Deliberadamente, o ministro ignora a existência de quaisquer outras causas para o déficit primário; ignora causas importantíssimas, tais como as renúncias fiscais (que, segundo estimativas da Receita Federal, atingirão cerca de R$ 306 bilhões em 2019) e, principalmente, o baixo desempenho da nossa economia (essa, por sinal, apontada por ele como efeito e não como causa do déficit).

A argumentação falaciosa do ministro Paulo Guedes sobre a reforma da Previdência*

Cesar Roxo Machado**

O ministro Paulo Guedes tem conseguido vender para uma boa parcela da sociedade a ideia de que a Previdência Social é a grande culpada pelos problemas econômicos do Brasil. Claro, ele tem conseguido isso pelo fato de fazer parte de um governo que, ainda, desfruta de credibilidade em parte expressiva de uma sociedade ansiosa por mudanças que recoloquem o país nos trilhos e o façam crescer, mas sobre tudo por usar essa credibilidade como avalista de um argumento falacioso, que tem a aparência de verdadeiro, mas é falso.

E como ele faz isso? É simples: o ministro apresenta premissas inquestionáveis e, a partir dessas premissas, apresenta uma conclusão que, embora aparente ser lógica e verdadeira para uma sociedade esperançosa de solução, é falsa.

Vejamos como ele faz isso: Paulo Guedes diz que há um grande déficit primário nas contas da União e que parte expressiva desse déficit é divido às despesas com a Previdência. Diz, ainda, que a expectativa de vida das pessoas tem aumentado, o que complica ainda mais o rombo da Previdência. Pois bem, ressalvado o fato de que o déficit do Regime Geral de Previdência Social – RGPS (entenda-se do INSS) esteja bem abaixo do valor por ele atribuído, essas afirmações são realmente inquestionáveis.

Assim, a partir dessas afirmações, Paulo Guedes conclui que a Previdência Social é a grande culpada pelo déficit primário e, consequentemente, o principal obstáculo para que o país volte a crescer. Aqui está a falácia. Deliberadamente, o ministro ignora a existência de quaisquer outras causas para o déficit primário; ignora causas importantíssimas, tais como as renúncias fiscais (que, segundo estimativas da Receita Federal, atingirão cerca de R$ 306 bilhões em 2019) e, principalmente, o baixo desempenho da nossa economia (essa, por sinal, apontada por ele como efeito e não como causa do déficit). Então, diante dessa conclusão falsa, o ministro afirma que a única solução (não existe nenhuma outra) para resolver o problema é fazer uma ampla reforma da Previdência, transformando-a de regime de repartição simples (previdência social) em regime de capitalização (previdência privada).

E o ministro vai além; para que sua conclusão falsa tenha mais aceitação por parte da sociedade, ele recorre a outros tipos de falácias, chamadas de “apelos a motivos”, que possuem a intenção de neutralizar o senso crítico do receptor para que sua mensagem falsa seja naturalmente aceita de forma irrefletida. Percebe-se isso, por exemplo, no:

– “apelo à autoridade”: o ministro coloca-se como a grande autoridade no assunto para dar credibilidade às suas afirmações. Todavia, esquece de dizer que participou da implantação do sistema de capitalização da previdência do Chile, que, comprovadamente, mostrou-se desastroso. Esqueceu-se de observar que ele não tem a isenção necessária para conduzir uma reforma, que transforma a Previdência Pública em privada e mexe com a vida de milhões de pessoas, só para atender aos interesses do mercado financeiro, uma vez que ele representa esse setor;

– “apelo ao medo”: se a reforma não for feita, o país não cresce, o desemprego aumenta, a taxa de juros subirá drasticamente e o país entrará em recessão;

– “apelo ao interesse do receptor”: temos que acabar com os privilégios! Você não quer acabar com os privilégios? Então temos que fazer a reforma da Previdência. Neste caso, inclusive, as alegações do ministro beiram à má-fé, pois certamente ele sabe que a reforma na Previdência do serviço público já foi feita e que nenhum servidor que tenha ingressado no serviço público a partir de 1º de janeiro de 2004 irá se aposentar com integralidade ou paridade. Isso sem falar que ele se refere a privilegiados de uma forma genérica, sem apontar efetivamente quem são os privilegiados, talvez para não se comprometer;

– “apelo ao preconceito”: associando valores morais, políticos, sociais ou culturais a uma pessoa para desmerecer suas opiniões. Neste caso, quando opositores ao governo criticam a reforma da Previdência, para validar seu argumento, é dito que foram eles (os opositores) que causaram o descontrole nas contas públicas e que, por essa razão, eles não têm moral nem competência para fazer crítica ao seu argumento.
As pessoas ouvem essas falácias todos os dias, a toda hora e acabam aceitando-as como verdadeiras. Afinal, como dizia Joseph Goebbels, ministro da Propaganda Nazista, “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.

Interessante observar, ainda, que algumas das ideias atribuídas a Goebbels são usadas por Paulo Guedes, ainda que ele não tenha conhecimento das suas origens. Vejamos que ideias são essas:

– Escolha um inimigo por vez. Ignore o que os outros fazem; concentre-se em um até acabar com ele. Nesse caso, o inimigo escolhido é a Previdência Pública.

– Mostre como o presente e o futuro estão sendo contaminados por este inimigo. Como é feito isso? O país não cresce por causa da Previdência. O futuro está comprometido, se não houver a reforma. E não é qualquer reforma, tem que ser a que ele quer. Aquela que interessa unicamente ao mercado financeiro.

– Bombardeie com novas notícias (sobre o inimigo escolhido) para que o receptor não tenha tempo de pensar, pois está sufocado por elas. Isso é feito todos os dias por todas as mídias.

– Discuta a informação com diversas interpretações de especialistas, mas todas contra o inimigo escolhido. O objetivo deste debate é que o receptor, não perceba que o assunto interpretado não é verdadeiro. É exatamente isso que ocorre, atualmente, na grande mídia, ao ser debatida ou discutida a reforma da Previdência. Não existe o contraponto, todos os debatedores apresentam o mesmo ponto de vista (a reforma da Previdência é necessária e a única solução).

Todavia, em que pese o argumento do ministro Paulo Guedes ser falacioso, não há como negar que existe um grande déficit primário nas contas da União e que parte expressiva desse déficit é sim devido às despesas com a Previdência. Também, não há como negar que existem problemas graves na Previdência que precisam ser corrigidos, inclusive no que diz respeito às idades mínimas para aposentadoria. Tudo isso é verdade. Porém, a Previdência Social, especificamente a do RGPS (INSS) está longe de ser a culpada nessa história. O principal culpado é o próprio governo federal, com suas péssimas administrações e com suas desastrosas políticas fiscal e econômica em que abre mão de bilhões de reais com renúncias fiscais, ao mesmo tempo em que estimula a especulação financeira em detrimento do investimento na produção, praticando juros altos, mantendo vigente um sistema tributário caótico e, consequentemente, dificultando o desenvolvimento e o crescimento econômico.

Afinal, ao longo dos anos, várias desonerações, isenções e imunidades tributárias (renúncias fiscais) reduziram consideravelmente o potencial de arrecadação das contribuições previdenciárias. Por sua vez, as renúncias fiscais envolvendo outras contribuições também são um grande problema. Aliado a essa realidade, o governo federal, amparado por uma alteração constitucional, desvincula da Seguridade Social 30% dos seus recursos para aplicar em áreas diversas da Previdência, Saúde e Assistência Social. É a chamada DRU (Desvinculação das Receitas da União). Em média, nos últimos 10 anos foram desvinculados cerca de R$ 72 bilhões por ano. Em 2018 foram desvinculados cerca de R$ 120 bilhões. O interessante é que, apesar de todas essas investidas contra o financiamento da Seguridade Social, em média, ela manteve-se superavitária em R$ 61 bilhões até 2015.

Somente a partir de 2016, por razões conjunturais da economia, é que o sistema começou a apresentar déficit. Mas isso só porque, em meados de 2014, o Brasil passou a enfrentar uma das maiores crises econômicas de sua história, que se agravou em 2015 e 2016, fazendo com que o PIB retraísse 7,4% e, por conseguinte, afetasse consideravelmente as receitas tributárias. Embora a economia tenha reagido a partir de 2017, o crescimento econômico ainda está longe de assegurar o financiamento necessário do Estado.

O fato é que não há como resolver o problema das contas públicas sem antes resolver os problemas econômicos do país. A economia tem de crescer, pois havendo crescimento econômico, haverá incremento na arrecadação e consequentemente, redução do déficit primário. Se não houver crescimento econômico: hoje acaba-se com a Previdência Pública, amanhã com a Saúde, depois com a Assistência Social, com Educação, com os demais serviços públicos e assim, sucessivamente, até praticamente acabar com o Estado como o conhecemos hoje (transformando-o em Estado mínimo).

A solução, pois, para o resolver o problema do déficit primário passa, necessariamente, pela melhora do desempenho da economia e não pela singela e tosca ideia de redução dos gastos com a Previdência. Segundo Henry Louis Mencken, “Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.

E para melhorar o desempenho da economia e, consequentemente, aumentar a arrecadação, é necessário, antes de mais nada, alterar o nosso sistema tributário, extremamente ultrapassado, caótico, complicado e concentrador de renda. A reforma tributária deve, pois, preceder a reforma previdenciária para alavancar o desenvolvimento, e não o inverso, como o governo está pretendendo.

Todavia, não pode ser qualquer reforma tributária, que, simplesmente, objetive a simplificação, tais como as que tramitam no Congresso Nacional. Deve ser uma reforma tributária ampla, que busque corrigir todas as anomalias do nosso sistema tributário.

Foi pensando nisso que a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip) e a Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco) juntaram esforços, em um movimento que foi batizado de Reforma Tributária Solidária, para analisar com profundidade os problemas do nosso sistema tributário e apresentar propostas visando corrigir suas distorções.

No livro “A Reforma Tributária Necessária” (obra integrante desse movimento) as duas entidades propõem uma série de mudanças no nosso sistema tributário visando torná-lo mais justo e menos concentrador de renda. Basicamente, as duas entidades propõem uma recomposição da nossa carga tributária (sem aumentá-la), reduzindo a participação da tributação sobre o consumo e, em contrapartida, aumentando a tributação sobre o patrimônio e a renda de forma a aproximá-la da carga tributária média dos países da Organização para Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Para dar uma noção do impacto favorável nas receitas públicas que essa reforma tributária pode proporcionar, com apenas duas propostas entre tantas apresentadas, o potencial de acréscimo na arrecadação é da ordem de R$ 160 bilhões. Para isso, basta acabar com a isenção sobre lucros e dividendos (existente somente no Brasil e na Estônia) e criar mais duas alíquotas na tabela de Importo de Renda das Pessoas Físicas, onerando somente quem ganha acima de quarenta salários mínimos, que significa cerca de 790 mil contribuintes em um universo de 29 milhões.

Essa proposta, entre tantas outras iniciativas, se implantada, é capaz de alavancar o desenvolvimento, o crescimento econômico do país e pôr fim no problema do déficit primário.

Contudo, será muito difícil de ser implantada, pois mexe com o grande poder econômico. É por essa razão que, apesar de todas as dificuldades que o governo tem enfrentado e enfrentará para aprovar a reforma da Previdência, para ele é infinitamente mais fácil combater o déficit primário de forma tosca e rápida, simplesmente cortando direitos dos trabalhadores e da sociedade em nome do tão almejado ajuste fiscal, do que se empenhar e se desgastar para reformar profundamente todo nosso sistema tributário.

(*) Título original

(*) Vice-presidente de Estudos e Assuntos Tributários da Anfip. Publicado originalmente no portal da Anfip

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