É essencial, dada a amplitude do debate na sociedade sobre a reforma, que discutamos uma alternativa. Ela deve partir do princípio de que um sistema justo deve ter caráter redistributivo em favor dos mais pobres, não apenas dentro dele, mas no conjunto da economia e da sociedade. Em outras palavras, os ricos devem pagar proporcionalmente mais que os pobres. Além disso, o sistema deve ser razoavelmente infenso ao ciclo econômico — isto é, deve funcionar mesmo em situação de recessão ou depressão, quando o consumo cai e não o lucro das grandes corporações bancárias e industriais.

Luiz Gonzaga Belluzzo* e José Carlos de Assis**

A sustentação da Previdência Social apoia-se no crescimento econômico. Sem crescimento a receita previdenciária pública — ou, nos termos da Constituição atual, a receita da Seguridade Social — inevitavelmente cai e leva todo o sistema ao desequilíbrio. A Seguridade pressupõe financiamentos específicos para dois tipos de beneficiários: trabalhadores formais, com benefícios proporcionais a sua contribuição em atividade; os assistidos pelo SUS, e aqueles que são objeto de assistência social: idosos, deficientes, rurais.

Diz-se do sistema atual de financiamento da Seguridade que se trata de um acordo de solidariedade entre gerações: a geração em atividade atual paga pela geração anterior que se aposentou. Isso tem sentido na Previdência, mas não é inteiramente verdade. Em grande parte, o financiamento da Seguridade é feito também pelas gerações que se aposentaram. Veja-se uma das principais fontes de financiamento, a Cofins. Ela se aplica a todos os produtos comercializados no mercado. Portanto, aos consumidores aposentados e pensionistas.

Aposentados e pensionistas, uma vez inativos, em muitos casos continuam a contribuir para a Previdência, seja diretamente (alíquotas sobre o benefício), seja indiretamente (impostos indiretos). Também aqui se quebra o princípio da solidariedade inter-geracional. Em qualquer hipótese, porém, e desconsiderando o caso mais evidente das aposentadorias especiais, de que trataremos abaixo, os mais pobres da Previdência acabam, via aposentadorias de maior valor relativo, transferindo renda para os que ganham mais.

Esse sistema funcionou razoavelmente nas últimas décadas enquanto tivemos crescimento econômico. Como temos tido recessão e até depressão, depois de 2015, soaram os alarmas de que entraria em colapso. Em termos constitucionais, a Seguridade não tem déficit: se suas fontes de financiamento regulares não bastam para cobrir as despesas, o orçamento fiscal deve cobri-las obrigatoriamente. Entretanto, com a economia em crise, as tensões aumentam. O orçamento fiscal costuma tirar dinheiro da Seguridade. Não dar.

Quando se introduz na equação os regimes próprios de aposentadoria — juízes, promotores, parlamentares, militares, com previdência complementar em parte bancada pelo empregador para altos funcionários do governo, das Forças Armadas e de empresas estatais — fica evidente a iniquidade de todo o sistema, no qual pobres financiam ricos. E os ricos são justamente aqueles que, em atividade, ganham mais que a média dos brasileiro, e portanto teriam ao longo da vida renda para constituir poupança para aposentadoria e pensões.

Tendo em vista a ampla contestação que o projeto de reforma previdenciária suscita na sociedade brasileira, inclusive com a convocação de uma grande vigília nacional para discuti-lo ao longo de um mês, a partir de 15 de abril, é preciso buscar alternativas. Inicialmente, a proposta do regime de capitalização, defendida como prioridade absoluta pelo ministro da Economia, é simplesmente inaceitável. Estrangula a Previdência tradicional e dá ao trabalhador a única alternativa de aderir a ele.

É que, junto com a infame Reforma Trabalhista do governo Temer e a carteira verde-amarela inventada para reduzir custos trabalhistas das empresas, o regime de capitalização empurra trabalhadores atuais e novos para um sistema no qual, sem a contribuição do patrão que existe hoje, eles são obrigados ao novo regime proposto. É um processo absolutamente cruel de colocar o sistema previdenciário, não nas costas da geração atual, mas nas costas dos trabalhadores atuais, promovendo no sistema o equilíbrio da miséria.

É essencial, dada a amplitude do debate na sociedade sobre a reforma, que discutamos uma alternativa. Ela deve partir do princípio de que um sistema justo deve ter caráter redistributivo em favor dos mais pobres, não apenas dentro dele, mas no conjunto da economia e da sociedade. Em outras palavras, os ricos devem pagar proporcionalmente mais que os pobres. Além disso, o sistema deve ser razoavelmente infenso ao ciclo econômico — isto é, deve funcionar mesmo em situação de recessão ou depressão, quando o consumo cai e não o lucro das grandes corporações bancárias e industriais.

Essas premissas deveriam orientar a constituição de um sistema fiscal global cujo financiamento evite os impostos indiretos — Cofins, ICMS — e se concentre em impostos diretos sobre a renda e o patrimônio improdutivo dos ricos e muito ricos — principalmente CLL (Contribuição sobre o Lucro Líquido) (que deve ser elevado) e, principalmente, imposto sobre dividendos e lucros distribuídos a proprietários e acionistas, em níveis adequados. Note-se que, mesmo em recessão, e talvez principalmente em recessão, os lucros das empresas costumam subir.

Há outras fontes de financiamento previdenciário de menor escala que poderiam ser preservadas, desde que sem onerar muito o consumo. Em termos fiscais gerais, a tributação sobre o consumo, que deverá continuar financiando os Estados, deve ser reduzida. Caso se queira ir mais fundo na reforma tributária, que achamos fundamental, pode-se adotar o modelo norte-americano de tributação estadual da renda, complementar à tributação federal. Ou simplesmente criar uma regra de partilha maior com os Estados do imposto de renda federal.

Em qualquer hipótese, a renda do trabalho deve ser preservada relativamente na tributação sobre a renda. O regime tributário atual é iníquo. Sequer preserva o valor real da renda auferida porque o imposto não é corrigido monetariamente, ou é corrigido por índices inferiores aos da inflação. Em suma, estamos diante de desafios sistêmicos. Em primeiro lugar, antes mesmo da reforma previdenciária, é fundamental que o governo saia do imobilismo e adote uma política econômica de retomada do crescimento e do pleno emprego.

No contexto de crescimento, os conflitos de interesse podem ser amenizados, e torna-se mais fácil acabar com o exército de reserva criado pela legislação trabalhista de Temer. É que temos 13,1 milhões de trabalhadores desempregados e 27 milhões de subempregados. Se uma fração desses trabalhadores e trabalhadoras que estão virtualmente fora do mercado de trabalho retornarem a atividade plena, até mesmo o sistema previdenciário iníquo que temos hoje entraria em equilíbrio em termos financeiros, embora ainda não em termos de justiça social.

(*) Economista e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Faculdades de Campinas.

(**) Economista, doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba e autor de mais de 20 livros sobre economia política. Publicado originalmente no portal Disparada

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