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Sou fã do professor Lenio Streck: gosto da forma como ele escreve; concordo, quase sempre, com suas posições. Sua coluna, toda quinta-feira, na ConJur, muitas vezes representa exatamente o que eu estava pensando na semana; me deixa com aquela sensação de que eu não estou sozinha no mundo.

Quando, no último dia 16, ele escreveu sobre os famigerados algoritmos, eu dava pulos de felicidade, e quando li a continuação na semana seguinte, apesar de perceber que literatura não é o forte dele, e achar a história do avô meio chata, li e reli os argumentos, para guardá-los, separá-los e catalogá-los. Estão ali a base da pesquisa de pós-doc que, em breve, irei fazer (não contem para o meu marido, pois acho que, se eu disser que ainda vou estudar mais, ele enfarta). Isto posto, tem uma questão que mesmo os mais progressistas dos pensadores não levam em conta quando analisam esses fenômenos da pós-modernidade: a desigualdade de gênero.

A utilização das lawtechs, dos algoritmos, da inteligência artificial nada mais é do que modernizar o obsoleto e, como disse o professor Lenio, não digo isso para rechaçar a ciência, mas para dizer que as mudanças em curso no mundo jurídico nada têm de transformador, no âmbito do Direito; pelo contrário, elas solidificam essa ideia de operador do Direito, algo próximo do operador de máquinas da indústria automobilística que, com o passar dos anos, foi sendo ultrapassado e substituído pelo robô.

O mercado gigantesco da coisa jurídica, a partir das políticas neoliberais da década de 1990, fez do Brasil o segundo país com o maior número de processos judiciais per capita, e o maior em proporção de advogadas(os) do mundo, ultrapassando a barreira de um milhão de inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil.

Esse processo de aumento da demanda, da entrada das empresas multinacionais resultante das privatizações, da expansão irresponsável de escolas de Direito, foi ao encontro da ampliação das mulheres das classes médias no mercado de trabalho e resultou na feminização e na precarização da profissão de advogado. Hoje, o retrato da advocacia é de mulheres mal remuneradas.

Em 24 de maio, éramos 1.139.462 advogados, sendo 560.399 mulheres e 579.063 homens, o que nos dá uma porcentagem de 49,1% e 50,9%, respectivamente. Entretanto, quando destrinchamos os dados, percebemos que elas são 64% dos inscritos, até 25 anos, 55,3%, até os 40 anos, 54% das estagiárias, e 70% das concluintes do curso de Direito. Logo, a advocacia não está se feminizando; ela já se feminizou, e tal realidade foi essencial para a expansão dos serviços advocatícios no país.

As mulheres, quando entraram nessa seara historicamente masculina, foram submetidas a trabalhos menos intelectualizados, de menor valor agregado e com menos oportunidades de destaque, liberando, assim, os homens para funções mais negociais, mais empoderadas e mais bem remuneradas. A necessidade de mais gente operando o dia a dia do universo jurídico abriu portas para as mulheres, na base de uma pirâmide que só crescia.

As mulheres foram crescendo essa base na proporção que cresciam as ações, os processos, as estratégicas contenciosas. A pesquisa da professora Patrícia Bertolin apontou que eram, na média, 70% de mulheres entre os advogados juniores e 30% entre os sócios.

Segundo a pesquisa da Consultoria Robert Half, em 2019, as advogadas(os) trabalhistas juniores, área com maior concentração de mulheres e de processos, ganhavam entre R$ 3,3 mil e R$ 5,5 mil, o que coloca essas profissionais entre as classes sociais C e D, muito distantes do senso comum das riquezas inerentes ao status da carteira vermelha. Apenas para ilustrar, um analista do mercado financeiro no começo de carreira, profissão em que as mulheres não chegam a 30%, ganha entre R$ 6 mil e R$ 12 mil.

Digo tudo isso para informar às mulheres que o campo de trabalho existente, até aqui, deixará de existir em breve, e que elas serão as mais atingidas; serão substituídas por sistemas inteligentes, com nome e tudo, que preencherão as peças padrão sem erros; não terão crises de enxaqueca pré-menstrual, não engravidarão, e conseguirão ser mais baratos do que a mão de obra feminina.

No entanto, como disse no começo, sou fã do professor Lenio e, como ele, não acredito que o que essas mulheres fazem atualmente seja Direito, mas, sim, um burocrático trabalho, a serviço de um sistema jurídico em colapso. Porém, talvez pelo fato de ainda não ter 40 anos, otimistamente entendo que o Direito e o exercício do contraditório, peça fundamental de qualquer sistema minimamente digno, resistirão ao domínio da máquina e ganharão força simbólica, teórica e ideológica, na velha luta entre a vida e o capital.

O Direito precisa de mais Filosofia, mais Sociologia, mais Psicanálise; o Direito precisa retomar o debate da sua função social, do que é direito no século XXI, do seu papel como agente de desenvolvimento, de transformação social. As advogadas(os) precisam ser juristas, ampliar o olhar, aumentar os canais de diálogo, recolocar as grandes questões sobre justiça, direitos, modelos; sobre o papel do Judiciário, sobre o lugar do indivíduo na ordem do dia, e deixar o sistema tecnológico com a árdua e burra função de alimentar o sistema judiciário.

E aí, meu camarada, é que as mulheres brasileiras fizeram uma limonada desse limão. Desde 2002, as mulheres são a maioria dos estudantes de doutorado no Brasil. Nas Ciências Sociais aplicadas, em 2014, as mulheres eram 60% dos pesquisadores cadastrados no CNPq e, em 2017, eram a maioria dos discentes dos programas de mestrado em Direito.

Como o mercado de trabalho é mais duro para as mulheres, estudar se tornou uma forma de angariar mais habilidades e currículo e, por isso, elas têm tomado as cadeiras universitárias e se dedicado a questões mais profundas e, consequentemente, mais importantes.

Independente de uma análise sobre a qualidade dos nossos cursos de stricto sensu, podemos supor que, ali, ainda temos boas produções teóricas, debates importantes, massa crítica, e que será pela construção do saber que teremos alguma chance de virar a mesa da opressão robótica.

Meu apelo, então, é que essa massa de advogadas, estagiárias, estudantes, que hoje carregam o piano desse sistema pouco justo, não gastem seu tempo apenas entendendo a engenharia jurídica, os desenhos sistêmicos, algoritmos e deep learning, mas que, também, se debrucem no cerne das questões democráticas, da justiça social, da igualdade, da liberdade, do direito a ter direito e, acreditem, isto as fará as advogadas desse novo milênio.

Mônica Sapucaia Machado é advogada, doutora em Direito Político e Econômico, professora da Escola de Direito do Brasil (EDB), coordenadora e autora das obras Women’s Rights International e especialista em compliance de gênero.

Revista Consultor Jurídico