OPINIÃO

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Nos últimos meses, ganhou visibilidade crescente a ideia esdrúxula, antidemocrática e inconsequente de intervenção militar contra a existência e o funcionamento dos poderes da República. As manifestações públicas dos grupos bolsonaristas, com explícito apoio do "mito", propõem, sem nenhum pudor, o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional pela via da atuação dos militares brasileiros.

Aparentemente, são dois os debates mais recorrentes em torno da temática da intromissão militar no funcionamento do Estado democrático de Direito. Primeiro, as Forças Armadas, ou a maioria de seus comandantes, estão dispostas a capitanear uma aventura golpista? Segundo, esse eventual movimento de tropas, aspecto imediatamente visível das quarteladas tradicionais, tem base jurídico-constitucional e lastro consistente na ordem jurídica brasileira?

Parece, ao menos a partir do noticiário da grande imprensa, que não existe uma dominante, ou predominante, disposição golpista ou intervencionista entre as Forças Armadas, salvo alguns setores mais assanhados das Polícias Militares. Entretanto, algumas declarações públicas de certos generais, mesmo distantes da caserna, deixam no ar algo que pode ser claramente entendido como ameaça. "O ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, afirmou que a interferência das Forças Armadas no sistema democrático brasileiro atual pode ocorrer. 'O artigo 142 é bem claro, basta ler com imparcialidade. Se ele (artigo) existe no texto constitucional, é sinal de que pode ser usado" (fonte: correiobraziliense.com.br). O próprio "mito", entre várias declarações de intimidação ao Legislativo e ao Judiciário, cunhou pérolas como estas: "Não está arrebentando, arrebentou" (sobre a tensão com o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal — fonte: istoe.com.br); "O momento está chegando" (fonte: istoe.com.br); e "O momento é de satisfação e alegria para todo o Brasil. Nas mãos das Forças Armadas, o poder moderador, nas mãos das Forças Armadas, a certeza da garantia da nossa liberdade, da nossa democracia, e o apoio total às decisões do presidente para o bem da sua nação" (fonte: economia.uol.com.br).

Nas últimas semanas, o assunto da intervenção militar voltou aos noticiários com considerável força. Chegaram, os bolsonaristas mais raivosos, a marcar data para uma suposta quartelada: o dia 7 de setembro de 2021!!! A incapacidade de lidar com as instituições democráticas e suas decisões que não agradam desperta os instintos mais primitivos, especialmente aqueles ligados ao uso da força, das armas e aniquilação física da salutar e necessária pluralidade político-ideológica.

Impõe-se, então, uma indagação crucial. Os militares estão dispostos a "atravessar o Rubicão", como destacou o ministro Ricardo Lewandowski em texto publicado no último dia 29? Para defender quem? A família presidencial? Para arquivar apurações de supostos ilícitos dos palacianos e aliados? Para satisfazer os gostos, desejos e desvarios de certos apedeutas palacianos? Obviamente, a missão constitucional das Forças Armadas não merece tamanho apequenamento. E os militares sabem disso.

A questão jurídica em torno da inteligência do artigo 142 da Constituição é, no mínimo, curiosa. Entretanto, permite compreender algumas lições básicas de hermenêutica no campo do Direito. Diz o referido artigo: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem./§1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas".

De início, é importante comparar esse texto com a redação do enunciado pertinente na Constituição de 1967/1969. A redação anterior possuía o seguinte formato: "Artigo 92 — As forças armadas, constituídas pela Marinha de Guerra, Exército e Aeronáutica Militar, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República e dentro dos limites da lei./§1º — Destinam-se as forças armadas a defender a pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem".

Percebe-se que a diferença está no papel das Forças Armadas na defesa da lei e da ordem. A Constituição de 1988 exige (a anterior silenciava) a iniciativa de um dos poderes constituídos para atuação das Forças Armadas na proteção da lei e da ordem.

Outro ponto crucial de diferenciação é a definição da edição de uma lei complementar para fixar normas gerais relacionadas com a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. Esse diploma legal foi introduzido na ordem jurídica brasileira como a Lei Complementar n° 97, de 9 de junho de 1999. Cumpre observar que a referida lei complementar, mesmo com alterações posteriores, limita-se a explicitar atribuições subsidiárias, além das constitucionais. Nada nesse diploma legal permite identificar alguma competência relacionada com o fechamento de algum poder da República ou supressão da ordem democrática. Afinal, o Estado democrático de Direito, proclamado no artigo 1º da Constituição, está assentado no funcionamento regular de todos os poderes e das instituições da sociedade civil, no exercício dos mandatos eletivos em curso e observância efetiva dos direitos fundamentais.

Façamos um exercício mental. Vamos admitir a atuação (intervenção) das Forças Armadas para o fechamento do Supremo Tribunal Federal (e outros tribunais?) e/ou do Congresso Nacional (e Parlamentos estaduais e municipais?). Os governadores e prefeitos também seriam atingidos? Registre-se que estamos tratando do fechamento físico e da paralisia operacional do exercício das competências exercitadas por centenas e centenas de instituições e respectivos membros.

A primeira indagação: quem decidiria e como seria o procedimento para adotar esse posicionamento? Onde está posta a regra de competência dessa autoridade ou colegiado para adotar tal decisão? Reconheço, aqui, com todas as letras, a minha ignorância. Em mais de 30 anos de estudo e trabalho com o Direito brasileiro, jamais encontrei ou tive notícia da existência de enunciados normativos sobre o assunto.

Vamos à segunda questão: se a "medida" não atingir a todos, quais os critérios previstos na ordem jurídica para estabelecer as exceções? O presidente da República seria mantido no cargo? Qual a motivação, prevista em lei, para manter o chefe do Executivo na condição de intocável? Em suma, onde estão escritas, na forma de textos normativos, as hipóteses jurídicas para alguns sejam alcançados pela "intervenção" e outros não?

Agora, a terceira questão: quem substituiria as autoridades afastadas? Qual a condição ou status jurídico das autoridades "destituídas" (prisão, garantias, remunerações etc.)? Onde a ordem jurídica brasileira dispõe acerca dessas substituições como decorrências de intervenções supostamente baseadas no artigo 142 da Constituição? Como as competências, particularmente as colegiadas, seriam exercidas por esses "substitutos"? Quais comandos normativos regulam essas atividades nesse contexto "interventivo"?

Ademais, o artigo 5o, inciso XLIV, da Constituição qualifica como "… crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático". Não faz o menor sentido lógico-jurídico ou político que as Forças Armadas, instituições estatais permanentes comprometidas por expressão disposição constitucional com "a garantia dos poderes constitucionais", possam realizar de forma legítima aquilo que o constituinte definiu como crime (inafiançável e imprescritível) quando operado por grupos armados, civis ou militares.

Ainda num exercício prospectivo, impõe-se perguntar como seria tratada a liberdade de imprensa. Todos ou só alguns órgãos de imprensa seriam "fechados"? Como seria operacionalizado esse movimento? A internet no Brasil seria "derrubada" ou "controlados" certos sites ou redes sociais? Onde estão postos os textos normativos reguladores dessas ações estatais?      

Os desdobramentos políticos, econômicos e jurídicos no plano internacional seriam múltiplos, profundos e nefastos. Numa frase, dita e repetida com frequência, a nação brasileira seria considerada e tratada como um verdadeiro pária na sociedade internacional.            

Dito isso, é relativamente fácil concluir que a ordem jurídica brasileira não é compatível com uma hermenêutica que admita qualquer espécie de intervenção militar para afastar o funcionamento ou exercício pleno das competências das mais importantes instituições desenhadas pela Constituição. Trata-se, é disso que se trata, expressão muito usada por certo ministro do STF, de golpe ou ruptura inconstitucional da ordem democrática obnubilado pela nomenclatura de intervenção.

 é advogado, mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2021-set-09/castro-artigo-142-constituicao-nao-autoriza-intervencao-militar