OPINIÃO

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No último dia 12, o Supremo Tribunal Federal deu início ao julgamento de ações constitucionais com importantíssimas repercussões econômicas. Trata-se das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nºs 58 e 59 e das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 5.867 e 6.021, que discutem a constitucionalidade da aplicação da Taxa Referencial (TR) para a correção monetária dos débitos e depósitos recursais trabalhistas, conforme a previsão dos artigos 30, caput, e §1º da Lei nº 8.177/1991, 879, §7º, e 899, §4º da CLT (os dois últimos trazidos com a Lei nº 13.467/2017, que instituiu a chamada reforma trabalhista).

O principal argumento em prol da invalidade desses dispositivos remonta ao julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 4.357 e 4.425 e do Recurso Extraordinário nº 870.947, em que o STF decidiu que a TR não poderia ser utilizada para a correção monetária de débitos objeto de precatórios, por não refletir a variação do valor real da moeda. Determinou-se, na oportunidade, a aplicação do IPCA-E. E, na esteira desses julgamentos, órgãos da Justiça do Trabalho passaram a aplicar o IPCA-E aos débitos trabalhistas, dando maior amplitude ao argumento de que a TR não poderia servir como índice para a recomposição das perdas inflacionárias. Haveria, sob essa ótica, um direito constitucional de propriedade robusto o suficiente para assegurar aos credores trabalhistas a manutenção do valor real da moeda, e não de seu valor nominal.

A discussão constitucional pode parecer complexa. mas há três bons argumentos que podem simplificá-la e deixar clara a impossibilidade de se reproduzir, nos julgamentos em curso, o entendimento adotado quanto às ADIs nºs 4.357 e 4.425. Refere-se a um necessário olhar para realidade, à importância do exame das consequências práticas e ao respeito às capacidades institucionais quando se está em jogo decisão legislativa revestida de elevada carga técnico-política.

Primeiro a realidade. Partindo dela, o discurso de violação ao direito de propriedade apenas subsistiria se o crédito trabalhista pudesse ser compreendido de modo isolado e hipotético, descolado tanto do sistema remuneratório a que está sujeito por força da legislação de regência, quanto do atual momento econômico brasileiro. Isso porque o §1º do artigo 39 da Lei nº 8.177/1991 estabelece que aos débitos trabalhistas serão acrescidos da TR mais juros moratórios de 1% ao mês. O que deve ser analisado, portanto, é se o custo de oportunidade do capital (isto é, do crédito trabalhista) é adequadamente remunerado à luz da fórmula atual.

A esse respeito, veja-se que, hoje, a taxa básica de juros da economia (SELIC), padrão de referência para aferição do custo de oportunidade do capital, está na mínima histórica de 2% ao ano. Nesse cenário, e de forma concreta, não parece violar o direito de propriedade a circunstância de o credor ver a indisponibilidade momentânea dos valores que lhes são devidos remunerada anualmente por 12% mais TR, fórmula que supera em muito a SELIC atual.

A verdade é que, no contexto atual, o que salta aos olhos é que se mantenham, em litígios, juros em patamares tão elevados. Tanto assim que, por intermédio da Medida Provisória nº 905/2019, propôs-se ao Congresso Nacional que, na seara trabalhista, o padrão remuneratório dos débitos fosse alterado, com a substituição da TR pelo IPCA-E e, ao mesmo tempo, dos juros de 12% para aqueles equivalentes aos aplicados à caderneta de poupança.

De acordo com a exposição de motivos da medida provisória, o incremento do passivo das empresas estatais — estimado, em 2018, em R$ 58,8 bilhões quanto às empresas federais — se revelaria insustentável. Considerado um prazo médio de julgamento de cinco anos, a manutenção da fórmula atual (TR + 12% ao ano) mais do que dobraria esse valor para R$ 124,4 bilhões. Daí a proposta de alteração para o IPCA-E + poupança, que levaria a uma redução no passivo dessas empresas em R$ 37,7 bilhões. Ainda segundo exposição de motivos, tal distorção afetaria não apenas as estatais federais, mas empresas em geral do setor privado — incluindo microempresas e empresas de pequeno porte — e estatais de outros entes federativos, com o reajuste de débitos trabalhistas "bastante superior a qualquer outra correção observada na economia".

No curso do processo legislativo, embora aprovada pela Câmara dos Deputados, os presidentes da República e do Senado, à falta de tempo hábil para a análise da MP, optaram por sua revogação. Seja como for, a edição medida provisória corrobora o quanto dito: ceder ao discurso teórico de violação a direitos de propriedade, nesse caso, é ignorar a realidade, agravando-se distorção que já onera significativamente o custo de produção no país.

Nisso vêm as consequências práticas. Antes mesmo da edição da Lei nº 13.655/2018, que inseriu na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro a previsão de seu artigo 20, o Poder Judiciário já havia despertado para a necessidade de julgar não apenas a partir de aspectos puramente normativos, mas de uma ótica de diagnósticos e prognósticos. Como estabelece o referido artigo 20, nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. E esse é um alerta fundamental para o adequado equacionamento da controvérsia envolvendo a TR.

Com efeito, não bastasse o incremento do custo de produção, com a oneração excessiva — quiçá insuportável — de empresas públicas e privadas, incluindo pequenas e microempresas, a eventual declaração de inconstitucionalidade da TR poderia incentivar de modo perverso, como um de seus efeitos indesejados, a potencialização de um cenário de litigância excessiva, o qual a reforma trabalhista de 2017 justamente buscou combater.

Ainda, tem-se que a previsão da TR no microssistema de remuneração dos débitos e depósitos recursais trabalhista atende a intuitos legítimos relacionados à desindexação da economia e à viabilização de políticas públicas voltadas à concretização do direito constitucional à moradia. É que verbas remuneradas pela TR são utilizadas como subsídio para a viabilização econômica do Sistema Financeiro de Habitação, que mantém políticas públicas como o Minha Casa, Minha Vida. Logo, os efeitos de uma decisão do STF que desconstrua a modelagem hoje vigente também deverão ser considerados sob tais perspectivas.

É nesse ponto que se deve fazer um gancho com capacidades institucionais. Avaliar cenários econômicos e consequências de ordens diversas é possível, mas não é papel precípuo do Poder Judiciário. Quanto mais no caso em questão, cujas complexidades técnicas, econômicas, políticas e estratégicas saltam aos olhos. O Poder Judiciário carece de expertise e deve atuar com deferência quando envolvidas questões desse tipo, adotando postura de autocontenção, em sintonia com suas capacidades institucionais.

Uma nota final: as ações constitucionais em julgamento são distintas das ADIs 4.357 e 4.425 não apenas porque as relações envolvidas são outras, mas por todas as peculiaridades apontadas. Ainda que assim não fosse, como já salientou o ministro Sepúlveda Pertence, "não há um direito constitucional à indexação real, nem nas relações privadas, nem nas relações de Direito Público" (RE 201.465). Com efeito, talvez seja esse o fundamento constitucional mais evidente para a solução das ADCs e ADIs em curso: não existe um direito constitucional a índices nem à indexação real. A violação a direitos fundamentais, para ser reconhecida, deve ser efetiva. No caso, preservar o direito de propriedade passa por assegurar que sua invocação não sirva de retórica à desconstituição de decisões legítimas do legislador democrático. No plano dos fatos, é esse o risco real a ser combatido. 

 é professor titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito Público pela Uerj, Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School (EUA) e sócio do escritório Binenbojm & Carvalho Britto Advocacia.

Alice Voronoff é doutora e mestre em Direito Público pela Uerj, diretora acadêmica do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro e do escritório Binenbojm & Carvalho Britto Advocacia.

Mateus Dias é advogado associado do escritório Binenbojm & Carvalho Britto Advocacia.

Revista Consultor Jurídico