No final do mês de junho, o apresentador Sikêra Junior, que comanda o programa Alerta Nacional, se referiu à população LGBTQIA+ de forma absolutamente imprópria e desrespeitosa.

O apresentador se opôs à campanha publicitária de famoso restaurante que deu voz às crianças para abordar o respeito e a tolerância no Dia do Orgulho LGBTQIA+. Ele usou de seu espaço na televisão para tratar sobre assunto alheio à pauta de seu programa policialesco e de humor escrachado.

A consequência de sua fala foi devastadora para seu programa, emissora de televisão e para sua própria carreira: perdeu o patrocínio de mais de 30 empresas1, será alvo de ações judiciais do MPF e de associação de defesa dos direitos humanos da população LGBTQIA+2, teve sua conta oficial no Instagram cancelada3, além de ter sido criticado por apresentadores do ramo4.

Sikêra Junior, por sua vez, argumentou que a peça publicitária era um desrespeito às crianças e à família tradicional. Ainda assim, apresentou pedido de desculpas no programa, alegando que se excedeu, como forma de manter alguns dos patrocinadores5. O apresentador teria procurado três empresas de gerenciamento de crise para lidar com a imensa repercussão negativa, mas foi rejeitado por todas6.

A Folha Ilustrada procurou entender seu perfil, suas origens e experiências na televisão e no rádio7. Nascido em Palmares/PE, iniciou sua carreira na rádio e posteriormente ingressou na televisão, com programa regional em Alagoas e, mais tarde, foi para o Amazonas, onde passou a apresentar o famigerado "Alerta Nacional".

Em tom jocoso, o programa policialesco ganhou audiência e projeção nacional ao abordar as operações policiais na região, exaltando o assassinato de supostos criminosos. A região Norte do país particularmente sofre com o aumento expressivo da criminalidade urbana, o que tem dado espaço a programas policialescos de violência explícita e escárnio, no qual o apresentador afigura-se como uma espécie de salvador da pátria, ante a inação das autoridades locais8.

Sem instituições fortes que sejam capazes de proteger a população, esses programas disseminam o medo e incentivam justiçamentos, desvirtuando a lógica criminal e de inteligência para lidar com temas complexos como o da criminalidade urbana.

O apresentador Sikêra Júnior apela para o humor escrachado como forma de se aproximar da camada mais simples e humilde da população e também tem as crianças como seu público-alvo.

Ele foi associado, por isso, ao mundo cão, dos anos 1990, no qual a disputa pela audiência teve grande projeção, com a veiculação de conteúdos claramente discriminatórios e ofensivos, provocando mudanças na regulação sobre a classificação indicativa na TV9.

O caso do apresentador nos faz questionar por que esse tipo de conteúdo, evidentemente odioso, que desrespeita e desinforma, pode ser transmitido na televisão aberta. Para isso, é preciso compreender essa regulação.

Constituição Federal estabelece que os menores de idade terão prioridade absoluta nas políticas públicas e que a legislação deve proteger o seu desenvolvimento. Em seu artigo 220, §3º, I, foi definido que cabe à legislação federal regular as diversões e espetáculos públicos, indicando a classificação indicativa para cada faixa etária.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, em seu artigo 254, determina aplicação da pena de multa e até mesmo de suspensão da programação da emissora por dois dias, caso não haja indicação da classificação de seu conteúdo.

A regulação propriamente da classificação indicativa consiste na Portaria n. 1.189, de 3 de agosto de 2018, do Ministério da Justiça, órgão ministerial encarregado de classificar as produções audiovisuais. Importante destacar que a classificação não é o mesmo que censura, mas a indicação de que aquele material, de acordo com critérios previamente definidos, pode conter conteúdo sensível, não recomendável a todo tipo de público - de acordo com o critério etário.

Essa Portaria considera como inadequadas obras audiovisuais de conteúdo homofóbico ou racista, afastando-as das crianças e adolescentes, a fim de não gerar ainda mais preconceito contra essa população.

Os critérios para analisar um conteúdo são três: violência, sexo e nudez e drogas, que naturalmente exigem maior grau de maturidade e de experiências para apreciar obras que tratem dessa temática em nível mais explícito. A partir da gradação, se estabelece o horário recomendável para que aquele conteúdo vá ao ar na televisão aberta e rádio. A classificação indicativa é necessária, também, antes de colocar produto audiovisual no mercado, como a distribuição de filmes, séries e jogos.

Assim, define-se quais conteúdos são considerados livres, recomendados para 10, 12, 14, 16 e 18 anos, de acordo com o nível de abordagem dos eixos temáticos - violência, sexo e nudez e drogas.

Acontece que há quatro situações em que não se deve classificar o conteúdo, que são: (i) competições esportivas, pois a violência e certo grau de nudez podem fazer parte do esporte, não sendo compatível com a legislação exigir classificação prévia, até porque não há conotação sexual ou mesmo de violência odiosa; (ii) programas e propagandas eleitorais, a fim de não provocar controle estatal demasiado sobre o pleito eleitoral; (iii) propagandas e publicidades em geral, que contam com atuação do CONAR, agência do setor privado que contribui para a observância de código de conduta para a publicidade; e (iv) programas jornalísticos, a fim de não estabelecer controle ou mesmo espécie de censura prévia por órgão estatal, capaz de ferir a liberdade de expressão.

Acontece que programas policialescos sensacionalistas, como o do Sikêra Junior, são enquadrados como programas jornalísticos porque noticiam determinado fato. Assim, nem mesmo há a indicação de classificação indicativa que resultaria na restrição de horário para exibição. Ou seja, ainda que exiba cena explícita de violência e dissemine conteúdo de ódio, não há qualquer restrição ao conteúdo ou orientações ao público. O programa sensacionalista, por sua natureza, distorce os fatos ou os simplifica de tal maneira que não refletem a verdade e o compromisso do jornalismo com a informação.

Por isso, cabe somente ao diretor do programa, conhecendo sua audiência e patrocinadores, impor limites, pois a legislação não as impõe de forma clara. Programas jornalísticos como "Jornal Nacional", da Rede Globo, "Jornal da Record", da Rede Record, entre outros telejornais são enquadrados na mesma categoria, embora tenham como foco a veiculação da notícia com acompanhamento dos fatos e sem fazer uso de artimanhas sensacionalistas. A equipe editorial controla o conteúdo, de acordo com seu perfil, porque a legislação não definiu a abrangência do que pode ser enquadrado como "programa jornalístico".

Essa definição prescinde de participação social para que não se constitua de limitação à liberdade de expressão e de imprensa. No entanto, esse debate precisa acontecer para valorizar conteúdos sérios, informativos, que não tenham como objetivo somente a busca incessante por audiência.

É preciso levar em consideração, ainda, que a TV aberta é uma concessão estatal, de maneira que o canal de televisão precisa de autorização do Estado para funcionar, sendo renovada periodicamente, a depender do preenchimento de determinados critérios (CF, art. 223).

Embora o programa do Sikêra Júnior não se enquadre na classificação indicativa e, por tal razão, não sofra restrição de horário, é veiculado na TV aberta que deve promover o respeito aos valores éticos e sociais, além de ter finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas (CF, art. 221, I).

Ao violar esses princípios, cabe somente ao Ministério das Comunicações, com fundamento no Código Brasileiro de Comunicações (lei 4.117/62), aplicar multa, após processo administrativo. A multa, por ser vez, possui valor simbólico frente ao potencial arrecadatório de programas de televisão, dado que o valor mais alto é de cerca de R$ 100 mil.

Um exemplo da atuação do Ministério das Comunicações foi o caso da TV Cidade, afiliada da Rede Record no Ceará, em que foi veiculada a rua, casa e imagem dos vizinhos e familiares de menina de 9 anos que tinha sido vítima de estupro, com divulgação inclusive de seus genitais. A exibição em programa sensacionalista durou cerca de 20 minutos. A multa aplicada para a emissora, considerando sua reincidência, foi de pouco mais de R$ 20 mil10.

É incongruente e incompatível com o jornalismo a exibição de cenas explícitas de violência e o discurso de ódio contra minorias. Se a Constituição Federal protege as crianças e os adolescentes de conteúdos sensíveis, recomendando a classificação indicativa, por que não abranger esse tipo de programação que, sob a pecha de jornalismo, mostra exatamente o conteúdo que deve ser menos acessível aos menores?

A definição de programas jornalísticos não deve ser interpretada a ponto de distorcer sua real abrangência. No entanto, é preciso definir alguns critérios, garantindo a liberdade de expressão e a proteção da imagem daqueles que irão ao ar.

Na linha do jornalismo sensacionalista, é preciso respeitar a atividade policial, afastando-se de coberturas em tempo real, dando à autoridade da segurança pública a liberdade necessária para conduzir sua estratégia. Por isso, ter um corpo editorial composto por jornalistas, não interferir nas ações das polícias, e respeitar a imagem dos indiciados podem ser um norte para a construção de critérios. Assim, abre-se mais espaço ao bom jornalismo ao definir a abrangência dessa exceção à classificação indicativa. Afasta-se, por outro lado, do conteúdo que distorce os fatos e reduz os conflitos a uma mera relação entre o bem e o mal, sem qualquer nuance ou demonstração de sua complexidade.

Contudo, na ausência de definição, o programa policialesco sensacionalista tem carta branca para veicular qualquer tipo de conteúdo, apenas por se enquadrar como programa jornalístico. Ou seja, pode veicular cenas de violência, drogas, sexo e nudez, que são os eixos temáticos da política de classificação indicativa, a qualquer hora do dia.

A classificação indicativa é adotada em diversos países democráticos11 e não se confunde com censura. Ela é concebida, dentro de um Estado democrático, como uma maneira de proteger crianças e adolescentes de conteúdos mais sensíveis, capazes de gerar traumas e problemas para seu desenvolvimento psíquico.

A classificação indicativa informa, portanto, pais e responsáveis sobre o conteúdo a ser veiculado, além de servir como orientador para as televisões e rádios. As emissoras, por sua vez, devem considerar a enorme proporção da veiculação do conteúdo, razão pela qual devem exibir conteúdos mais sensíveis à noite, de acordo com a classificação atribuída à programação.

Conhecer o público-alvo é fundamental quando necessário refletir sobre critérios para a veiculação de programas audiovisuais. Se a televisão possui abrangência nacional e alcança localidades mais remotas, precisamos ter em mente a diversidade de público e a capacidade de influência do apresentador e produtor de conteúdo. Ou seja, quanto maior o público, maior a responsabilidade. E se é uma concessão pública, deve ainda respeitar aos princípios da Constituição Federal, já que o Estado não deve permitir - e sim responsabilizar - conteúdo degradante e desrespeitoso na televisão.

Um paralelo interessante são os filmes considerados extremos. Obras de diretores aclamados em circuitos e festivais de cinema de subgêneros podem ser consideradas moralmente ofensivas para o público não acostumado ao cinema mais extremo. Os admiradores de tal conteúdo identificam o potencial artístico da obra, considerando sua crítica social, aspectos psicológicos, dentre outros elementos que podem tornar a obra interessante para esse público em específico. Diretores de filmes de temática extrema têm, por isso, público-alvo mais restrito e especializado e sabe que sua obra somente será veiculada em locais determinados ou mesmo adquirida pelo espectador.

Ou seja, mesmo os filmes classificados como "para maiores de 18 anos" possuem certo controle na distribuição porque não são propagados na televisão a qualquer horário. E aqueles que julgam o conteúdo moralmente ofensivo podem simplesmente não assistir, sem afetar a liberdade de expressão do artista e de suas intrínsecas expressões subjetivas, que seu público pode compreender e apreciar.

Assim, temos de um lado um conteúdo que se sujeita a um público maior, como o da televisão, devendo seguir as orientações de horário da classificação indicativa; e conteúdo sujeito a público restrito, com as indicações de classificação indicativa. O programa jornalístico de conteúdo sensacionalista, como o do Sikêra Junior, não tem qualquer compromisso com a classificação indicativa, razão pela qual no mínimo seus produtores e o próprio apresentador deveriam ter postura respeitosa, em cumprimento às regras de concessão e serem cientes da repercussão de suas condutas ao adentrar na casa de milhares de brasileiros.

No entanto, esperar somente mudança de postura dos responsáveis por esse tipo de programação e de seus patrocinadores não é suficiente. É necessário também que a regra da classificação indicativa defina a abrangência de programa jornalístico, debatendo os critérios com os próprios veículos de telecomunicação. Dessa maneira, será valorizado o bom jornalismo, com critério, apuração e conteúdo informativo. Além disso, desenvolver regras de responsabilização àquele que se excede também é salutar para que a televisão seja capaz de transmitir informações claras, verdadeiras e que contribua para a construção de sociedade mais consciente, que exija o respeito acima de tudo.

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1- "Sikêra Jr. perde 37 patrocinadores após falas homofóbicas no 'Alerta Nacional'". O Dia, 6 jul. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 7 jul. 2021.

2- "MPF propõe ação contra RedeTV! e Sikêra Jr. por homofobia". Metrópoles, 28 jun. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 7 jul. 2021.

3- "Sikêra Jr. perde perfil no Instagram após chamar gays de 'desgraça'". Metrópoles, 7 jul. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 7 jul. 2021.

4- "Apresentador da Band alfineta Sikêra Jr.: 'Quem é você comparado a Paulo Gustavo?'". Istoé, 29 jun. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 7 jul. 2021.

5- "Sikêra desabafa após perder patrocínios por fala homofóbica: 'Me excedi'", UOL Tv e Famosos, 29 jun. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 7 jul. 2021.

6- "'Cancelado', Sikêra Jr. tenta equipe para gerenciar crise". Aqui tem fofoca, 4 jul. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 7 jul. 2021.

7- "Sikêra Jr. quis ser Chacrinha e acabou rei do mundo cão com melô do CPF cancelado", Folha de S. Paulo, 2 jul, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 7 jul. 2021.

8- Um exemplo disso é o caso do apresentador Wallace Souza, que foi acusado de ordenar assassinatos para seu programa "Canal Livre", em Manaus, na TV Rio Negro. Seu perfil controverso foi objeto da série "Bandidos na TV", da Netflix, lançada em 2019.

9- Cf. artigo publicado nos anos 2000 pelo então Ministro da Justiça, Sr. José Gregori, que criou a Portaria n. 796, revogando a norma n. 773, de 1990. GREGORI, José. Limites e Bom senso. O Estado de São Paulo. São Paulo, 2 out. 2000. In Revista Jurídica Virtual - Brasília, vol. 2, n. 17, out. 2000. 

10- CRUZ, Natasha; BARBOSA, Bia. TV cearense é multada por mostrar cenas de estupro de criança. Carta Capital, 19 set. 2014. Disponível aqui. Acesso: 7 jul. 2021.

11- MALIN, Mauro. Classificação indicativa na Europa. Observatório da Imprensa, 16 maio 2007. Disponível aqui. Acesso em: 7 jul. 2021.

Alynne Nayara Ferreira Nunes

Alynne Nayara Ferreira Nunes

Advogada fundadora do Ferreira Nunes Advocacia, escritório especializado em Direito Educacional. Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP. Membro consultora da Comissão de Graduação e Pós-Graduação da OAB/SP

Migalhas

https://www.migalhas.com.br/depeso/349506/por-que-programas-sensacionalistas-nao-tem-classificacao-indicativa