Falar em 140 caracteres não é governar

Há um ditado chinês que diz que “falar não cozinha o arroz”. Aposto que chineses mais contemporâneos diriam que tuitar tampouco cozinha o arroz ou qualquer outro alimento.

Serve à perfeição para um certo Donald John Trump, que divide as funções de presidente dos Estados Unidos como as de “Twitter-in-chief”, como o chamou outro dia um colunista cujo nome perdi.

Poderia citar um punhado de investidas de Trump nas redes sociais que não cozinharam o arroz. Mas vou ficar só nas duas que estão mais presentes no noticiário.

Primeiro, os ataques contínuos aos imigrantes, prometendo tratá-los a pão e água —ou nem isso, na verdade. 

Cozinhou o arroz, ou seja, desestimulou a vinda de imigrantes? Nadica de nada: só no mês passado, 76 mil estrangeiros entraram ilegalmente nos Estados Unidos, o número mais alto em 12 anos.

Se se interessasse mais em estudar os problemas do que em tuitar, Trump saberia que a principal causa para a emigração em massa de centro-americanos é a violência em seus países (Guatemala, Honduras e El Salvador). 

Qual é o maior fornecedor de armas de fogo para esses países? 

Adivinhou: os Estados Unidos.

O tuitero-chefe, no entanto, está tratando de tornar ainda mais fácil o comércio de armas para a região, afrouxando a supervisão do Congresso.

Segundo ponto: o déficit comercial, em especial com a China. Desde a campanha eleitoral, Trump fincou o pé na necessidade de reduzir o déficit comercial americano. Cozinhou o arroz, nesse caso?

Ao contrário, o déficit bateu em US$ 891,3 bilhões no ano passado (R$ 3,445 trilhões), um recorde histórico.

Adiantou o barulho armado com as sanções comerciais impostas aos chineses? Tampouco. Até porque o déficit tem motivos que não passam, necessariamente, pelas práticas chinesas (de fato, algumas 
delas são trambiques).

O aumento no buraco da conta comercial se deve a outros fatores, um dos quais exacerbado pelo próprio Trump, ao promover um corte de impostos da ordem de US$ 1,5 trilhão (R$ 5,79 trilhões), o que deixou os americanos com mais dinheiro para importar bens, chineses ou outros.

Há quem veja na obsessão com o déficit comercial uma demonstração de que “Trump não tem realmente a menor ideia de como o comércio internacional funciona”, como escreveu Paul Krugman para o New York 
Times desta sexta-feira (8).

Krugman é prêmio Nobel de Economia e explica que nem o déficit orçamentário (outro inimigo declarado dos republicanos) nem o déficit comercial “representam um perigo claro e presente para a economia 
americana. Países avançados que tomam empréstimos em suas próprias moedas podem incorrer em grandes dívidas e frequentemente o fazem sem consequências drásticas”.

Atenção ao trecho “países avançados”: o Brasil não é um país avançado (aliás, é cada vez mais atrasado) e, portanto, endividar-se tem, sim, as tais consequências drásticas.

No Washington Post, Jennifer Rubin faz uma sintética avaliação das ações de Trump: “Ele partiu para consertar um não-problema (o déficit comercial) e criou problemas reais, incluindo conflito internacional, preços mais altos para os consumidores e grandes ineficiências na nossa economia”.

Se você pensou em outros presidentes cujos tuítes não cozinham o arroz, pensou bem. 

Preciso dar nomes?

Clóvis Rossi

Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

Folha de S.Paulo