A situação atual pode ganhar contornos de um movimento unificado similar às Diretas Já, que atraiu forças antagônicas em torno da defesa de eleições nos anos 1980.

O ápice das ameaças golpistas e ataques do presidente Jair Bolsonaro à democracia, no 7 de Setembro, inspira a mobilização de partidos de diferentes matizes ideológicos na criação de uma frente ampla pelo impedimento de Bolsonaro, avalia o cientista político e professor da Universidade de São Paulo André Singer. “O que falta é tempo para que amadureça e resulte em um grande movimento popular a favor do impeachment e da democracia”, afirma o cientista político, que foi porta-voz da Presidência no governo Lula de 2005 a 2007

Criador do termo “lulismo” para explicar o realinhamento eleitoral que decorreu do governo petista, Singer introduz uma nova definição para nomear a marcha do governo Bolsonaro corrosiva à democracia: um “autocratismo de viés fascista”.

A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estadão:

Recuo de Bolsonaro

A nota publicada pelo presidente faz parte de uma estratégia adotada desde o começo do mandato de ora avançar, ora recuar. Ele tem uma capacidade que não se previa de jogar em diversas dimensões: na institucional, na mobilização de massa, que demonstrou na terça-feira, e com alianças partidárias com uma liberdade inesperada. Por exemplo, substituiu a aliança com o ex-ministro Sérgio Moro por uma com o Centrão de uma forma que não se imaginava possível. É provável que volte a fazer ameaças e ter o mesmo comportamento agressivo e golpista que construiu no mandato.

Autocrata de viés fascista

Bolsonaro faz parte de um fenômeno novo no Brasil e no mundo, associado a Donald Trump e ao Brexit, de total descompromisso com os fatos, uma “pós-verdade” que não se coaduna com a política normal. Ambiguidades são próprias da política normal, mas ela tem compromisso com fatos, diferente de Bolsonaro. No 7 de Setembro, ele diz que defende a liberdade e a Constituição, quando, de fato, defende golpe contra a Constituição, democracia e liberdade. E as pessoas que vão à rua estão envolvidas por esse ambiente no qual não há nexo com a realidade. Não entenderemos Bolsonaro se não o colocarmos no fenômeno que chamo de autocratismo de viés fascista – não fascista no sentido histórico, mas com elementos fascistas. Essa ambiência ideológica em que se puxa pessoas a uma crença sem conexão com fatos foi própria do fascismo, em que havia elementos delirantes. Por isso, não acho que devemos interpretar a nota como recuo. É uma tática diversionista, que confunde a sociedade, as forças políticas e atrapalha uma ação que precisa ser clara. As idas e vindas de Bolsonaro fazem propositalmente tudo parecer uma brincadeira. O fascismo e o nazismo agiam assim.

Capacidade de ação de Bolsonaro

O primeiro (objetivo da nota de Bolsonaro) é causar confusão, desorganizar adversários e a sociedade, que estão entendendo que este processo precisa ser parado. O segundo é dar uma resposta a setores da economia, à população e ao presidente da Câmara, o único que pode dar andamento ao impeachment. Bolsonaro tem demonstrado uma capacidade de ação que, em circunstâncias parecidas, o ex-presidente Collor não teve. No entanto, vem perdendo popularidade, tem rejeição grande e está relativamente isolado. Nada disso vai ser alterado por esse movimento, mas ele segue demonstrando capacidade de ação.

O 7 de Setembro e o impeachment

Aumenta o número de forças políticas que percebem que o único recurso disponível na Constituição para parar este processo autoritário é o impeachment. Crime de responsabilidade está nítido que foi cometido. No entanto, depende também do presidente da Câmara e de votos no Congresso. Neste momento nenhuma das duas condições são satisfeitas. Até aqui a Câmara mostra conivência implícita com o que está ocorrendo.

Frente ampla

A frente democrática é possível, necessária e tendo a achar que vai acabar ocorrendo. Já está em curso. Um exemplo é o fato de que, depois de longo tempo, Fernando Henrique Cardoso se encontrou com Lula e declarou voto nele se houver disputa com Bolsonaro. (…) Os dirigentes devem perceber que é preciso compromisso com aquilo que unifica as forças: a defesa da democracia, que no caso específico é o impeachment, eleições com urna eletrônica e respeito ao resultado. Guardadas as bandeiras que unificam, as demais devem ser livres. Só assim poderá haver uma frente ampla em que as pessoas sabem porque estão unificadas e o que as dividirá no momento seguinte, que é o eleitoral.

Disputa eleitoral em segundo plano

A esta altura, considerações de natureza estritamente eleitoral deveriam ficar em segundo plano diante de um processo autoritário que não devemos subestimar. Como essa frente demorou e não está ainda constituída, está se confundindo com a situação eleitoral, o que a atrapalha. É fundamental não cobrar das forças políticas o que fizeram antes, porque estiveram divididas no impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff. Embora historicamente isso tenha de ser discutido, o fato é que agora há um objetivo maior que pode unificar, de defesa da democracia.

Esquerda e direita juntas

O “superpedido” de impeachment, por exemplo, juntou num mesmo palanque a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e Kim Kataguiri, do Movimento Brasil Livre, um dos pilares do impeachment de Dilma, com respeito e harmonia dentro de forças que são em outros sentidos opostas, mas dispostas a disputar democraticamente e aceitar os resultados.

Falta tempo para que isso (a frente ampla) amadureça e resulte em um grande movimento popular a favor do impeachment e da democracia. O setor que apoia Bolsonaro existe e demonstrou que está disposto a se mobilizar, mas é minoritário; 75% dos brasileiros querem democracia e precisam demonstrar isso em manifestações pacíficas com o tamanho que essa vontade tem. Cabe às forças políticas e movimentos sociais permitirem essa manifestação por meio da sua própria organização.

Nova etapa de manifestações

Não se pode esperar que seja tão rápida. Esse processo guarda alguma semelhança com a situação das Diretas, muito importante para a história política brasileira, pois ali se deu o exemplo de uma frente que unificou forças antagônicas, porém não foi vitoriosa no Congresso Nacional naquele momento. Por mais que estejamos cada dia mais perto da eleição, dada a excepcionalidade do que está ocorrendo, deve-se continuar insistindo no impeachment.

Apoio dos partidos de direita

O PSDB e o PSD se deslocaram a partir do 7 de Setembro. Há outros partidos, como é o caso do Democratas, que poderiam se posicionar a favor do impeachment, para não falar do próprio Progressistas, que hoje é o principal esteio do governo e articula siglas menores que também sustentam o presidente.

Centrão

Estão no governo e há grande vantagem nisso, mas fazem cálculos, são pragmáticos. O problema é que esta não é a política normal, como foi da redemocratização até 2014. Acredito na sagacidade da classe política e acho que perceberam que não é normal, mas decidiram agir como se fosse, o que é um risco que nenhuma sociedade democrática deveria correr. O Centrão é uma força importante no Congresso e tem peso histórico, inclusive porque foram essas forças que impediram as Diretas de avançar, não vamos esquecer que o PP veio da Arena. Dada a atuação do ex-presidente Temer, menciono também o MDB, que entrou em cena para fazer aparentar uma normalidade que não existe. São atores importantes agindo em benefício de que este processo continue. Bolsonaro demonstrou capacidade de mobilização, apesar de ser minoritário, o que indica maiores chances de ir ao segundo turno do que se o supuséssemos mais isolado.

Foto: Fillipo Monteforte/AFP

Lula

O lulismo voltou com força. As pesquisas estão mostrando que ele está canalizando a insatisfação com o governo Bolsonaro e que a sua base entre eleitores de menor renda concentrada no Nordeste se refez. No entanto, falta muito para uma campanha que não sabemos como vai acontecer, porque está misturada com este processo que quer melar as eleições. Guardadas essas ressalvas, hoje Lula é imbatível e pode inclusive ganhar no primeiro turno. Mas lulismo e petismo são coisas distintas. A associação entre Lula e o PT existe e o partido tende a ser beneficiado, mas não na proporção exata da força que a liderança de Lula tem.

No campo da centro-esquerda, a atração da candidatura Lula é muito grande. Ainda deve rolar muita água, mas a tendência de unificação em torno da candidatura de Lula é muito forte.

Terceira via

À  medida que Bolsonaro vai perdendo apoio, abre-se um espaço no meio. O problema é que o que está no meio não tem conseguido encontrar um candidato viável. Cito o professor Eduardo Giannetti, que disse que a terceira via precisa de um candidato que fale com a população. A liderança faz diferença em certos casos. Talvez o que mais se aproxime dessas condições seja o ex-ministro Ciro Gomes, que nunca teve desempenho extraordinário, mas já disputou várias eleições e tem eleitorado. No entanto, é uma personalidade que muitas vezes divide em lugar de agregar.

Recuperação da esquerda

Houve um momento em que os ataques ao PT por parte da Lava Jato prejudicaram esse campo, mas de lá para cá há certa recomposição. A votação de Fernando Haddad de 2018 foi muito boa dentro das circunstâncias. Outro elemento é o bom desempenho de Guilherme Boulos em São Paulo, uma cidade importante do ponto de vista político, porque até certo ponto sintetiza tendências nacionais. O desempenho da esquerda no plano municipal de 2020 não foi excepcional nem péssimo. Algo que não se deu foi a unidade, que se tivesse havido, poderia ter proporcionado desempenho melhor.

Fonte: Estadão

Disponível em: https://vermelho.org.br/2021/09/12/frente-ampla-pelo-impeachment-deve-sobrepor-se-a-disputa-eleitoral-diz-ex-porta-voz-de-lula/