Neste artigo, o autor explica que o governo Bolsonaro se estrutura em 3 núcleos de poder. Parece evidente que se trata de um governo que foi organizado para falar para 3 públicos segmentados: os seus eleitores mais fiéis (os fundamentalistas), os setores da chamada “classe média” moralistas-justiceira; e o mercado.

Até o momento, quem mais bem sistematizou os supostos núcleos estratégicos do governo Bolsonaro foi o professor da FGV e presidente do Instituto Luís Gama, Silvio Almeida. Em artigo publicado recentemente sob o título “Sobre política, distração e destruição”, ele definiu e sistematizou 3 núcleos: 1) o ideológico-diversionista, 2) o policial-jurídico-militar, e 3) o econômico (mercado).

Definindo assim, modus operandi do governo de modo a dar-lhe operacionalidade e conteúdo para relacionar-se com os seus 3 públicos-alvo: 1) os eleitores fundamentalistas do capitão; 2) os setores de “classe média” moralistas-justiceira; e 3) o mercado. 

Leia a íntegra do artigo abaixo:

Silvio Almeida*

O atual governo tem 3 núcleos:

1. O ideológico-diversionista. Serve apenas para manter a moral da “tropa” em alta, dando representatividade e acomodação psicológica a quem realmente acredita que o Brasil é socialista, que existe ideologia de gênero ou que a terra é plana. Serve também para causar indignação e tristeza nos “progressistas” e, assim, desviar a atenção das questões centrais manejadas pelos núcleos 2 e, especialmente, pelo 3.

Pode também ser utilizado para criar bodes expiatórios: se algo der errado em qualquer setor dir-se-á que foi porque não houve “pulso” para combater a ameaça vermelha, os defensores dos direitos humanos ou os apologistas da ideologia de gênero. Basta trocar por outro mais moderado ou ainda mais alucinado, a depender das circunstâncias. Por mais que haja oportunismo, é importante que os recrutas desse núcleo acreditem nas coisas que dizem. É o exército de Brancaleone, mas causará muitos estragos.

2. O policial-jurídico-militar. Aqui não tem brincadeira e nem folclore. Acabou o circo. Gente profissional, que sabe operar a máquina repressiva. Vai garantir a materialidade das loucuras do núcleo 1 eliminando os críticos e dando corpo aos “inimigos da pátria”, provavelmente por meio do processo penal. Mas também irá este núcleo abrir espaço para a concretização das medidas no núcleo 3. Aqui não tem arminha com o dedo. É arma de verdade. É cadeia. É destruição física e moral.

3. Por fim, o núcleo econômico. Aqui está o nervo. Aqui a terra é redonda; não tem fala contra a globalização; ninguém acredita que exista socialismo no horizonte. Aqui a turma estuda, tem PHD e já leu Marx. Aqui “dinheiro não fede”, podendo vir dos EUA, da China ou da Rússia.

Os direitos trabalhistas, a Previdência, a Assistência Social, a Saúde e a Educação irão para o vinagre a partir daqui e não pelas mãos da turma do “menino veste azul e menina veste rosa” (que baita distração, hein?). Daqui vem a ordem para pôr agrotóxico na comida, retirar terra de índio e quilombola, afrouxar licenciamento ambiental e garantir o sequestro dos bens públicos e do orçamento. Para esta turma, o resto é tudo lateral. Depois de feito o trabalho, será até possível o núcleo 2 pegar mais leve. Até essa coisa de direitos humanos pode voltar. E assim o núcleo 1 se torna dispensável. Depois que tudo for (des)feito, pode vir uma pessoa “sensata”, um liberal, uma versão made in Brazil do francês Macron para reestabelecer a “racionalidade”, a “democracia” e o “estado de direito”.

P.S. Edit para evitar incompreensões: toda ideologia é “distração; é próprio da ideologia distrair. E são essas distrações que matam pessoas e destroem vidas. Nesse sentido, o racismo é a “distração” necessária do colonialismo e da desigualdade; a bobagem dita sobre a “ideologia de gênero” é a distração do patriarcado e do domínio masculino, que só o feminismo pode quebrar. O sem sentido do combate ao “marxismo cultural” e o “escola sem partido” são a distrações para desmoralizar a crítica e a apresentação de alternativas políticas.

Para dominar a economia é fundamental que se exerça poder sobre os corpos, sobre as identidades, sobre o gênero e a sexualidade. É necessário que alguém diga o que você é para a economia funcionar. Isso implica que a ideologia mata e deve ser capaz de matar, e para tanto existe o núcleo 2. Esse texto, portanto, é simplesmente para chamar a atenção sobre o que NÃO está sendo dito e não sobre o que está sendo vocalizado.

(*) Professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e presidente do Instituto Luís Gama

Fonte: Diap