INTERESSE PÚBLICO

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No início do filme O Sétimo Selo, dirigido por Ingmar Bergman, um cavaleiro medieval, recém-chegado das Cruzadas, enfrenta a Morte em um jogo de xadrez. No primeiro contato com a Morte, percebendo o seu fim iminente, o cavaleiro pede à Morte que “espere um pouco”. A Morte retruca, insensível: “Vocês sempre dizem isso. Mas eu não vou adiar”. O cavaleiro afirma ter visto em pinturas que a Morte aprecia jogos de xadrez e a convida para uma partida. Embora a Morte desconfie que o convite é apenas astúcia do cavaleiro para retardar o seu destino inelutável, termina por aceitar o jogo, pois a Morte nunca perde. Entre os lances da partida, o cavaleiro tem oportunidade de interrogar a si mesmo e à firmeza de sua fé, testemunhar a fragilidade do homem diante da peste negra e preparar-se para o seu destino final.

A nova proposta de reforma da Previdência (PEC 6/2019), ao menos como discurso oficial, é como a personagem Morte, retratada por Bergman. Não aceita adiamentos. Considera-se inelutável. Não admite soluções alternativas ou negociação de fundo, embora aceite o jogo do debate parlamentar e as audiências públicas, pois está confiante de que no final será o resultado incontornável do debate público. Outra semelhança notável: como a personagem Morte no Sétimo Selo, a nova proposta da reforma da Previdência comunica mais pelo silêncio, por suas lacunas, do que pelo que vem explicitamente enunciado.

Em Direito, é verdade, lacuna não é apenas silêncio: lacunas são falhas ou omissões de regulação contrárias ao sistema jurídico, prejudiciais e censuráveis, que exigem solução em concreto (pelo juiz) ou em abstrato (pelo legislador).

Na reforma da Previdência proposta, muitas lacunas podem ser apontadas, sobretudo nas regras de transição. Elas desafiam o princípio da proteção da confiança, elemento destacado da segurança jurídica, base de qualquer Estado de Direito. E, por vezes, o princípio da igualdade.

Há falha por assimetria e quebra de igualdade no percurso de transição previsto para as regras do regime geral, do regime dos militares e do regime próprio dos servidores. Há falha na ausência de “regras de transição de segundo grau”, voz que utilizo para referir as regras que devem disciplinar a “transição da transição”: a “transição das situações jurídicas de transição” já previstas em emendas anteriores. É evidente também a ausência de regras de transição objetivas ou institucionais, aquelas relacionadas aos efeitos sistêmicos das alterações propostas, a exemplo de alguma norma que atenue o impacto nos regimes próprios da redução das contribuições decorrente do incentivo renovado aos regimes de previdência complementar e defina a responsabilidade do poder público pela contabilização de passivos decorrentes dessa migração relevante de contribuições de um regime para o outro. Há ainda lacunas relacionadas à desconstitucionalização de grande parte do sistema constitucional de previdência para a lei complementar.

No domínio temporal, o Direito persegue duas finalidades tendencialmente conflitantes: por um lado, a estabilização das expectativas, a garantia da segurança no planejamento pessoal, social e econômico e, por outro, a inovação e adaptação da sociedade à evolução histórica e às circunstâncias. Se o cidadão, a administração ou as empresas não puderem calcular as consequências no futuro de suas decisões e comportamentos no presente, a autoridade será negada, e a coesão social será impossível por insegurança jurídica. Se o bloqueio à adaptação normativa for absoluto, por igual, a sociedade duvidará de sua própria capacidade de responder aos desafios do futuro. Nesse domínio conflitivo, as disposições transitórias permitem a criação de pontes temporais ou normas especiais de passagem, assegurando a consideração dos fatos passados e das normas vigentes (com seus efeitos), sem recusar a nova disciplina normativa e a evolução e a dinâmica do Direito.

Regras de transição são essas normas de passagem, normas provisórias e excepcionais que se esgotam com a realização no tempo da situação que regulam. Mas como estão previstas — com falhas de assimetria e omissão na regulação — as regras de transição da PEC 6/2019 não realizarão o propósito de conciliar segurança e mudança, e desacreditarão as suas próprias disposições, que não suscitarão confiança, pois sequer respeitaram as normas de transição anteriores com um mínimo de proporcionalidade e justiça.

 é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

Revista Consultor Jurídico