OPINIÃO

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A uberização do trabalho vem suscitando debates acerca dos limites entre o trabalho autônomo e aquele caracterizado como relação de emprego. Este artigo investiga se a prestação de serviços de motoristas da Uber configura um dos requisitos da relação de emprego: a subordinação.

As reflexões aqui apresentadas resultam de uma abordagem empírica orientada pela etnografia que inclui a análise da plataforma Uber, redes sociais e um trabalho de campo dirigindo como motorista da Uber entre dezembro de 2021 e março de 2022 na região metropolitana de Salvador. Pretende-se demonstrar como foi identificado o poder empregatício da plataforma digital, em especial o poder diretivo, na imersão realizada enquanto motorista de aplicativo.

Ordens ou sugestões?


O poder diretivo, juntamente com o poder de fiscalização, o poder disciplinar e o poder regulamentar, são atributos inerentes ao poder empregatício, a outra face da subordinação.

Deve ser dito, inicialmente, no entanto, que a emanação de ordens diretas presenciais e verbais não é mais necessária em muitas atividades empresariais, como também chega a ser impossível ou inviável para empregadores que tenham um porte gigantesco, como o da Uber. Ainda que alguns motoristas traduzam estas ordens patronais como sugestões ou incentivos, não se coordena o trabalho de mais de um milhão de motoristas no Brasil apenas com sugestões, pois um serviço coletivo de transporte de passageiros, em um grau tão elevado de complexidade, exige regras rígidas e poder diretivo intenso. As plataformas digitais também podem chamar seus comandos de instruções, solicitações ou dicas, mas dada a posição das partes e os efetivos poderes envolvidos, por certo que se trata de poder diretivo, diante do Princípio da Primazia da Realidade.

O que a atividade empírica evidenciou é que há comandos que implicam um não-fazer e muitos outros que implicam um fazer, mas, como atributo comum, essa expedição de ordens é constante. Podem ser ordens relacionadas ao tempo, ao espaço, relacionadas à principal ferramenta de trabalho (automóvel) ou à própria conduta do trabalhador, ou ainda de cunho discursivo ou comunicacional, voltados ao relacionamento com a plataforma ou com terceiros. Há comandos emitidos diretamente pela Uber, mas há outros comandos que são delegados aos usuários. Algumas ordens devem ser cumpridas durante a jornada de trabalho, mas outras referem-se aos momentos em que os empregados digitais estão desconectados. Finalmente, a hierarquia também pode ser visualizada através da supremacia jurídica da empresa em relação à retenção de valores e exclusividade na distribuição de corridas.

Poder diretivo incidente sobre motoristas de aplicativo

Diferentemente do que se imagina, patrão e empregados se encontram diariamente no uso da plataforma Uber. Esse encontro entre plataforma e motorista se dá cotidianamente — as mensagens e ordens da Uber seguem uma rotina deliberada que está longe de ser aleatória — ainda que seu formato seja virtual.

Esse comando hierárquico de plataformas digitais é inferido de forma contundente, individualizada e sistemática, por exemplo, pela possibilidade de uso de selfies para conferência da identidade dos trabalhadores, ou para obrigatoriedade do uso de EPIs pelos mesmos, ou ainda para confirmação do veículo que está sendo utilizado. Como o trabalho de campo constatou, essas ordens concretas eram renovadas ao menos a cada três dias, como pressuposto para início da jornada de trabalho. Ademais, não se podia embarcar qualquer passageiro, mas apenas aqueles indicados pelas instruções do app.

A submissão dos empregados envolve ainda o fato de que o valor das corridas é transferido, inicialmente, para a plataforma que realiza os descontos de suas taxas e somente em seguida repassa a remuneração aos trabalhadores. Observou-se, também, que bloqueios e travas do aplicativo impedem condutas tidas como "independentes" por parte dos motoristas, como uma eventual cobrança de valores acima daqueles fixados pela Uber.

Este arcabouço de comandos, porém, não são transmitidos através do aplicativo. Na realidade, o aplicativo são as ordens em si mesmas, porque tudo passa e é mediado por ele. O aplicativo seria, assim, um dispositivo técnico que materializa ordem, estímulo, instrução, vigilância e punição ao mesmo tempo. Ou seja, essa subordinação vai muito além da comunicação de uma ordem direta: o bloqueio do aplicativo, a captura da fotografia, o desconto no salário, o bloqueio de passageiros específicos, a trava de uma funcionalidade, são circunstâncias que sequer permitem ao trabalhador a recusa em obedecer.

Uma destas ordens da Uber reflete-se, primordialmente, por exemplo, no comando de parar de trabalhar. A plataforma possui uma trava que impede o trabalho de motoristas por mais de 12 horas no volante. Também possui um bloqueio que paralisa o trabalho em localidades preferenciais dos motoristas, após mais de seis horas diárias nesta região. O trabalho é automaticamente paralisado quando o motorista não informa qual veículo está conduzindo, não quita seu licenciamento ou quando sua carteira de habilitação perde a validade e o app impede também a comunicação com passageiros após as corridas.

A plataforma promove o bloqueio instantâneo de chamadas, quando muitas viagens são recusadas ou quando se fica parado por muito tempo em um só lugar. Em situações como essas, não há espaço para negociação, apresentação de justificativas, ou direito à ampla defesa ou contraditório. Contra determinadas ordens de não-fazer, ao trabalhador somente compete obedecer e calar. O poder patronal de interromper a prestação dos serviços a qualquer momento é uma forte característica do poder diretivo.

Também, a comunicação com os motoristas pelo "Suporte ao Usuário" é impessoal, diante da mediação pelo aplicativo, unilateral, diante da assimetria de poderes, e autoritária, o que é típico de relações hierarquizadas. O controle hierárquico manifesta-se através da comunicação autoritária mediada pelo aplicativo. Há um comando empresarial pelo encaminhamento exclusivo de resolução de problemas através das funcionalidades de Suporte ao Usuário, cujo atendimento é feito por robôs ou por empregados terceirizados.

A cobrança por tarefas é contínua e, mesmo em intervalos de repouso ou períodos em que o motorista está offline, o chamamento ao serviço ocorre de forma insistente. O comando emitido — dirija-se para determinado ponto de embarque de passageiros, por exemplo — se descumprido, pode vir a ser considerado pela plataforma como uma simples sugestão, dadas as peculiaridades do salário por peça e do trabalho externo, típicos deste ofício de motorista de app. Mas, para o trabalhador, nunca deixa de ser uma ordem. A total ausência de reciprocidade nestas relações determina, ainda, o caráter autoritário e hierarquizado de tais declarações de vontade patronais.

A mediação tecnológica, no entanto, não é absoluta. A hierarquia direta e presencial foi evidenciada através dos relatos de existência de encarregados da Uber, responsáveis pelo treinamento de motoristas na fase inicial da implantação da plataforma. Muitos entrevistados alcançaram uma época em que a plataforma capacitava e dirigia o comportamento dos motoristas através de palestras e encontros presenciais na capital baiana. A hierarquia direta e pessoalizada — ainda que virtual — também pôde ser evidenciada na conduta do suposto atendente de telemarketing, que pergunta quando o motorista vai começar a rodar. Como o descadastramento é uma conduta rara, e indesejada pela Uber, somente o comparecimento na sede da empresa permitiu que esse desligamento fosse autorizado.

Por sua vez, a subordinação direta constatada pela etnografia ocorre, da mesma forma, pelas ordens para que o motorista se dirija para determinada localidade, quando ele se encontra ao volante em uma região com pouca demanda, e também ao reverso, quando deve permanecer em uma zona dinâmica de preços. O poder de mando direto se materializa nas missões que são encaminhadas, na indicação de pontos da cidade com melhores corridas, na imposição de taxas mínimas de aceitação para promoções na carreira, e na imposição de um quantitativo mínimo de corridas para início em certas categorias. Nessas hipóteses, os comandos aparecem como verbos no modo imperativo, na tela do aplicativo, como observado.

O conteúdo dos documentos e mensagens da empresa também é claro e seletivo quanto às corridas que devem ser aceitas. Há detalhamento de como deve ser feito um embarque e um desembarque de passageiros.

O comando personalizado é demonstrado, da mesma forma, no desenho de uma rota pré-definida pela empresa no seu mapa digital, mandatório para motoristas inexperientes. Rotas alternativas são proibidas, pois em caso de inobservância, a promoção à categoria superior (VIP) não é permitida, isto sem falar no risco de avaliações negativas dos passageiros que, a longo prazo, implicam em desativação.

Essas diretrizes são fornecidas por mensagens no aplicativo, em vídeos de capacitação e em mensagens diretas, e envolvem, ainda, determinações sobre como tratar passageiros, como higienizar os automóveis (após cada corrida!), como manter o carro limpo, ou como inspecionar o automóvel para identificar objetos perdidos.

Há poder de mando, também, para impedir freadas ou acelerações bruscas ou direção com velocidade incompatível com as leis, bem como para evitar a prática de infrações de trânsito. A Uber determina como se deve trabalhar: o trabalhador deve fazer uso da direção defensiva, com cordialidade para com o consumidor, sempre respeitando regras sanitárias da plataforma.

A partir da concordância do motorista em aceitar a corrida/ordem que lhe é repassada, o poder hierárquico torna-se mais agudo. Em verdade, aceitar ou recusar uma solicitação é uma alternativa exercida no momento anterior ao transporte de passageiros (core business da plataforma) porque após o aceite da corrida/ordem surgem diversas obrigações para o empregado: a) dirigir-se ao ponto de embarque, b) permitir o ingresso do passageiro no veículo, c) conduzir o usuário com segurança ao seu destino; d) autorizar o seu desembarque.

Tudo isso deve ser feito em tempo hábil, simultaneamente com o manuseio obrigatório de funções do aplicativo (apertar botões para aceitar solicitações, iniciar corridas, acessar a rota indicada, finalizar viagens, indicar a forma de pagamento e avaliar o passageiro), e com um atendimento de excelência. Esse pacote de comandos são a razão de ser da Uber, a atividade-fim da empresa.

O tempo e o espaço são objeto do poder de direção da plataforma: há a fixação de prazos temporais máximos para que o motorista se apresente no ponto de origem dos passageiros e aguarde por algum tempo sob pena de cancelamento da corrida (punição financeira). Viagens demasiado longas ou com paradas são objeto de questionamento individualizado pela plataforma sob a aparência de preocupação com a segurança do motorista e passageiro. Há cobranças por parte da Uber diante de comportamentos dissonantes, como períodos offline, em flagrante violação do direito à desconexão profissional. Caso o motorista recuse muitas chamadas, há a imposição de bloqueios temporários tácitos, demonstrando-se mais uma vez que não são meras sugestões.

A relação de obrigações de fazer contempla, ainda, o dever de ler previamente e observar as preferências dos passageiros da categoria Comfort, pois sem isso a viagem não se inicia, isto sem falar na obrigação de ligar o ar-condicionado — mesmo com o incremento do risco de contaminação durante a pandemia de Covid-19 — ou de conversar, ou silenciar, com passageiros que assim estejam dispostos. Não são condutas impostas pelos passageiros, mas sim condutas impostas pela plataforma a pedido de um consumidor final, tendo em vista que usuários não podem punir motoristas diante de atos de indisciplina.

A comunicação com os usuários, no interior da cabine, é extremamente restrita. Há comandos da Uber sobre como se portar diante de passageiros em viagens, com proibição de determinados diálogos e atitudes potencialmente indesejadas. Conforme documentos analisados, o atendimento deve ser respeitoso, educado, com diligência, zelo, competência, profissionalismo e cortesia em padrão elevado. O sistema de avaliações apenas reforça tais ordens patronais.

Segundo o Código da Comunidade Uber, opiniões pessoais "polêmicas" devem ser evitadas, mas a etnografia mostrou que há passageiros que gostam de conversar sobre temas sensíveis, como política ou religião. Motoristas de aplicativo não podem conversar abertamente sobre quaisquer temas, não detendo qualquer autonomia neste aspecto.

Essas ordens podem ser diretas, ou indiretas e verbais por parte de seus prepostos/passageiros durante as viagens, e envolvem o dever de acelerar ou andar mais rápido, conduzir terceiros, alterar o trajeto ou deixá-los em destino diferente do que foi indicado. Diante do sistema de avaliações, não atender a essas ordens é perigoso para a estabilidade no emprego, e pode implicar punições.

A plataforma Uber é um empregador habitual, ainda que não tenha uma face humana evidente. Cada motorista de aplicativo é a Uber em movimento e todo automóvel conectado ao aplicativo é a versão externa da plataforma.

Conclusão

A realização de uma pesquisa etnográfica exercendo a função de motorista de aplicativo, com todos as dificuldades inerentes a esta profissão, foi uma experiência verdadeiramente desafiadora. Quando falo em desafios, estou me referindo aos riscos decorrentes da violência por falta de segurança pública, agravos à saúde, risco de acidentes de trânsito, tensões com taxistas, assunção de prejuízos financeiros, possibilidade de assédios entre motoristas e passageiros, e, finalmente, riscos sanitários decorrentes da Covid-19. Isto sem falar nas dificuldades de adaptação a um trabalho externo e em constante movimento, em um formato totalmente diferente do hábito profissional jurídico de trabalhar por décadas em um ambiente confortável, climatizado e com pouca interação com pessoas.

Essa experiência serviu para evidenciar aspectos da uberização do trabalho que são, por vezes, invisibilizados. Se a subordinação no surgimento do capitalismo industrial esteve vinculada ao confinamento de trabalhadores no tempo e no espaço fabril, deve ser dito que no setor de transportes esse serviço nunca pôde conciliar-se com tal confinamento. Nesse sentido, a atividade de transporte constitui um ambiente propício para a propagação da ideia de uma suposta independência do trabalhador.

No entanto, o presente artigo tentou demonstrar como as técnicas da Uber, típicas do capitalismo de vigilância, fazem uso sistemático da subordinação (SOUZA, 2022) e permitem o enquadramento do trabalho realizado por motoristas de aplicativo como uma relação de emprego.

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Referências bibliográficas
SOUZA, I. F. Na pista com a Uber: uma etnografia. Revista Direito e Práxis, 2022.



Ilan Fonseca de Souza é procurador do Trabalho na Procuradoria Regional do Trabalho da 5ª Região e especialista em Direito Processual Civil.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2023-mar-05/ilan-fonseca-limites-entre-trabalho-autonomo-subordinacao