A considerar como marco temporal a política do “crescer o bolo para depois dividi-lo”, a população brasileira está há mais de cinquenta anos à espera de algumas gotas da riqueza acumulada pelos super-ricos.

Em artigo recente intitulado “Cada um dá o que tem”, apontava os 206 bilionários brasileiros que acumulam uma fortuna de mais de R$ 1,2 trilhão e do 1% das famílias que são proprietárias de uma riqueza de R$ 8 trilhões, praticamente a metade da soma do patrimônio de todas as famílias brasileiras.

Uma tributação modesta sobre a renda e a riqueza desse seleto grupo superaria facilmente a casa dos R$ 100 bilhões.

Nasci em 1965, um ano depois do golpe militar e dois anos antes da assunção do então jovem economista Delfim Neto no ministério da Fazenda. É atribuída a Neto uma das mais célebres frases da história política e econômica do Brasil, segundo a qual era preciso “primeiro fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”.

Essa ideia é tributária da teoria do gotejamento (trickle-down, em inglês), que não é propriamente uma teoria econômica, mas exerceu singular influência sobre o pensamento econômico.

Todas as políticas ou programas econômicos de transferência de renda para o topo da pirâmide, sob o argumento de que parte dessa renda goteja para as camadas abaixo em benefício da economia, refletem o conceito da teoria do gotejamento. As renúncias fiscais, por exemplo, concedidas a rodo e sem transparência no Brasil, são fortemente influenciadas por essa teoria.

Desde Delfim Neto – em cujo período o bolo cresceu significativamente sem jamais ter sido partilhado – até os dias atuais, o Brasil tornou-se um dos países mais desiguais do planeta. De todos os países do mundo pesquisados, somente o Qatar tem uma concentração do 1% mais rico na renda total pior que a do Brasil.

Já é pacífico que a renda não goteja dos mais ricos para o conjunto da sociedade.

A Tax Justice Network, em estudo, já demonstrou que parte significativa do acúmulo ou excesso de riqueza dos super-ricos não apenas é prejudicial à economia como, além disso, se refugia em paraísos fiscais.

Até o FMI já desmascarou essa fraude, quando apontou, em 2015, que não ocorre o tal gotejamento quando os ricos ficam mais ricos.

A considerar como marco temporal a política do “crescer o bolo para depois dividi-lo”, a população brasileira está há mais de cinquenta anos à espera de algumas gotas da riqueza acumulada pelos super-ricos. Se dependessem dessas gotas, os 99% já teriam morrido de sede.

O reservatório de fortuna dos super-ricos tem capacidade ilimitada e é muito bem calafetado. Nenhuma gota de desperdício é admitida, principalmente por meio da tributação.

Imprestável para legitimar a concentração de renda, a teoria do gotejamento renasce no campo da medicina. Sim, porque o único “gotejamento” dos de cima para os de baixo que se tem notícia na história republicana brasileira acontece em pleno 2020, com a Covid-19, com direito à cobertura diária da imprensa.

Em tempos de pandemia global, nunca foi tão necessário e urgente tirar algumas “gotas” da fortuna acumulada pelos super-ricos brasileiros, desta feita não apenas em benefício da economia produtiva, mas em benefício da própria vida.

Vermelho