Valdir de Carvalho Campos e Thales Coelho

A presente reflexão orbita em toda legislação tributária que rege o denominado Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN), abrangendo desde sua concepção no atual ordenamento constitucional bem como seus desdobramentos.

É de conhecimento notório, não só dos operadores do Direito Tributário, mas de qualquer pessoa que deva tributos ao Estado brasileiro (portanto que exista, resida ou transite nessas terras) que o nosso sistema fiscal não só é extremamente oneroso, como também, indescritivelmente desorganizado.

A presente reflexão orbita em toda legislação tributária que rege o denominado Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN), abrangendo desde sua concepção no atual ordenamento constitucional bem como seus desdobramentos.

Para tanto, é preciso traçar um panorama, bem como iluminar determinados pontos, objetivando melhor compreender tudo o que será discutido, para posteriormente, adentrar em questões específicas do caso a ser explorado.

Constituição Federal de 1988, ao atribuir competência aos municípios para instituir o ISS, estabeleceu originalmente:

Artigo 156 - Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

III - Serviços de qualquer natureza não compreendidos no artigo 155, I, “b”, definidos em lei complementar.

§ 3º - Em relação ao Imposto previsto no inciso III, cabe à lei complementar:

I - fixar alíquotas máximas;

II - excluir de sua incidência exportações de serviços para o exterior.

Em relação ao ISSQN cabia à lei complementar fixar as suas alíquotas máximas e excluir da sua incidência exportações de serviços para o Exterior.

Com a Constituição Federal de 1988, toda legislação infraconstitucional foi recepcionada pela nova ordem constitucional, continuando a disciplinar o ISSQN1.

Este imposto recai sobre a prestação de serviços, com conteúdo econômico. Trata-se de tributo que onera determinado bem econômico imaterial (prestação de serviço), que recai sobre os serviços de qualquer natureza (artigo 156, III da CF).

A obrigação tributária é ex lege e de caráter compulsório. A competência tributária dos Municípios, atribuída pela Constituição Federal, para instituir e cobrar o ISS está limitada à Lista de Serviços que, em lei complementar, define quais as hipóteses, taxativamente, sujeitas ao imposto.

A lei complementar é necessária para evitar conflito de competências na instituição do referido imposto sobre serviços de qualquer natureza, eis que o ISSQN é tributo que pode ter reflexos em outros Municípios.

Desta forma, se de um lado a Constituição atribuiu competência aos municípios para legislar sobre assuntos locais (artigo 30) e para instituir o ISS (artigo 156, III), de outro lado, determinou que os serviços devessem estar definidos em lei complementar, bem como determinou que à esta caberia dispor sobre conflitos de competências em matéria tributária e estabelecer normas gerais em matéria de Legislação Tributária (artigo 146, I e III).

A Constituição atribuiu à lei complementar competência para fixar alíquotas máximas para o ISS, na forma do § 3º, I, do artigo 156, posteriormente alterado pela emenda constitucional 37, de 12 de junho de 2002, que deu nova redação ao dispositivo constitucional, atribuindo à mesma norma legal fixar alíquotas máximas e mínimas, estando atualmente, assim redigido:

Art. 156, § 3º - Em relação ao imposto previsto no inciso III do caput deste artigo, cabe à lei complementar:

I - fixar as suas alíquotas máximas e mínimas;

II - excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior;

III - regular a forma como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.

Como não sobreveio lei complementar para a fixação de alíquotas do ISSQN, anteriormente à EC 37/02, permaneceu a alíquota máxima de 5% fixada pela LC 100/1999, sem qualquer indicação para alíquotas mínimas.

Por tal razão, os municípios, por longo período, fixaram alíquotas menores, bem como isentaram o pagamento do tributo, para atrair as empresas a transferirem seus estabelecimentos para a comuna, onde pagariam menos imposto, considerando a alta carga tributária. Tal fenômeno é amplamente conhecido como guerra fiscal.

Esta situação permaneceu até a EC 37/02, que acrescentou ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT, o artigo 88, dispondo que:

Art. 88. Enquanto lei complementar não disciplinar o disposto nos incisos I e III do § 3º do art. 156 da Constituição Federal, o imposto a que se refere o inciso III do caput do mesmo artigo:

I - terá alíquota mínima de dois por cento, exceto para os serviços a que se referem os itens 32, 33 e 34 da Lista de Serviços anexa ao decreto-lei 406, de 31 de dezembro de 1968;

II - não será objeto de concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, que resulte, direta ou indiretamente, na redução da alíquota mínima estabelecida no inciso I.

Os aspectos polêmicos quanto às alíquotas continuaram, ao argumento de que a emenda constitucional não poderia suprimir direito adquirido nem ato jurídico perfeito em relação aos incentivos já concedidos a prazo certo e em função de certas condições.

LC 116/03, veio para solucionar o problema das alíquotas e em seu artigo 8º fixou somente a alíquota máxima de 5%, nada dispondo sobre a alíquota mínima, permanecendo esta situação até o surgimento da lei complementar 157/16.

Referida legislação, de forma sintética, nos trouxe que o imposto não será objeto de concessão de isenções, incentivos ou benefícios tributários ou financeiros, inclusive de redução de base de cálculo ou de crédito presumido ou outorgado, ou sob qualquer outra forma que resulte, direta ou indiretamente, em carga tributária menor que a decorrente da aplicação da alíquota mínima de 2%.

Igualmente, instituiu o art. 10-A na Lei de Improbidade Administrativa, que constituiu em ato de improbidade administrativa qualquer ação ou omissão para conceder, aplicar ou manter benefício financeiro ou tributário diverso do previsto na nova legislação.

Ou seja, apenas e tão somente após a edição da norma supra citada, houve a vedação expressa de concessão de isenções.

Neste passo, cabe agora discorrer sobre a isenção tributária, que sempre decorre de Lei e pode ser regulamentada por este ato normativo municipal, segundo o artigo 175 do CTN é uma das formas de exclusão do crédito tributário e consiste na permissão legal do não pagamento do tributo.

A regra de isenção, uma vez inserida formalmente no sistema, incidirá sobre a regra-matriz de incidência tributária, mutilando parcialmente um ou mais de seus critérios.

Quando a incidência da regra de isenção não depende de outras normas para sua plena aplicabilidade frente à regra de incidência tributária ela é incondicional, ou seja, ela não exige do beneficiário o cumprimento de qualquer requisito especial em troca da vantagem fiscal.

Já na isenção condicionada (artigo 178 do CTN), a norma não nasce com a total dinâmica de aplicação sobre a regra-matriz de incidência. A lei veicula que a incidência da regra de isenção é condicionada a determinados requisitos.

Ocorre que é preciso cautela ao interpretar o importante marcador temporal no caput do referido dispositivo do ADCT: “Enquanto”.

Como se sabe, sobreveio, em 31 de julho de 2003, a lei complementar 116, que regulamentou o artigo 156, inciso III, da Constituição Federal, sobrepondo-se à indigitada norma transitória.

Importante ressaltar que a finalidade do ADCT, como seu próprio nome diz, é estabelecer regras transitórias e temporárias de forma a permitir a mudança dos regimes constitucionais. Uma vez atendidas às exigências ali estabelecidas, suas regras não mais se aplicam.

Em outras palavras: o disposto no artigo 88 da ADCT tinha eficácia plena até a regulamentação da matéria através de lei complementar regulamentadora. E, a regulamentação do ISS se deu através da lei complementar 116/03, que dispôs sobre o ISSQN, esgotando toda a matéria, e trazendo um único dispositivo a respeito de alíquotas:

Art. 8ª As alíquotas máximas do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza são as seguintes:

I – (VETADO)

II – demais serviços, 5% (cinco por cento).

A ineficiência do artigo 88 do ADCT em face à edição da lei complementar 116/03, trata-se, inclusive, de interpretação respaldada por este Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo2:

Assim, ao regulamentar a matéria, a lei complementar nada dispôs sobre alíquotas mínimas e concessão de isenções e benefícios fiscais, permitindo ao Município legislar supletivamente dentro daqueles limites estabelecidos (alíquota máxima), e em plena conformidade ao estabelecido na Constituição Federal (artigos 30 e 151, III).

In casu, a LC 116/03 não proibiu a concessão da isenção, simplesmente silenciou-se. Porém, por outro lado, não fixou alíquota mínima.

Nesse tocante é curioso destacar também a doutrina do “silêncio eloquente”, quando o legislador não diz tudo que se acha que deveria dizer, porém, o faz de forma proposital, porque a hipótese buscada já se encontra regulamentada na prescrição por ele arvorada expressamente, conforme a doutrina espanhola3 “la falta de la ley, también es ley ”.

A norma que fixa a alíquota máxima tem caráter dúplice, pois ao mesmo tempo em que fixa uma obrigação (respeitar o limite), fixa uma competência (tributar até o limite), veja-se, o Município não estava obrigado a tributar 5% até a edição da LC 157/16. Ele podia tributar até 5%

Logo, se não havia alíquota mínima, podia o Município, dentro de sua competência tributária para instituir o ISS, também conferir benefícios de tal ordem, inclusive sendo de total constitucionalidade a manutenção da legislação que previa alíquota menor do que a prevista pela EC 37/02.

Uma vez reconhecida à competência do município para legislar sobre o referido imposto, por óbvio, que Lei Municipal que concedeu o benefício fiscal jamais poderá ser considerada inconstitucional.

Assim, tratando-se de isenção condicionada e concedida por período determinado, descabida a revogação do benefício, nesse sentido, a súmula 544, do STF4:

Busca-se na doutrina as melhores palavras para se explanar a impossibilidade de revogação, com o advento de Lei nova, trazendo os ensinamentos de José Antônio Patrocínio5:

Em regra, a isenção onerosa caracteriza-se pela fixação de um prazo de validade para o benefício, além da imposição do cumprimento de alguns requisitos.

A existência destas condições - prazo determinado e contrapartidas - é que impede revogação da isenção a qualquer tempo. Inexiste, portanto, a possibilidade de revogação ou alteração do benefício antes do término do prazo previamente fixado e acordado [...]

Assim, conclusivamente, pode-se afirmar que as leis municipais que instituíram isenções, classificadas como onerosas, não serão atingidas pela vedação imposta pela lei complementar 157/16.

Os beneficiários possuem direito líquido e certo de continuarem usufruindo do benefício fiscal até o final do prazo determinado no momento de sua concessão.

Entretanto, é possível observar muitos municípios revogando isenções onerosas, concedidas antes do advento da LC 157/16, sob as alegações de que era defesa a manutenção, bem como que houve a revogação do art. 178 do CTN, nada mais absurdo.

É preciso destacar que, via de regra, os requisitos legais, que se configuram na onerosidade da isenção, compreendem faturamento mínimo e contratação de mão de obra local.

Destaca-se, a empresa cumpre seu papel no requerido pela municipalidade, gerando emprego, portanto, renda, o que estimula o crescimento local como um todo, entretanto, vê-se refém da vontade do administrador.

Nada mais é do que um jogo de azar, onde o empreendedor investe em infraestrutura e pessoal para se instalar em determinado município, com a garantia de isenção fiscal, mas, sem qualquer justificativa, é desprotegido e tem a continuidade dos seus serviços ameaçada, mormente se considerando o custo tributário que entrará em seu passivo.

É compreensível que o leitor se questione, ora, a judicialização da questão é o caminho, há Lei, há Sumula e há a boa-fé, mas acreditem, não é simples assim.

Infelizmente, o poder judicante tem dado azo à esta violação fiscal, visto que, em decisões de piso, muitos Magistrados têm entendido que ainda que cumpridos os requisitos da Lei Municipal, seria defeso ao Município conceder a isenção do ISSQN, pois, com a entrada em vigor da emenda constitucional 37/02, a lei municipal deixou de ser recepcionada pela Constituição Federal.

Outros juízes defendem que para o cumprimento do art. 88 do ADCT, competia aos Poderes Executivos da União, dos Estados e municípios revogar os benefícios fiscais anteriormente concedidos, sem prejuízo dos direitos adquiridos.

Ousam ainda afirmar que, sequer havia que se falar em direito adquirido em relação aos beneficiários, porque a emenda constitucional é do ano de 2002 e qualquer isenção concedida em data posterior, seria inócua.

Tal situação viola por primeiro, o Código Tributário Nacional, em seguida, desrespeita súmula do Supremo Tribunal Federal e, por fim, fere o princípio da Boa-fé objetiva, que sabidamente rege os atos da Administração Pública, pois as expectativas criadas nos administrados direta ou indiretamente atingidos por tais incentivos são legítimas.

Conclui-se que, enquanto a questão não restar pacificada nos Tribunais Superiores, preferencialmente por meio de súmula vinculante (levando em conta sua necessária observância) ficam, tanto empregadores quanto empregados à mercê da boa vontade do Administrador público e, do bom senso do Magistrado, desejos cada dia mais utópicos.

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1 Esse foi o entendimento do E. Supremo Tribunal Federal, em Tribunal Pleno, ao examinar os Recursos Extraordinários 236.604-7-PR e 220.323-3-MG, ambos julgados em 26/05/99, tendo como Relator o Ministro CARLOS VELLOSO.

2 TJSP, ÓRGÃO ESPECIAL. ADIn 0268691-68.2012.8.26.0000, Relator Desembargador Samuel Júnior, julgado em 23/10/13

TJSP; Apelação Cível 1000098-27.2016.8.26.0577; Relator (a): Isabel Cogan; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Público; Foro de São José dos Campos - 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 07/02/18; Data de Registro: 15/02/18

3 CLAVERO, Bartolomé. El tercer poder. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1992.

4 Isenções tributárias concedidas, sob condição onerosa, não podem ser livremente suprimidas.

5 Lei Complementar nº 157/16 - Será o fim das isenções de ISSQN? - José Antônio Patrocínio – Disponível aqui.

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*Valdir de Carvalho Campos é advogado consultor cível e estratégico do escritório JBM Advogados

*Thales Coelho é auxiliar jurídico do setor consultivo estratégico do escritório JBM Advogados.