SEM RELEVÂNCIA PENAL

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A mera deficiência na infraestrutura de alojamentos em frentes de trabalho de colheita no meio rural pode dar margem à responsabilidade nas esferas trabalhista e cível, mas não tem relevância criminal. Por isso, a violação a normas regulamentadores sobre saúde e segurança do trabalhador não pode ser interpretada como trabalho análogo ao de escravo, crime tipificado no artigo 149 do Código Penal.

O fundamento levou a 4ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região a acolher Embargos Infringentes e de Nulidade para absolver um empresário denunciado por trabalho escravo no município de Coronel Domingos Soares, sudoeste do Paraná. A decisão, por maioria, fez prevalecer o voto minoritário do desembargador Leandro Paulsen, em contraposição ao voto que condenou o réu por maioria na 8ª Turma, proferido pelo colega João Pedro Gebran Neto.

O desfecho da Ação Penal no colegiado – que uniformiza a jurisprudência nas turmas criminais – valorizou a sentença do juiz de origem, que absolveu o empresário das imputações feitas pelo Ministério Público Federal. A relatora dos Embargos Infringentes, desembargadora Claudia Cristina Cristofani, afirmou que, afora ‘‘certa precariedade’’ no alojamento e nas condições de trabalho, os trabalhadores não foram submetidos a uma situação de aviltamento. É que, como percebeu o desembargador Paulsen, não há notícia de trabalhos forçados, jornada exaustiva, ausência de pagamentos ou restrição da liberdade de locomoção dos trabalhadores.

‘‘Ao contrário do que sustentado na denúncia, não há indícios de que o réu tenha agido com intenção manifesta de subjugar os trabalhadores rurais. Os autos nada mais revelam senão condições laborais, embora questionáveis sob a óptica do Direito do Trabalho, comuns à realidade agrícola brasileira, em especial, quando utilizada mão de obra sazonal’’, registrou no voto, seguido pela maioria dos integrantes da 4ª Seção.

A denúncia
O MPF embasou a denúncia de trabalho análogo ao de escravo a partir das conclusões do Grupo de Fiscalização Móvel da Divisão para Erradicação do Trabalho Escravo, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em averiguações feitas entre os dias 4 e 13 de novembro de 2009 numa fazenda localizada em Coronel Domingos Soares. Lá, acompanhados de policiais federais, os fiscais se depararam com um grupo de nove trabalhadores, contratados para a colheita da erva-mate, vivendo e trabalhando sob ‘‘condições degradantes’’.

Os autos-de-infração, lavrados em desfavor da empresa do réu, apontaram que os trabalhadores não contavam com ferramentas adequadas, tinham de fazer as suas necessidades fisiológicas no mato e não recebiam água potável durante a jornada de trabalho. Aliás, os próprios trabalhadores tinham de trazer a água de casa, fazendo a reposição em córregos da região.

Os fiscais também constataram ‘‘péssimas condições’’ dos alojamentos: camas improvisadas e desprovidas de roupas adequadas às condições climáticas da região; ausência de armários; locais inadequados para preparo de refeições; péssimas condições de conservação geral, asseio e higiene; instalações elétricas precárias passíveis de ocasionar choques elétricos ou outros tipos de acidentes; fogareiros no interior do alojamento, ocasionando risco de incêndio; ausência de material necessário para prestação de primeiros socorros; ausência de vaso sanitário na precária instalação sanitária disponível. Assim, segundo a denúncia do MPF, ‘‘verificou-se que não existiam condições existenciais mínimas para uma vida saudável. Não eram respeitados os direitos mínimos para o resguardo da dignidade dos trabalhadores’’.

Segundo a acusação, os fatos imputados ao acusado estão tipificados no artigo 149 do Código Penal. Registra o caput do artigo: ‘‘Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003). Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)’’.

Sentença improcedente
O juiz Christiaan Allessandro Lopes de Oliveira, da 1ª Vara Federal de Pato Branco (PR), julgou improcedente a denúncia, com fundamento no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal – os fatos noticiados na denúncia não se constituem em infração penal. Para a incidência do tipo penal, segundo ele, teria de haver, necessariamente, uma das seguintes situações: submissão do trabalhador a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas; sujeição a condições degradantes de trabalho; restrição, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto; cerceamento de uso de qualquer meio de transporte, com a finalidade de reter o trabalhador no local de trabalho; mantê-lo sob vigilância ostensiva no local de trabalho; e/ou se apoderar de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

Conforme o juiz, os depoimentos prestados pelos próprios trabalhadores deixam claro que eles não foram submetidos a trabalhos forçados nem a jornadas exaustivas. A seu ver, os relatos indicam, apenas, que não havia controle de horário, pois os trabalhadores eram remunerados por produção – normalmente, trabalhavam entre 7 horas e meia a 10 horas diárias, com repouso para almoço. Durante os finais de semana, não trabalhavam, embora permanecessem quinzenalmente no local de trabalho. Ainda: não havia restrição à sua locomoção, vigilância armada, retenção de documentos nem cerceamento a uso de qualquer meio de transporte a fim de retê-lo no local de trabalho. Sem falar que a própria empresa os levava e os trazia para o trabalho. Todos retornavam às segundas feiras por livre e espontânea vontade.

‘‘Os trabalhadores informaram ainda que estavam com a carteira de trabalho registrada; que recebiam os salários mensalmente apenas com os descontos relativos a eventuais adiantamentos e que não eram forçados a trabalhar. Assim, denota-se a ausência da tipificação penal em relação às situações abordadas’’, complementou o julgador.

Nos depoimentos prestados em juízo, afirmou o juiz, os trabalhadores afirmaram que as condições de trabalho eram normais. Contavam com água potável, chuveiro quente, cama e banheiro na casa onde pernoitavam, fazendo as refeições de forma adequada. Chegaram a afirmar que as condições eram parecidas com as de suas casas, embora precisassem levar água para as frentes trabalho e inexistisse banheiro nesses locais.

Além disso, concluiu na sentença, o tipo penal exige o dolo; isto é, a consciência do agente de estar reduzindo alguém a um estado de submissão por uma das formas previstas no artigo. ‘‘Pelo interrogatório do réu, verifica-se que ele não tinha intenção de realizar o tipo penal; para ele as condições de trabalho eram normais e boas, não havendo intenção de submeter alguém à condição degradante. Com efeito, entendo que a conduta do réu é atípica, impondo-se a sua absolvição.’’

Apelação provida
Na 8ª Turma do TRF-4, a sentença acabou reformada. Por maioria, o colegiado entendeu que o empresário, de forma voluntária e consciente, submeteu os trabalhadores a condições degradantes. O desembargador-relator João Pedro Gebran Neto, que proferiu o voto condutor da decisão, condenou o réu a dois anos e nove meses de reclusão mais multa. Na dosimetria, a pena de prisão acabou substituída por prestação de serviços comunitários.

Nos fundamentos, Gebran disse que os elementos existentes nos autos – laudos, fotografias, depoimentos – levam à conclusão de que os trabalhadores viviam em situação degradante, embora muitos reputassem como ‘‘condições normais’’. O fato de os alojamentos contarem com fornecimento de água e de luz elétrica não é suficiente para concluir que as condições a que estavam sujeitos os trabalhadores eram aceitáveis, sobretudo tendo em conta que a água era obtida de uma cacimba próxima, sem elementos para afirmar que era potável. E não só. A fiação elétrica se encontrava em péssimo estado, colocando em risco a segurança dos empregados. Também a utilização de tonéis como fogões, alimentados por lenha, ameaçava a segurança dos trabalhadores, sujeitando-os a alto risco de incêndio, já que as construções eram de madeira.

‘‘Além disso, o empregador sequer forneceu camas, colchões e roupas de cama, alegando que ‘não sabia’ que cabia à empresa providenciá-los – afirmação que, por si só, denota o agir doloso do réu, na medida em que a disponibilização de condições mínimas para o descanso dos trabalhadores constitui obrigação evidente’’, agregou Gebran no voto, seguido pelo colega Nivaldo Brunoni, juiz convocado.

Voto divergente
O desembargador Leandro Paulsen apresentou voto-revisão, divergindo do entendimento de Gebran. Inicialmente, lembrou que o artigo 149 do Código Penal – redução à condição análoga à de escravo – foi alterado pela Lei 10.083/2003, que incluiu critérios objetivos para a configuração do tipo penal. Assim, reduz-se alguém à condição análoga à de escravo quando: obriga-o a trabalhos forçados; impõe-lhe jornada exaustiva de trabalho; sujeita-o a condições degradantes de trabalho; e restringe, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Entretanto, na análise dos depoimentos dos que prestaram serviço nas plantações de erva-mate, Paulsen não vislumbrou, em nenhum momento, situação de trabalhos forçados, coação para cumprimento de jornadas exaustivas ou restrição da liberdade de locomoção ou mesmo falsas promessas acerca de alojamento e tipo de trabalho a ser desempenhado. Na base, havia condições mínimas. ‘‘Os trabalhadores, cientes das precárias condições de alojamento, nada referiram em desabono a conduta do apelante [réu], mencionando que tinham ciência do local de alojamento, mantimentos fornecidos e do trabalho que lhes cabia’’, complementou no voto.

Conforme Paulsen, nesta atividade extrativista, o explorador do serviço de colheita desloca a equipe de trabalho para lugar remoto, colocando à disposição dos colaboradores apenas elementos mínimos para a subsistência. Afinal, a exploração é sazonal e tem prazo certo para encerramento em cada local. ‘‘Não há dúvida que a exploração do trabalho individual daqueles apontados pelo Ministério do Trabalho e Emprego se deu ao arrepio de diversas normas protetivas. A exposição do trabalhador a condições perniciosas de prestação laboral deve ser combatida pelo Estado. Todavia, sob a ótica do Direito Penal, como ultima ratio, não se observa do conjunto de elementos da persecução, restrição física ou moral, condições de trabalho nocivas a ponto de violação clara dos direitos essenciais da pessoa humana’’, concluiu o desembargador-revisor.

Como a condenação se deu por maioria, a defesa do réu interpôs Embargos Infringentes e de Nulidade na 4ª Seção do TRF-4, formada por julgadores da 7ª e 8ª turmas, pedindo a prevalência do voto vencido. O julgamento, por maioria, acolheu o recurso, revertendo a condenação.

Clique aqui para ler o acórdão dos Embargos Infringentes.
Processo 5001752-97.2011.4.04.7012/PR

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.

Revista Consultor Jurídico, 11 de janeiro de 2019