empresa de economia mista, como se ele não fosse o Chefe do Executivo, que detém a maioria dos votos na assembleia de acionistas da companhia. Na verdade, ele manteve e aprofundou a criminosa política de preços da Petrobrás (PPI), uma criação “genial” de Pedro Parente e Henrique Meirelles, logo depois do golpe que depôs Dilma Rousseff e instalou Michel Temer no Palácio do Planalto. Desde aquele momento, em 2016, os preços internos de gasolina, diesel e gás de cozinha passaram a ser reajustados de acordo com a variação dos preços do barril de petróleo no mercado internacional. Uma loucura!

O exemplo do Movimento Contra a Carestia

Mais de cinco anos depois da vigência de tal excrescência e sentindo o peso da impopularidade na reta final, Bolsonaro resolve agir. A ver como vai tentar solucionar a crise e qual a narrativa que vai adotar para convencer a população de que está indo contra os poderosos, que mais uma vez tentam impedi-lo de governar.

De qualquer maneira, ainda está em tempo para ampliar a mobilização popular por todo o Brasil, criando comitês de campanha nos municípios, nos bairros e nos locais de trabalho. É fundamental oferecer concretude a esse sentimento geral e difuso do anti-bolsonarismo. Não basta oferecer apenas a promessa de uma redenção por meio da pré-candidatura de Lula e pedir para o povo esperar até outubro e depois até janeiro para a posse, em caso de vitória. É necessário aproveitar o desejo de mudança e apresentar as propostas para solucionar questões essenciais para o dia a dia da maioria da população.

Caso contrário, esse receio injustificável de colocar o povo em movimento, pode oferecer o caminho para Bolsonaro seguir mantendo de forma proativa a inciativa política e apresentar propostas de solução (ainda que parcial) da questão da inflação como se fossem ideias exclusivamente suas. Se ele demitir o general da Petrobrás e mudar a política de preços dos derivados, por exemplo, como fará a oposição para denunciar tão tardiamente a manobra há muito anunciada e oferecer suas ideias para questão?

A história e o sucesso do Movimento Contra a Carestia deveriam servir de exemplo e de inspiração para as lideranças da oposição. Já é passada a hora de contribuir para dar vez e voz à mobilização popular contra a situação dramática das condições de vida da maioria de nosso povo. Essa é a verdadeira forma de promover a necessária combinação entre a ampliação da luta política, o debate de alternativas ao modelo atual e o oferecimento da alternativa eleitoral.

Blog Outras Palavras

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