Trata-se de questão menor, verdadeira “cortina de fumaça”, que encobre a falta de governabilidade e de prioridades do governo, e sua visão distorcida sobre o interesse público. Desvia o debate de temas de maior impacto e mostra, sobretudo, que essa votação serviu como meio de os líderes descontentes dessem um recado ao presidente, gerando o risco de não aprovação da MP por força de uma filigrana, sem expor-se no debate sobre o verdadeiro desmonte de políticas que a nova estrutura embute.

Luiz Alberto dos Santos*

A aprovação final, na última terça-feira (28), do Projeto de Lei de Conversão (PLV) 10/19 resultante da apreciação da Medida Provisória (MP) 870, estabelecendo a nova estrutura administrativa do governo federal revelou uma inversão de valores sem precedente em debates sobre o tema.

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A cada período presidencial, é lícito e legítimo que o novo governante proponha ao Congresso o desenho de seu ministério, e escolha, com base nesse desenho institucional, os seus ministros de Estado. Na verdade, ele é obrigado a submeter ao Congresso quaisquer propostas que impliquem em criação ou extinção de órgãos públicos, ou seja, é uma prerrogativa que a Constituição estabelece como condicionada ao aval do Poder Legislativo.

Para tal fim os presidentes submetem ao Congresso, via de regra, medidas provisórias, com efeito imediato. Mas o Congresso pode ou não aprovar o que foi proposto, ou fazer ajustes, visando preservar estruturas ou arranjos já consolidados para evitar rupturas graves que afetem políticas públicas.

Raras vezes, porém, um Presidente propõe mudanças radicais no organograma ministerial. O último episódio comparável ocorreu em 1990, com a desastrada Medida Provisória 150, de Collor de Mello, que reduziu drasticamente o número de ministérios e foi revista apenas 2 anos depois.

No caso da MP 870, a premissa de enxugamento da máquina de 29 para 22 ministérios, a pretexto de “racionalizar” a Administração e gerar economia de recursos, gerou várias perplexidades: a criação de superministerios na Economia e Infraestrutura, e a extinção de pastas com grande peso e valor simbólico, como Cultura e Trabalho. Áreas como Meio Ambiente e Previdência foram enfraquecidas ou submetidas à lógica econômica, e a Justiça abriu mão de política indigenista, para concentrar seu foco em segurança, absorvendo novamente essa função que, no governo Temer, fora remetida a um ministério especifico. Por outro lado, surgiram várias redundâncias na coordenação de governo, com paralelismo entre Casa Civil e Secretaria de Governo na articulação política.

Nesses amplo quadro de reorganização, o superministerio da Economia absorveu todas as funções da área fazendária, planejamento, orçamento e gestão, indústria e comércio e, ainda, a maior parte das funções do Trabalho, exceto o Registro Sindical. Assumiu, claramente, a liderança do projeto neoliberal desregulamentação e privatizante, a pretexto de obter a redução do gasto público, enxugar a máquina e aumentar a competitividade do país. É o verdadeiro “fiador” da estabilidade econômica, garantindo ao governo credibilidade junto aos agentes econômicos, ainda que os resultados até aqui apresentados sejam pífios.

Nesses desenho, o Conselho de Controle de Atividades financeiras (Coaf), criado em 1998 no ambito do Ministério da Fazenda, foi transferido para o Ministério da Justiça e Segurança Pública, empoderando o ministro justiceiro Sérgio Moro. Manifestação clara de uma opção pelo “personograma”, mas, do ponto de vista prático a mudança implica a apenas que passa a caber a esse ministro indicar o presidente do Coaf, posto que a mudança não afeta quer as competências, quer a composição do conselho.

Ao apreciar a MP, foram aprovadas pela comissão mista que examinou a matéria 17 alterações, sendo as mais destacadas o retorno da política indigenista para a Justiça, a manutenção do Coaf na Economia (ex-Fazenda), a manutenção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e a destinação do Registro Sindical para a Economia.

Tema polêmico foi a adequação da competência da Secretaria de Governo, relativa às organizações não governamentais (ONG). A formulação original previa caber a esse órgão “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”. Dado o nível de ruído provocado pelas expressões “supervisionar” e “monitorar”, foi aprovada a alteração para “coordenar a interlocução do governo federal com as organizações internacionais e organizações da sociedade civil que atuem no território nacional, acompanhar as ações e os resultados da política de parcerias do governo federal com estas organizações e promover boas práticas para efetivação da legislação aplicável”. A formulação original foi criticada por subentender controle e até mesmo interferência na atuação dessas entidades, contrariando o princípio da liberdade de associação e organização da sociedade civil para fins lícitos.

Não se deu, todavia, maior atenção aos demais as problemas da nova estrutura, queda quanto ao gigantismo ou nanismo de algumas pastas ou a extinção de outras, ou a fusão de várias, mas subordinadas a uma lógica Orwelliana (onde o nome da pasta representa o oposto de sua real orientação, como no caso do novo Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos). A fragilização e “esquartejamento” da área ambiental, com a perda das funções sobre recursos hídricos e florestas, e sua sujeição ao interesse econômico, mal foi debatida.

Apesar da ausência de debates aprofundados a MP 870 teve tramitação conturbada em face da fragilidade da coordenação política do governo e dos conflitos gerados pelo presidente e seu entorno com o Congresso. Aprovada pela Câmara após 144 dias de vigência, a MP correu sério risco de perder eficácia e não ser aprovada pelo Senado antes de seu esgotamento em 3 de junho, o que levaria ao restabelecimento da estrutura vigente até junho de 2017, composta por 27 órgãos com nível ministerial, dada a decisão do STF de considerar inconstitucional a Lei 13.502, resultante da irregular edição da MP 782, de 2017.

Ao apreciar o parecer do relator, que foi o próprio líder do governo no Senado, o governo se viu parcialmente vencido. Por outro lado, o seu principal partido de sustentação, o PSL, não aceitou a volta do Coaf para a Economia e fez desse item “cavalo de batalha”. Derrotado na Câmara, insistiu até o último minuto em mudar o texto no Senado, o que obrigaria a nova votação na Câmara, com grave risco de perda de eficácia e consequente impedimento de reedição da MP no ano em curso.

Assim, o Senado, a contragosto, dada a exiguidade do prazo que lhe foi reservado para apreciar a MP 870, aprovou o texto oriundo da Câmara, exigindo porém que esta conclua o exame da PEC 70/11, de ex-senador José Sarney, e que há 8 anos aguarda exame em plenário naquela Casa. Se aprovada, a proposta dividirá os prazos para apreciação de MP entre Câmara (80 dias) e Senado (30 dias) e, novamente, Câmara (10 dias finais, se o Senado alterar o texto), sob pena de perda de eficacia em cada etapa. Dessa forma, não mais se repetiriam situações como essa, que resumem o Senado a ser mera instância carimbadora de textos aprovados pelos deputados.

Para garantir a deliberação pelo Senado, o presidente da República, num fato inédito, precisou enviar uma “carta” ao presidente do Senado firmada também pelos ministros da Economia, Justiça e Casa Civil, implorando a aprovação do texto. Tal fato e suas implicações não deixaram de ser notados pelo senadores: o presidente precisa que sua opinião seja respaldada, quiçá autorizada, pelos reais fiadores de seu governo... Tal queda de braços na apreciação da MP 870 evidencia total inversão de valores, colocando em primeiro plano e como objeto de clamor popular e pressão midiática questão secundária e de mínimo impacto organizacional.

Em seus 21 anos de existência o Coaf funcionou sem obstáculos no Ministério da Fazenda, hoje Ministério da Economia, e sem direcionamento de suas decisões, e sua vinculação à Justiça em nada alteraria em sua legitimidade ou atuação, pois seus membros são servidores de carreira indicados pelos respectivos ministros. Nele estão representados o Banco Central do Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários, a Superintendência de Seguros Privados, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a Secretaria da Receita Federal do Brasil, a Agência Brasileira de Inteligência, o Ministério das Relações Exteriores, o próprio Ministério da Justiça, o Departamento de Polícia Federal e a Controladoria-Geral da União,

Ademais, em vários países importantes que tem instituições equivalentes, ela se vinculam a área fazendária ou aduaneira do governo, como Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França e Argentina. Outros, como Reino Unido e Portugal, vinculam o órgão à área de Justiça ou policial. E, em países como Rússia e o Chile, vincula-se diretamente ao presidente. Não há, porém, um modelo único ou regra de ouro que imponha a sua vinculação a qualquer área.

Mas mesmo que Bolsonaro quisesse insistir em sua proposta original, a questão poderia ser resolvida, em seguida, mediante edição de decreto autônomo que, não gerando aumento de despesa poderia transferir o órgão para a justiça e acolher a indicação de seu presidente segundo proposta do ministro da Justiça ou a ele submetida mediante consulta. Essa prerrogativa lhe é conferida pelo artigo 84, inciso IV da Constituição e já foi exercitada anteriormente por Dilma Rousseff, em relação ao Conselho Superior de Cinema e outros.

Trata-se assim de questão menor, verdadeira "cortina de fumaça" que encobre a falta de governabilidade e de prioridades do governo, e sua visão distorcida sobre o interesse público. Desvia o debate de temas de maior impacto e mostra, sobretudo, que essa votação serviu como meio de os líderes descontentes dessem um recado ao presidente, gerando o risco de não aprovação da MP por força de uma filigrana, sem expor-se no debate sobre o verdadeiro desmonte de políticas que a nova estrutura embute.

Limitado pelo argumento da legitimidade do governo para definir sua estrutura, o Congresso abriu mão de seu papel de apreciar o mérito desse novo arranjo ministerial e sua capacidade de formular, coordenar e executar políticas públicas, deixando de debater a fundo as questões formuladas pelas mais de 500 emendas apresentadas.

Escolhas dessa ordem não são vocacionadas a perdurar, e os erros materializados na aprovação da MP 870 serão, provavelmente em curto prazo, revistos, como ocorreu em 1992.

Porém, até lá a paralisia administrativa resultante de uma forma desorganizada e descoordenada de governar e do desmonte de estruturas essenciais para o diálogo social e a gestão setorial produzirão múltiplos efeitos perversos para o país.

(*) Consultor legislativo e advogado. É mestre em Administração, doutor em ciências sociais, professor da Ebape/FGV e sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas.

Diap