PARADOXO DA CORTE

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Quando o advogado celebra um contrato com seu cliente, emergem obrigações mútuas: o causídico obriga-se a prestar-lhe serviços profissionais com zelo e dedicação; o cliente obriga-se a remunerar o respectivo trabalho.

Como asseveram Nancy Andrighi, Sidnei Beneti e Vera Andrighi, “a prestação de serviço é um contrato bilateral, porque gera direitos e obrigações para ambas as partes, e, via de regra, oneroso, pois, geralmente, dá origem a benefícios ou vantagens para um e outro contratante” (Comentários ao novo Código Civil, vol. 9, Rio de Janeiro, Forense, 2008, pág. 222).

É exatamente por essa razão que o artigo 594 do Código Civil dispõe, de forma genérica: “Toda espécie de serviço ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratada mediante retribuição”.

Afinado com essa regra, o artigo 22 da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) prescreve que: “A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento e aos de sucumbência”.

Assim sendo, não há que se confundir os i) honorários contratuais, que são aqueles acertados entre advogado e cliente, com base na autonomia privada, com os ii) honorários de sucumbência, aqueles que decorrem da condenação da parte vencida (sucumbente) a pagar honorários diretamente ao advogado da parte vencedora, em um processo judicial.

Vale dizer, a relação entre advogado e cliente gera honorários contratuais, contratados entre si, convencionados na esfera da autonomia privada das partes da relação de confiança, enquanto que, no âmbito do processo judicial, emerge outra remuneração, atinente aos honorários de sucumbência. Ambas as espécies de honorários, convencionais (ou fixados por arbitramento) e de sucumbência são cumulativos e pertencem ao advogado, como forma de remunerá-lo pelo seu serviço indispensável à administração da Justiça.

É certo, no entanto, que a verba honorária de sucumbência deve ser sempre estimada pelo juiz, tomando-se como parâmetro, à luz do disposto no artigo 20, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil revogado e, agora, no artigo 85, parágrafo 2º, do vigente diploma processual, o princípio da razoabilidade, a evitar que a respectiva condenação implique injustificado enriquecimento do advogado ou dos advogados beneficiários em detrimento do patrimônio do litigante que perdeu a causa.

Embora pré-fixados por lei, os honorários de sucumbência, mesmo sob a égide do novo código, são estimados pela extensão do trabalho realizado e o tempo exigido para o seu serviço (ver, a respeito, Luiz Henrique Volpe Camargo, Breves comentários ao novo Código de Processo Civil, coord. Teresa Arruda Alvim et alii, São Paulo, Ed. RT., 2015, pág. 316).

Se, por exemplo, o causídico passa a atuar exclusivamente na fase conclusiva do procedimento, é evidente que deve perceber, quando o seu constituinte se sagra vencedor, uma soma menos expressiva, não se justificando, à evidência, que o advogado obtenha uma vantagem patrimonial desproporcional ao tanto do labor profissional que ele despendeu para o patrocínio.

É dizer, com Giuseppe Chiovenda: “O processo deve dar, na medida do possível, a quem tem um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que tem direito de conseguir” (Dell'azione nascente dal contratto preliminare, Saggi di diritto processuale civile, 1, Roma, Foro Italiano, 1930, pág. 110).

Em nosso sistema jurídico, o recurso especial é o meio processual para impugnar, perante o Superior Tribunal de Justiça, pronunciamento judicial colegiado de tribunal estadual ou de tribunal regional federal, nas hipóteses previstas no artigo 105, inciso III, da Constituição Federal.

Há pressupostos específicos que regem a interposição do recurso especial, tendo-se presente que o Superior Tribunal de Justiça não constitui tribunal de apelação, circunstância que lhe impede de reexaminar fatos e provas, a teor do enunciado da famosa Súmula 7: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”.

Em relação à fixação de honorários advocatícios de sucumbência, o Superior Tribunal de Justiça, em princípio, tem se posicionado no sentido de que o quantum, fixado a título de honorários de sucumbência processual, subordina-se a critérios previstos na legislação em vigor, sendo que o seu arbitramento constitui atividade valorativa afeiçoada às instâncias ordinárias, a quem cabe o exame e decisão pertinentes a questões de fato, relacionadas com o objeto individualizado de cada demanda (cf., por exemplo, Recurso Especial 1.721.210-SP, rel. ministro Herman Benjamin).

Tenha-se contudo presente que o Superior Tribunal de Justiça, norteando-se pelo princípio da legalidade, vem admitindo, ao longo do tempo, certa moderação no exercício de sua precípua função de interpretar e aplicar a lei federal infraconstitucional, em circunstâncias específicas, quais sejam, as que evidenciam inequívoca distorção (efetiva má aplicação) das normas jurídicas, em detrimento do direito de uma das partes que controvertem.

Não se trata propriamente de desvio de sua vocação constitucional, mas, sim, de uma concepção ontológica e moderna da jurisdição, a partir do cânone de que o processo judicial jamais pode ser fonte de enriquecimento injustificado.

Assim é que, em matéria de fixação de verba honorária de sucumbência, o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que a má aplicação dos critérios pré-estabelecidos na legislação processual pode ser corrigida em casos extremos, com a finalidade de restabelecer um equilíbrio de natureza financeira, tanto quanto possível justo, entre a parte vencida e a remuneração do advogado da parte que venceu o litígio.

E isso, em caráter de absoluta excepcionalidade, mesmo no âmbito da instância extraordinária, em sede de recurso especial. Na verdade, a questão de fato transforma-se em verdadeira quaestio iuris, que então é passível de ser revista pela referida corte de Justiça Federal.

O juiz, na hipótese de fixação mediante apreciação equitativa, deve estar atento às particularidades da demanda, podendo, se assim entender adequado, considerar ou não o valor da causa como base de cálculo da verba honorária. Em outras palavras: para arbitrar a verba sucumbencial na sentença de improcedência do pedido, o julgador deve levar em conta alguns fatores específicos, vale dizer, o grau de zelo do advogado, o lugar da prestação do serviço e, em particular, a extensão do trabalho efetivamente realizado (ver, a propósito, já sob a vigência do CPC de 2015, Bruno Garcia Redondo, Comentários ao novo Código de Processo Civil, coord. de Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer, 2ª ed., Rio de Janeiro, Gen-Forense, 2016, pág. 152).

Trilhando essa linha de raciocínio, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça admitiu a redução do montante fixado a título de honorários de sucumbência, no julgamento unânime do Agravo Interno no Recurso Especial 1.631.422-PR, relatado pelo ministro Benedito Gonçalves, ao averbar que:

“A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é assente no sentido de que, caso verificada a exorbitância ou irrisoriedade do valor relativo aos honorários advocatícios, este pode ser revisto, excepcionalmente, de forma a melhor se ajustar ao comando normativo inserto no artigo 20 do Código de Processo Civil/1973... Frise-se que esta Corte Superior de Justiça, ao se deparar com a possibilidade excepcional de revisão do valor dos honorários, não se vincula ao que fora reconhecido pelas instâncias ordinárias... Hipótese em que, não obstante a relevância da causa — constatação de sobrepreço em tomada de contas pelo TCU —, as verbas fixadas em mais de meio milhão de reais, ou 10% sobre o valor da causa, mostram-se exorbitantes, o que impõe a sua redução para 2% sobre a mesma base de cálculo, resultando em R$ 108.968,50, quantum que melhor se adequa aos aspectos da lide e remunera devidamente o trabalho desenvolvido pelos causídicos...”.

Em senso assemelhado, abonando a mesma proposição, em recentíssimo julgamento, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o Agravo Interno nos Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Especial 1.140.294-SP, com voto condutor da lavra do ministro Luis Felipe Salomão, assentou que:

“A jurisprudência desta Corte, excepcionalmente quando manifestamente evidenciado que o arbitramento da verba honorária fez-se de modo irrisório ou exorbitante, tem entendido tratar-se de questão de direito, e não fática, repelindo a aplicação da Súmula 07/STJ.

In casu, consoante se infere das razões do recurso especial, a condenação em honorários importará na quantia aproximada de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), valor este considerado exorbitante levando-se em consideração as peculiaridades do caso concreto, como a natureza da causa (ação movida para sustar protestos de dívida inexequível, na qual não houve condenação), o trabalho realizado pelos advogados e o nível de complexidade da causa.

Forçoso concluir que a razoabilidade, aliada a princípios da equidade e proporcionalidade, deve pautar o arbitramento dos honorários...”.

Corroborando tal entendimento, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 532.550-RJ, firmou orientação no sentido de que:

“A desproporção entre o valor da causa e o valor arbitrado a título de honorários não denota, necessariamente, irrisoriedade ou exorbitância da verba honorária, que deve se pautar na análise da complexidade da causa e do trabalho desenvolvido pelo causídico no patrocínio dos interesses de seu cliente...”.

Ressalte-se que o Código de Processo Civil de 2015 inovou e aperfeiçoou a matéria atinente a honorários advocatícios de sucumbência, redefinindo, no artigo 85, inúmeros aspectos importantes.

Todavia, no que se refere aos critérios genéricos para a respectiva fixação não houve qualquer alteração, devendo o juiz nortear-se: “pelo grau de zelo do profissional; o lugar de prestação do serviço; a natureza e importância da causa; o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço” (cf. artigo 85, parágrafo 2º). Igualmente, também não se modificaram os percentuais mínimo e máximo, entre 10% e 20%, para a condenação, com a novidade de que há previsão para sucumbência recursal (parágrafo 11).

Conforme, a propósito, acórdão da 1ª Turma no Agravo Interno no Agravo de Instrumento no Recurso Especial 1.714.545-SC, com voto condutor do ministro Sérgio Kukina, textual:

“A jurisprudência deste Superior Tribunal admite, em caráter excepcional, a alteração do quantum arbitrado a título de danos morais, caso o valor se mostre exorbitante, em clara afronta aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o que não ocorreu no caso concreto. 2. In casu, considera-se que o patrono da parte agravada atuou de forma diligente, apresentando as cabíveis contrarrazões ao recurso especial, fato que, aliado ao caráter desestimulador dos honorários recursais, justifica sua majoração em 20% (vinte por cento) sobre o valor anteriormente arbitrado pelas instâncias ordinárias para a verba advocatícia, nos termos do art. 85, § 11, do novo CPC/2015”.

Desse modo, tudo leva a crer que os tribunais ainda têm uma boa margem para evitar, nesta questão, indevido enriquecimento ou injusto empobrecimento, considerando as peculiaridades de determinadas causas. O juiz pode, ainda, desde que justifique, a teor do artigo 85, parágrafo 8º, valer-se de “apreciação equitativa”.

Bem pondera, a propósito, Renato Beneduzi (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 2, São Paulo, Ed. RT, 2016, pág. 130):

“O que o juiz deve fazer, com efeito, é fundamentar a fixação à luz dos elementos e dos fatos concretos da causa, sem empregar para justificá-la platitudes e expressões vagas e imprecisas que de concreto nada tenham a ver com a demanda. Lembre-se, neste ponto, que o artigo 489 define como não fundamentada exatamente a decisão que ‘se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida’ (inciso I)...”.

Avalizando essa doutrina, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em recentíssimo julgamento do Agravo Interno nos Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Especial 439.746-CE, da relatoria do ministro convocado Lázaro Guimarães, decidiu que:

“É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que o valor estabelecido a título de honorários advocatícios pelas instâncias ordinárias pode ser alterado nas hipóteses em que a condenação se revelar exorbitante, distanciando-se dos padrões de razoabilidade, o que ocorre no caso em apreço, em que arbitrado o montante de 20% sobre o valor da execução (R$ 9.176.333,98).

Na hipótese, extinto o processo de execução pela procedência dos embargos, a verba honorária deve ser fixada com base no § 4º do art. 20 do CPC/73, que prescreve como parâmetro a apreciação equitativa do magistrado, não se vinculando ao valor da causa, ou aos percentuais mínimo e máximo previstos no § 3º do aludido diploma processual, como equivocadamente determinou o Juízo de piso”.

E essa análoga orientação prevalece, mesmo sob a vigência do novo Código de Processo Civil, no Tribunal de Justiça de São Paulo, como, por exemplo, extrai-se de significativo acórdão da 23ª Câmara de Direito Privado, proferido no Agravo de Instrumento 2005955-85.2017.8.26.0000, valendo transcrever o seguinte trecho:

“(...) Ocorre que o percentual mínimo aplicável de 10% sobre o valor atualizado da causa, implicaria no importe excessivo. Ora, não é crível que a legislação processual pretenda coibir tão-somente a fixação de honorários advocatícios irrisórios (art. 85, § 8º, do CPC/15) e, por outro lado, permita a fixação de valores injustificáveis que impliquem no enriquecimento sem causa do causídico. Desta forma, o montante pretendido pela recorrida destoa dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (art. 8º do CPC/15)”.

Esposando o mesmo entendimento, a 2ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça bandeirante, no julgamento do Apelação 1088694-94.2015.8.26.0100, teve igualmente a oportunidade de admitir margem de adequação na fixação da verba honorária, observado o princípio da razoabilidade, com a seguinte ementa:

“Ação anulatória de sentença arbitral. Honorários advocatícios. Fixação por equidade, nos termos do art. 85, § 8º, do CPC. Admissibilidade. Valor da causa elevado, que ensejaria verba honorária em valor excessivo caso observada a regra do art. 85, § 2º, do CPC”.

Considerando-se as novas regras introduzidas pelo novel Código de Processo Civil acerca dessa matéria, nada obsta, portanto, a que o juiz, ao fixar os honorários de sucumbência em caso de improcedência do pedido, a despeito da letra do parágrafo 6º do artigo 85, o faça de forma justificada, lastreando a sua convicção com base no princípio da razoabilidade, mediante “apreciação equitativa”!

Resulta, pois, irrefutável, que o Superior Tribunal de Justiça sedimentou a tese no sentido de que se faz possível, num contexto de excepcionalidade — traduzida em questão de direito —, adequar a fixação da verba honorária de sucumbência quando se apresenta ela distorcida: irrisória ou exagerada!

 é professor titular e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, além de membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

Revista Consultor Jurídico, 15 de agosto de 2018.