Queda em home office configura acidente de trabalho
Karina Nunes Fritz

O ano está acabando e parece que estamos revivendo o final do ano passado, quando, no momento em que achávamos que o pior havia passado, estourava a segunda onda de Covid-19 na Europa. É frustrante constatar que, passado dois anos, a pandemia ainda causa surpresas desagradáveis.

Quando muitos pensavam que tudo estava voltando à normalidade ou, com o perdão do clichê, ao "novo" normal, no qual máscaras e álcool gel viraram adereços indispensáveis aos humanos, eis que estoura uma quarta onda de Covid-19 no continente europeu por causa do baixo índice de vacinação e da propagação da variante africana do SARS-CoV-2 (Omicron).

Com efeito, a baixa taxa de vacinação nos países pobres e nos países ricos da Europa, onde não há vacinação obrigatória, foram os ingredientes perfeitos para o estopim de uma nova onda de contágio nesse fim de ano, que colocou o mundo em alerta novamente, levando várias cidades brasileiras a - preventivamente - cancelar as festas de fim de ano, apesar da gritaria generalizada do comércio local.

Na Alemanha a situação está pior que no início da pandemia em 2020, com todos os leitos de tratamento intensivo ocupados e hospitais - e corpo clínico - sobrecarregados devido à indisposição da população em se vacinar.

As razões para a recusa da vacina são complexas e variadas, não se resumindo ao simples negacionismo dos "covidiotas" (tradução do alemão: Covidioten, termo criativo usado para designar a parcela da população que nega a existência e/ou a gravidade do vírus e da pandemia). Há aí, também, um fundo histórico que remonta às intervenções e perversões corporais cometidas pelo Estado durante a ditadura nacional-socialista.

Para completar o quadro de mudanças, chegou ao fim a "Era Merkel". Este mês, a Chanceler Angela Merkel passou o cargo ao social-democrata Olaf Scholz, que foi oficialmente empossado dia 8/12/2021 como o novo Chanceler da Alemanha.

Depois de dezesseis anos conduzida - legitimamente, frise-se - pelo Parlamento alemão ao cargo, Merkel encerra sua missão e entra para a história como a primeira mulher a comandar a maior potência europeia e, acima de tudo, como uma estadista comprometida com a defesa da democracia, da liberdade, do pluralismo, do ser humano, do respeito e da tolerância - valores tão caros no mundo atual.

E o sucessor de Merkel já sinalizou a intenção de fechar o cerco contra aqueles que não querem se vacinar, manifestando-se favorável à edição de lei pelo Parlamento que torne a vacinação de Covid obrigatória. Em 10/12/2021, o Bundestag deu o primeiro passo nessa direção tornando a vacina obrigatória para determinadas atividades profissionais.

A expectativa é que se amplie cada vez mais o círculo subjetivo da imunização obrigatória se os estímulos ao comparecimento espontâneo aos postos de vacinação continuarem ineficazes. Afinal, os não imunizados põem em risco a si mesmos, mas ainda a sociedade e a economia.

A partir de agora, todo o pessoal que trabalha em hospitais, clínicas, consultórios, serviços de atendimento emergencial, casas de saúde, abrigos e assemelhados precisam se vacinar, conforme disposição expressa da lei de proteção contra infecções (Infektionsschutzgesetz).

O objetivo da norma é proteger melhor as pessoas idosas e/ou com doenças preexistentes contra o contágio através daqueles que, podendo, não querem se vacinar1. Até 15/2/2022, todo esse pessoal precisa apresentar comprovante de vacinação ao empregador, sob pena de demissão por justa causa.

Ficam fora da regra, obviamente, aqueles que não podem tomar o imunizante por razões médicas devidamente comprovadas. Os empregadores, por sua vez, devem arquivar tais documentos e apresentar, caso solicitado, ao Ministério da Saúde, sob pena de multa2.

A fim de acelerar a campanha de imunização, o governo permitiu que a vacinação seja feita a partir de agora em farmácias, consultórios médicos e odontológicos, e até em clínicas veterinárias, desde que devidamente autorizados.

Além disso, estão novamente em vigor diversas medidas restritivas, podendo cada estado ou município, com base em lei federal, decretar medidas mais drásticas de acordo com o agravamento da situação pandêmica, como o fechamento de estabelecimentos comerciais.

No momento, em quase todo o país, para frequentar estabelecimentos comerciais e culturais tem que se observar a regra do "2G", ou seja, estar vacinado com duas doses e/ou curado da enfermidade de Covid-19.

Os estabelecimentos podem fazer exigências adicionais, como a apresentação de teste rápido atestando a ausência do vírus (regra do 2G Plus*). O teste rápido pode, porém, ser substituído pela comprovação da terceira dose. Em todos os casos, o uso de máscaras, que havia sido suspenso, voltou a ser obrigatório.

Vale lembrar que o Tribunal Constitucional alemão (Bundesverfassungsgericht), em recente julgado, considerou constitucional as principais medidas de contenção adotadas até julho passado pelos governos federal e estadual, como o isolamento social (ex: toque de recolher, número máximo de pessoas em estabelecimentos e residências, distanciamento mínimo, etc.) e paralisação de atividades econômicas não-essenciais. 

A Corte julgou em 30/11/2021 várias queixas constitucionais com esse objeto, merecendo destaque os processos: BVerfG Az. 1 BvR 781/21 e 1 BvR 971/21. Segundo o BVerfG, aquelas medidas restritivas dos direitos fundamentais estão em harmonia com a Lei Fundamental, pois necessárias, adequadas e proporcionais à contenção da extraordinária situação de risco provocada pela pandemia.

O fato é que está cada vez mais difícil ter alguma previsibilidade face à maior pandemia dos últimos cem anos, que o legislador brasileiro, recorde-se, supôs ter data marcada para acabar3.

E a nova onda de Covid adia os planos de retorno presencial ao trabalho, obrigando muitas pessoas a prorrogar o trabalho remoto, considerado um direito do trabalhador em determinadas situações.

E o home office, ao tempo em que traduz forma alternativa de realização da atividade laboral em beneficio de empregados e empregadores, coloca inúmeros desafios às relações trabalhistas, já erodidas e pulverizadas com o início da era digital e da economia de dados.

Nesse contexto, ponto que tem suscitado acessas discussões aqui e na Alemanha é saber se um acidente sofrido no percurso entre a cama e a escrivaninha pode - ou não - ser considerado acidente de trabalho para fins trabalhistas e previdenciários. A justiça alemã se ocupou recentemente do tema em caso envolvendo a queda de um empregado na escada de casa.

O caso: queda na escada

O funcionário de uma sociedade de responsabilidade limitada (GmbH), gerente de uma região de vendas da empresa, acordou pela manhã e, ao descer as escadas em direção ao porão, onde fica seu home office, escorregou e quebrou uma vértebra torácica. Ele pleiteou o reconhecimento do sinistro como acidente de trabalho, mas o pedido foi negado.

Segundo relatou na inicial, o home office, improvisado durante a pandemia, era a única área da casa localizada no subsolo, acessível apenas pela escada em caracol. Segundo consta nos autos, ele saía da cama direto para a escrivaninha, sem sequer tomar café da manhã na cozinha.

Um dia, dirigindo-se ao local de trabalho, ele escorregou na escada e se machucou gravemente. A fim de comprovar que estava a caminho do trabalho no momento do acidente, alegou que a escada na qual se acidentara só conduz ao home office, vez que todos os demais cômodos da casa ficam em um mesmo andar.

A decisão do Bundessozialgericht

A ação foi movida na vara previdenciária contra a Berufsgenossenschaft (BG), uma entidade profissional específica responsável, dentre outras coisas, por cuidar dos casos de acidente de trabalho[4]. Ao contrário daqui, na Alemanha não há uma previdência social unificada, mas diversas caixas de assistência e previdência social que pagam diretamente os benefícios aos trabalhadores.

Da mesma forma, ao contrário daqui, lá há uma jurisdição social específica, ao lado da justiça trabalhista, na qual são solucionados todos os litígios envolvendo o direito social (Sozialrecht), que não se resume e se limita ao direito previdenciário, mas engloba previdência, saúde e assistência social.

Lá, a legislação previdenciária e social não se encontra esparsa, mas compilada no chamado Código Social ou Sozialgesetzbuch (SGB), em claro paralelo ao Bürgerliches Gesetzbuch (BGB), o Código do Cidadão, aqui denominado Código Civil. Por isso, o processo correu perante a jurisdição social, na qual se discutem questões previdenciárias.

O juízo de primeira instância (Sozialgericht) da comarca de Aachen, em decisão de 14/6/2019, reconheceu que o caminho do quarto para o home office é um trajeto para o trabalho e, dessa forma, deve ser segurado pela previdência social, reconhecendo a procedência do pedido do funcionário.

Porém, o Landessozialgericht de Nordrhein-Westfalen, Corte de segunda instância, divergiu do entendimento e modificou a sentença: o caminho ao home office não seria um percurso para o trabalho, mas uma ação preparatória à atividade laboral, não sendo, portanto, assegurada pela previdência social. Trata-se do processo LZG L 17 U 487/19, julgado em 9/11/2020.

O autor interpôs, então, o recurso de Revision ao Bundessozialgericht (BSG), o Tribunal Federal Social, alegando violação do direito material constante do § 8 I 1 do Livro 7 do Sozialgesetzbuch: recebimento de benefício por acidente de trabalho.

O 2º. Senado da Corte deu razão ao trabalhador. Trata-se do processo BSG Az. B 2 U 4/21 R, julgado semana passada, dia 8/12/2021.

O BSG afirmou que o caminho da cama até o home office ocorre no interesse do empregador e, portanto, as lesões nesse percurso são consideradas, em tese, acidentes de trabalho acobertados pelo seguro social.

No caso concreto, o Tribunal assinalou que o trabalhador demonstrou que a escada só era utilizada para chegar ao home office, o que reforça a alegação de que ele, embora sem sair de casa, efetivamente se acidentou "a caminho" do trabalho.

Paralelo com o Brasil

Por aqui, algumas decisões reconhecem como acidente laboral a queda do empregado em casa quando ele se preparava para ir ao trabalho. Bem conhecido e citado é o caso da promotora de vendas da Avon Cosméticos Ltda que caiu da escada dentro da própria casa quando se preparava para sair para um trabalho externo e fraturou o tornozelo. No caso, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) confirmou as decisões inferiores que condenaram a empresa a indenizar a vendedora dispensada injustamente5.

O art. 75 da CLT, alterado pela reforma trabalhista, regulamentou o teletrabalho, definindo-o no art. 75-B como a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não constituam trabalho externo.

Extrai-se da lei que o empregador deve fornecer condições mínimas para que o trabalho seja realizado de forma segura, inclusive instruindo como o trabalhador deve adequar sua casa ao home office e, de maneira expressa e ostensiva, quais as precauções a serem tomadas a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho (art. 75-E CLT).

Com a pandemia e o trabalho online, diversos acidentes laborais podem ocorrer. Pense-se apenas na situação banal em que o empregado tropeça na cadeira de trabalho e quebra o punho ao cair de mau jeito no chão.

O mesmo diga-se em relação às doenças profissionais, como lesões na coluna, lesões por esforço repetitivo (LER) em decorrência do uso de mobiliários antiergonômicos (ex: mesa, cadeira, etc.), posturas inadequadas e prolongadas, falta de suporte adequado para levantar a altura do computador ao nível dos olhos, etc.

Isso sem falar no stress, ansiedade, tensão e exaustão mental provocados por longas jornadas de trabalho, pelas exigências de realização de múltiplas tarefas com elevada produtividade, excesso de videoconferências, de e-mails e informações, e, não por último, pelo isolamento ou pela ausência de local adequado para trabalhar. Ou seja, os desafios são inúmeros.

Embora as doenças desencadeadas pela forma ou condições de trabalho oferecidas pelo empregador possam ser mais facilmente configuradas, muitas discussões rondam o problema dos acidentes de trabalho em home office, ou seja, na residência do empregado.

A grande dificuldade parece ser de cunho probatório, ou seja, do funcionário provar que estava em horário de trabalho realizando a atividade laboral e não funções domésticas, o que só pode ser verificado no caso concreto.

Por isso, a decisão alemã é um convite à reflexão, pois mostra o quanto Judiciário precisa estar atento às novas formas de trabalho e às peculiaridades do caso concreto. Isso ainda mais se impõe quando se constata a erosão das relações trabalhistas decorrentes dos novos modelos de negócio da era digital, acentuadas pela pandemia nesse agitado primeiro terço do século 21.

O German Report deseja a todos um abençoado Natal e um Ano Novo com muita saúde, prudência e tolerância.

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1 Neue Regelungen zur Corona-Pandemie. Disponível aqui. Acesso: 12/12/2021.

2 Neue Regelungen zur Corona-Pandemie. Disponível aqui. Acesso: 12/12/2021.

3 Recorde-se que a lei 14.010/2020, a famosa RJET, que, regulando os impactos da Covid-19 nas relações privadas, permitiu os despejos e proibiu a revisão e/ou extinção dos contratos desequilibrados pela pandemia, caducou em 30/10/2020, poucos meses após sua entrada em vigor.

4 Agradeço ao Procurador Federal Pablo Castro Miozzo, doutorando em direito pela Universidade de Freiburg (Alemanha) e membro do Fórum Jurídico Brasil-Alemanha, pelos esclarecimentos e sugestões terminológicas ao texto. Até o fechamento da coluna, não havia ainda sido publicada a decisão do Bundessozialgericht, de modo que o presente texto foi redigido com base em notícias de jornais e nas informações constantes no site do tribunal, acessadas em 12/12/2021.

5 TST, RR 32400-96.2009.5.08.0004, 2ª Turma, Rel. Delaíde Miranda Arantes, j. em 8/4/2015.

Por: Redação do Migalhas

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