INTERPRETAÇÃO TEMERÁRIA

Em agosto, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça definiu, ao julgar um Habeas Corpus, que não pagar valores declarados de ICMS que foram repassados aos clientes caracteriza apropriação indébita tributária.

Apesar de não ter efeito vinculante, o entendimento tem sido aplicado em outras decisões, inclusive monocraticamente. Foi o que aconteceu no dia 14 de setembro, quando o ministro Rogério Schietti Cruz negou pedido para trancar denúncia por crime fiscal.

Para o advogado Marcelo Knopfelmacher, essas decisões geram uma insegurança jurídica, e o entendimento deve causar uma enxurrada de denúncia. Em sua opinião, é temerário que tipos penais sejam criados por interpretação da lei.

"Se se pretende alterar o arcabouço legislativo para criminalizar o não pagamento de tributos, é necessária deliberação do Poder Legislativo em tal sentido", afirmou em entrevista à ConJur.

Leia a entrevista:

ConJur — O STJ definiu que o crime de apropriação indébita tributária "não pressupõe a clandestinidade" e que o mero ato de deixar de pagar o imposto de maneira dolosa já configura o crime. Qual será o efeito disso?
Marcelo Knopfelmacher — A decisão do STJ, proferida em sede do HC 399.109-SC, por sua 3ª Seção, que congrega a 5ª e a 6ª Turmas de Direito Penal, definiu que o não pagamento do ICMS em operações próprias (ou seja, fora do ambiente de substituição tributária) configura o crime previsto pelo artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/1990. O efeito será uma enxurrada de denúncias criminais pelo simples inadimplemento de tributos, o que contraria toda a lógica da legislação penal tributária brasileira.

ConJur — Essa interpretação também não leva à inversão do ônus da prova?
Marcelo Knopfelmacher — Essa interpretação foi dada em um HC. Não se tratou do reconhecimento do dolo no caso concreto, o qual deverá ser aferido com base no substrato das provas obtido após a instrução criminal. Mas ficou consignado, nesse precedente, que o mero inadimplemento de tributo dito indireto (no caso, o ICMS) se enquadra no tipo previsto pelo aludido artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/1990.

ConJur — É uma tendência de "criminalização" do Direito Tributário?
Marcelo Knopfelmacher — A legislação penal brasileira (tanto a Lei 8.137/1990, como os artigos 168-A e 337-A do Código Penal) pressupõe, necessariamente, a fraude, a omissão, a prestação de informações falsas às autoridades fazendárias e outros ardis. Essa é, inclusive, a leitura do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, conforme decidido no ARE 999.425/SC, com repercussão geral, para reconhecer que, justamente por não se tratar de legislação que prevê prisão por dívida, não estaria em desconformidade com o disposto no inciso LXVII do artigo 5º da Constituição.

Não vejo uma tendência de criminalização. Vejo uma tentativa, por parte de alguns Fiscos, de intimidação para que se promova o pagamento. Tanto é verdade que, com o pagamento do tributo e de seus acessórios, opera-se a extinção da punibilidade, nos termos do artigo 9º, parágrafo 2º da Lei 10.684/2003.

ConJur — O entendimento não é contraditório com a jurisprudência de que conceder benefício fiscal não é crime nem improbidade? Se a empresa deixa de pagar o imposto por vários anos e depois entra num programa de parcelamento, isso agora será crime de lavagem?
Marcelo Knopfelmacher — O entendimento é contraditório em relação a todo o sistema, justamente porque não há crime no mero inadimplemento de tributos. As hipóteses previstas na legislação penal tributária sempre pressupõem uma fraude, um ardil, uma omissão, a prestação de informações falsas às autoridades fiscais, conforme já mencionado. Sendo assim, entendo que não há crime antecedente nessa hipótese para que seja caracterizado o crime de lavagem de dinheiro previsto pelo artigo 1º da Lei 9.613/1998, em sua atual redação.

ConJur — Do ponto de vista da política fiscal, faz sentido punir o inadimplente com um processo penal?
Marcelo Knopfelmacher — Entendo que não. Conforme manifestação anterior, essa é uma linha de conduta inadequada de alguns Fiscos que pretendem intimidar os contribuintes com o aparato criminal. E, nesse sentido, a decisão do STJ acaba por trazer enorme insegurança jurídica, uma vez que nossa legislação não admite a criminalização do simples inadimplemento de tributos.

Se se pretende alterar o arcabouço legislativo para criminalizar o não pagamento de tributos, é necessária deliberação do Poder Legislativo em tal sentido, sempre atentando para o disposto no inciso LXVII do artigo 5º da Constituição, que, sendo cláusula pétrea (imodificável sequer por emenda constitucional), impede que haja encarceramento por dívida, salvo nos casos de pensão alimentícia. Nesse sentido, aliás, é robusta a jurisprudência do STF, conforme o decidido no RE 466.343, que analisou a prisão na hipótese de depositário infiel em alienação fiduciária.

ConJur — O precedente do STJ não vai transformar as varas criminais em balcão de cobrança de impostos? Processos criminais costumam correr mais rápido que os fiscais, natural que o Fisco corra ao MP antes que o Judiciário diga que não há crédito tributário, não?
Marcelo Knopfelmacher — O cenário é de fato assustador. A questão precisa ser levada ao Supremo Tribunal Federal sob essa perspectiva. A Defensoria Pública, que está atuando no leading case, está fazendo um ótimo trabalho, mas o STJ, logo após a publicação em 31 de agosto desse acórdão proferido pela 3ª Seção, já está aplicando o precedente em decisões monocráticas, como é o caso, por exemplo, do julgamento do recentíssimo REsp 598.005-SC, publicado no último dia 19.

Revista Consultor Jurídico, 27 de setembro de 2018.