OPINIÃO

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As novas práticas contábeis introduzidas com a Lei 11.638/2007 (regras de convergência ao padrão IFRS) vêm oportunizando ao Fisco tributar o que comumente se denomina de renda ilíquida ou indisponível, ao arrepio do Código Tributário Nacional.

O conceito de tributação de “renda ilíquida” adotado pelo Fisco e defendido pela PGFN, em clara afronta ao CTN, ainda que com aparência de legalidade conferida pela Lei 12.973/2014, decorre de uma generalização do tratamento tributário das referidas novas práticas contábeis. Em muitos casos, tal generalização acaba por confrontar, em essência, outros institutos do Direito Tributário já consagrados.

Um dos melhores exemplos de tal fato está demonstrado nas conclusões da Solução de Consulta Cosit 415/2017 (SC 415), que define que “a pessoa jurídica pode efetivar a transferência de bens aos sócios por meio da devolução de participação no capital social (redução de capital) pelo valor contábil, não gerando, assim, ganho de capital. No entanto, o valor contábil inclui o ganho decorrente de avaliação a valor justo (AVJ) controlado por meio de subconta vinculada ao ativo, e, quando da realização deste, qual seja, transferência dos bens aos sócios, o aumento do valor do ativo, anteriormente excluído da determinação do lucro real e do resultado ajustado, deverá ser adicionado à apuração das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL”.

Em outras palavras, segundo a SC 415, não se pretende tributar a renda decorrente da redução de capital efetuada a valor contábil em si, pois não há geração de ganho de capital, mas, sim, o custo atribuído a esses bens decorrentes do AVJ (em especial o AVJ denominado deemed cost — AVJ de determinados bens do ativo, especificamente do ativo imobilizado, na adoção inicial das novas práticas contábeis) em decorrência da aplicação — obrigatória! — das novas práticas contábeis.

Com base em um argumento sofisticado (pois não se estaria tributando o ganho de capital, mas, sim, a “realização da mais valia do ativo”), está se eliminando o direito de o contribuinte efetuar a redução de capital com a entrega de bens e direitos avaliados a valor contábil sem a incidência de Imposto de Renda (conforme artigo 22 da Lei 9.249/1995), caso ele tenha aplicado de maneira consistente as novas práticas contábeis e tenha reconhecido o denominado AVJ em seus ativos. Considerando-se que o AVJ pode ser equiparado, grosso modo, a uma equalização em dado momento ao valor de mercado, na prática, estar-se ia tributando a devolução de capital como se a mercado fosse, ainda que o contribuinte houvesse optado pela devolução a valor contábil.

O cerne desse caso particular é, como falado, a generalização da aplicação do tratamento tributário das novas regras contábeis sem a cuidadosa observância ao que se denominou neutralidade tributária, um dos pressupostos para adoção das regras de convergência ao padrão contábil internacional. Conforme exposição de motivos da Medida Provisória 449/2008, que inseriu o conceito de neutralidade tributária no ordenamento jurídico, devido à “alta complexidade dos novos métodos e critérios contábeis instituídos” sem “a adequação concomitante da legislação tributária”, a consequente “insegurança jurídica aos contribuintes” seria sanada por um “Regime Tributário de Transição – RTT”, que teria como objetivo “neutralizar os impactos dos novos métodos e critérios contábeis introduzidos pela Lei nº 11.638, de 2007”, até que fosse “editada lei regulando definitivamente os efeitos tributários das mudanças nos critérios contábeis, a qual pretende-se que seja neutra, ou seja, que não afete a carga tributária”.

Ainda que, tecnicamente, a neutralidade tributária prevista na legislação (Lei 11.941/2009 — conversão da MP 449/2008) tenha formalmente operado até a edição da Lei 12.973/2014, certo é que o reconhecimento contábil do AVJ, mais especificamente daquele AVJ comumente denominado deemed cost, deu-se na vigência do RTT. Portanto, tendo o contribuinte efetuado a contabilização do AVJ no momento em que a neutralidade tributária era mandatória, é justificada a sua expectativa de que a aplicação daquele novo critério contábil não afetaria sua base de cálculo tributária, exceto em sua efetiva realização. Grosseiramente, as realizações dos AVJs de ativos— uma despesa — são anuladas fiscalmente pelo oferecimento à tributação daquele idêntico valor, sendo neutralizadas imediatamente — o que não ocorre considerando-se as conclusões da SC 415, na qual tributa-se o valor do AVJ para que se utilize futuramente como custo contábil do bem, para a apuração de eventual ganho de capital em eventual operação futura que sequer sabe-se que irá ocorrer.

Veja-se que, ainda, colocaríamos dois contribuinte efetuando uma mesma operação de redução de capital com a entrega de bens e direitos a valor contábil em situações desiguais, caso um houvesse adequadamente adotado as novas práticas contábeis, e o outro, descumprindo a legislação, não houvesse reconhecido o AVJ devido. Enquanto o contribuinte in compliance é tributado/penalizado, aquele que não observou as novas regras contábeis não apresentará “realização da mais valia” e restará fora do alcance da tributação.

Portanto, a pretensão da tributação da “renda ilíquida” pelo Fisco, além de ser ilegal por contrariar frontalmente o CTN (não há disponibilidade jurídica ou econômica da renda), não observa os pressupostos da neutralidade fiscal utilizados para a implantação das novas práticas contábeis com a segurança jurídica necessária.

André Gomes é tributarista, sócio do escritório Souto Correa.

Revista Consultor Jurídico, 24 de maio de 2018.