Com paredes pichadas e carros queimados, Paris exibe marcas da violência em atos de sábado (1º)

Lucas Neves
PARIS

Um tipo insólito de turismo dividiu espaço neste domingo (2), na região do Arco do Triunfo, em Paris, com a multidão que, faça sol, faça chuva, espreme-se na avenida Champs-Elysées para tirar selfies com o monumento.

Nas largas avenidas que se irradiam a partir da construção monumental, parisienses e estrangeiros erguiam celulares e câmeras para fotografar paredes pichadas, vitrines vandalizadas e carros queimados e revirados.

A paisagem pouco fotogênica era o resultado da ação, na véspera, de um segmento minoritário de “coletes amarelos”, os manifestantes que, vestindo o acessório obrigatório em veículos que circulam na França, tomam ruas e estradas do país há três sábados para pedir a revogaçãodo reajuste de uma taxa sobre o combustível —mas não só.

Neste domingo, de volta da reunião do G20 na Argentina, o presidente Emmanuel Macron pediu ao premiê, Édouard Philippe, que recebesse líderes dos “coletes amarelos” e da oposição, o que deve ocorrer nesta segunda (3). Nas redes sociais, já há convocações para um “quarto ato” de protestos, no sábado (8).

Na terceira jornada de mobilização, segundo números atualizados no domingo pelo Ministério do Interior, protestaram 136 mil pessoas, um pouco menos do que as 166 mil de uma semana antes. Mas a quantidade de feridos aumentou exponencialmente: foram 263 desta vez, contra 16 no dia 24.

Além disso, uma pessoa morreu em Arles (sudeste), em um engavetamento causado por um bloqueio de rodovia pelos “coletes amarelos” —foi a terceira morte acidental nas franjas do movimento.

Só em Paris, no dia 1º, a polícia deteve 412 pessoas (um recorde, segundo a corporação), das quais 378 seguiam presas na noite do domingo. Houve, além disso, 249 focos de incêndio, ao menos 130 envolvendo mobiliário urbano.

No “day after”, enquanto o arco, ainda fechado ao público após ser invadido e saqueado, era limpo de inscrições como “os ‘coletes amarelos’ irão triunfar” e “cabeças já foram cortadas por menos do que isso” (aceno à sorte da realeza na Revolução Francesa), o rastro de destruição no entorno seguia bastante visível.

Na avenida Kléber, pequenos grupos mascarados e munidos de paus e pedras destruíram agências bancárias, retorceram e derrubaram imensas grades de ferro e tombaram semáforos.

Na fachada de um dos hotéis cinco estrelas daquela área, picharam frases como “não é uma revolução, é uma insurreição” e “temos razão de nos revoltar”.

“As pessoas protestam porque desejam pagar menos impostos. Não percebem, entretanto, que essa degradação vai se refletir justamente no bolso delas”, disse, entre uma foto e outra, a conselheira tributária Anne Blanckaert, 39.

Um quarteirão adiante, dezenas testemunham o reboque de uma caminhonete incinerada. “Foi chocante ontem aqui”, dizia o economista italiano Filippo Gori, 38, que mora na região há três anos. “Havia um vácuo de autoridade, a cidade parecia entregue a saqueadores, abandonada. Algo vai ter de mudar. O governo não pode ignorar o que está acontecendo.”

No caminho de volta para o Arco do Triunfo, a reportagem cruza com dois homens que não se conhecem, mas que, diante de um prédio pichado com inscrições como “Babilônia arde”, “autodefesa popular” e “Paris nos pertence”, trocam impressões sobre os acontecimentos recentes.

“Não me surpreendo. Vejo ao meu redor milionários arrogantes e, ao mesmo tempo, uma precariedade crescente”, diz o educador Etienne, 48, que prefere não informar seu sobrenome. “Mas chama minha atenção a desconfiança dos manifestantes em relação a intermediários, sejam sindicatos, sejam partidos políticos. Deploro a explosão de violência, mas consigo entendê-la.”

O funcionário público Said, 41, que também não dá seu nome de família, evoca uma “violência política, social, de gerações, cristalizada no desemprego, na pobreza, nas alocações sociais”.

“Gostaria que perguntassem aos políticos sobre esse tipo de violência. E que a transição energética [para fontes menos ou não poluentes, que o governo quer financiar com a taxa sobre combustíveis] fosse bancada por grandes corporações, não por pessoas que dependem de seus carros”, afirma.

Nas avenidas vizinhas, além de vitrines destruídas, duas das imagens mais recorrentes são as frases “queremos um presidente dos pobres” e “basta de pilhar o povo” sobre paredes e fachadas.

A suposta desconexão de Macron com as classes populares é um dos motores dos protestos, em que, por diferentes canais —aumento do salário mínimo ou diminuição dos impostos sobre aposentadorias—, pede-se a recomposição do poder aquisitivo.

Nesse sentido, o fato de uma das primeiras medidas do presidente ao assumir, em 2017, ter sido a revogação do imposto sobre fortunas certamente não serviu para atenuar a contrariedade de segmentos da sociedade francesa.

Folha de S.Paulo