OPINIÃO

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Entre os desdobramentos da tentativa de golpe contra a democracia, do dia 8 de janeiro de 2023, certamente podemos pressupor a necessidade de mudanças em relação às Forças Armadas brasileiras. Afinal, não é possível que tudo simplesmente continue como está, diante de tantos fatos comprometedores da confiança da sociedade nos militares, como: sua ampla participação no projeto de governo derrotado nas eleições de 2022 e primeiro não reeleito pós-1988, sua conivência com acampamentos declaradamente golpistas em frente a seus quartéis, a atitude protetiva aos terroristas no dia 8/1, seu eloquente silêncio após os atentados contra os três poderes e tantas outras atitudes e omissões de parte de seus membros.

Abre-se, portanto, uma excelente oportunidade para se mudar o que precisa ser mudado em relação às FFAA. No presente artigo, pretendemos tratar de uma dessas possíveis evoluções: a extinção da Justiça Militar da União, algo que, já há tempos, não se sustenta como viável econômica e democraticamente, como veremos adiante.

Os números da Justiça Militar da União


Na Constituição Federal de 1988, a Justiça Militar da União (JMU) está prevista nos artigos 122 a 124, tendo como competência principal julgar os crimes militares, assim definidos em lei (no caso, no Código Penal Militar, Decreto-lei 1.001/69). É composta pelo Superior Tribunal Militar, que conta com 15 ministros, e por 19 auditorias militares, que juntos totalizam 54 magistrados com competência para julgamento dos militares da União. Existem, ainda, Justiças Militares em alguns estados (MG, SP e RS), para julgamento dos seus policiais e bombeiros militares (artigo 125, §3º).

Embora faça parte do Poder Judiciário, desde a Constituição de 1934, a JMU é o órgão jurisdicional com a menor quantidade de processos, a proporcionalmente mais cara e, portanto, a menos eficiente e necessária das instituições judiciais brasileiras.

De acordo com o documento Justiça em Números 2022, do Conselho Nacional de Justiça, a JMU teve uma despesa total de R$ 552 milhões, para custear uma força de trabalho que conta com 54 magistrados, além de servidores e auxiliares. Isso tudo, para julgar apenas 1.128 casos novos e 1.774 casos pendentes, totalizando 3.024 processos, ou seja, foram 56 processos por magistrado. Já o custo por processo foi de R$ 182.600,50 [1].

Comparando com outras instâncias judiciais federais, que possuem a mesma estrutura com duas instâncias judiciais (uma de primeiro grau e outra recursal), vemos o quão discrepante é a realidade da justiça castrense.

A Justiça do Trabalho, por exemplo, teve despesas na ordem de R$ 20 bilhões, para movimentar um total de 8 milhões processos (entre novos e pendentes), com 3.614 magistrados, entre juízes de primeiro e de segundo graus. A relação foi de 2.250 processos por magistrado e o custo por processo de R$ 2.464,52 [2].

A Justiça Federal teve despesa total de R$ 12,3 bilhões, para administrar 14,5 milhões processos, com 1.900 magistrados [3]. Foram, assim, 7.666 processos por magistrado a um custo por processo de R$ 849,25.

A Justiça Eleitoral teve despesa total de R$ 6,3 bilhões, com 344.216 casos, distribuídos entre 2.820 magistrados [4]. Relação de 122 processos por magistrado ao custo de R$ 18.322,59 por processo.

Na tabela abaixo, podemos visualizar melhor essa comparação:

Justiça

Despesas (R$)

Processos

Magistrados

Proc./magis.

Custo por processo

Trabalho

20.038.207.939

8.130.661

3.614

2.250

R$ 2.464,52

Federal

12.369.100.765

14.564.616

1.900

7.666

R$ 849,26

Eleitoral

6.306.929.408

344.216

2.820

122

R$ 18.322,59

Militar União

552.183.924

3.024

54

56

R$ 182.600,50

Percebe-se, assim, que a Justiça Militar da União é o ramo do Judiciário federal com menos processos e menos magistrados, mas, também, com o maior custo por processo: dez vezes mais custosa que a Justiça Eleitoral, 74 vezes mais que a Justiça do Trabalho e 215 vezes mais que a Justiça Federal.

Também é a instância judicial menos produtiva, com menos processos por juiz: duas vezes menos que a Justiça Eleitoral, 40 vezes menos que a do Trabalho e 137 vezes menos que a Federal. Os números da JMU são tão irrisórios, que não chegam a 0,1% do total de processos de todo o Poder Judiciário, sendo computados com 0,0% no relatório do CNJ [5].

Resta, desse modo, demonstrado que a Justiça Militar da União é a mais cara, menos produtiva e, portanto, a menos eficiente dos órgãos do Poder Judiciário da União. Sob o ponto de vista da eficiência (artigo 37, caput, da CF) e da economicidade (artigo 70), trata-se de um conjunto de órgãos públicos cuja existência não se sustenta e que, por isso, devem ser integralmente extintos.

O custo democrático da Justiça Militar


Para além do custo financeiro acima apontado, a existência da Justiça Militar e sua competência para julgar os integrantes das Forças Armadas pelos crimes militares que venham a cometer, especialmente em tempo de paz (artigo 9º do CPM), possuem também um custo democrático.

É que em um Estado Democrático de Direito, como é o caso brasileiro, desde a Constituição de 1988, as Forças Armadas submetem-se, integralmente, ao poder civil. Tanto é assim, que a própria Carta Magna, prevê, em seu artigo 142, caput, que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica estão "sob a autoridade suprema do Presidente da República". O mesmo dispositivo constitucional também ressalta que as FFAA "destinam-se à [...] garantia dos poderes constitucionais" e que por iniciativa de qualquer dos poderes civis (e apenas assim), podem, excepcionalmente, ser incumbidos de garantir a lei e a ordem. Por fim, os §§1º e 3º do artigo 142 deixam claro que os militares se submetem ao império das leis elaboradas pelos poderes constituídos civis, para definição "das normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas", sem prejuízo de outras imposições legais.

Desse contexto de clara e absoluta submissão dos militares aos Poderes Legislativo e Executivo, de natureza civis, decorre a conclusão de que, para a mais completa adequação de seu funcionamento ao regime democrático, também devam submeter-se ao Poder Judiciário civil, inclusive quando eventualmente praticarem crimes, de qualquer natureza, comuns ou militares. Afinal, não existe justificativa sensata para que o controle civil sobre atividade militar seja mitigado ou não plenamente exercido por aquele que é o detentor de todo o poder: o povo (artigo 1º, parágrafo único, da CF); e pelas instituições democráticas que representam constitucionalmente esse poder, na clássica forma tripartida (artigo 2º).

É verdade que alguns tentam explicar a necessidade da JM com a peculiaridade de estar toda a atividade militar baseada nos princípios da hierarquia e disciplina [6]. Se é verdade que tais princípios são realmente inerentes à caserna, com previsão constitucional, inclusive (artigo 142), também é verdade que não são valores privativos das Forças Armadas [7]. Afinal, diversas outras instituições, de natureza pública e privada, também se baseiam na hierarquia e na disciplina para o seu funcionamento, a exemplo da administração pública de maneira geral [8], das empresas [9], das escolas [10], das igrejas e até mesmo das famílias [11]; ou alguém conhece algum órgão público ou empresa privada em que não haja relação de subordinação e chefia (hierarquia) ou de ordem e punição por desrespeito às regras (disciplina)?

Por outro lado, ainda que se considere a hierarquia e a disciplina militares algo diferenciado desses mesmos valores na sociedade civil, o que haveria de tão peculiar naquelas que não permitiriam seu conhecimento, estudo e julgamento por juízes da Justiça Comum? Trata-se de uma ciência tão complexa ou de valores tão sobre-humanos que um juiz submetido a um dificílimo concurso público de provas e títulos não conseguiria alcançar? Não nos parece que a resposta a esses questionamentos possa ser positiva.

Poder-se-ia tentar argumentar que um juiz civil não teria a "vivência" da caserna para entender a aplicação prática dos princípios da hierarquia e da disciplina no seio militar [12]. Ora, esse é um argumento fragilíssimo, já que, a rigor, os juízes não possuem experiência prática na maioria esmagadora dos fatos submetidos a julgamento e nem por isso questiona-se a sua capacidade e competência para tal mister. A prevalecer o entendimento da necessidade de "conhecer e viver a realidade militar", para julgar os crimes militares, teríamos também que exigir dos juízes das varas de Família que, ao menos, tivessem filhos; ou dos juízes trabalhistas que tivessem alguma relação empregatícia prévia ou atual; ou que os juízes criminais tivessem alguma experiência policial ou mesmo criminosa para entender de Direito Penal. O absurdo do argumento revela-se, portanto, patente.

Ademais e para sepultar de vez a tese de que somente juízes com experiência militar estariam aptos a entender os reais valores da hierarquia e da disciplina militares — e que, portanto, juízes civis não o conseguiriam — é importante destacar que toda a parte jurídica administrativa e civil militar já é de competência da Justiça Comum. Por que somente os atos criminosos praticados por militares teriam, então, tratamento diferente?

Aliás, também é importante frisar que, mesmo no âmbito criminal, tivemos alterações legislativas significativas (algumas recentes, outras quase vintenárias), que retiraram do Conselho de Justiça (formado por 1 juiz de direito e quatro juízes militares, cf. artigo 16, I e II, da Lei 8.457/92) a competência para julgar alguns crimes militares, atribuindo ao juiz togado (civil) o processo e julgamento, de forma singular, desse tipo especial de infração penal.

A Emenda Constitucional nº 45/04, por exemplo, incluiu, no artigo 125 da CF, o §5º, para prever, na Justiça Militar dos estados, a possibilidade de julgamento monocrático, pelo juiz de direito do juízo militar dos "crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares". Já no âmbito da Justiça Militar da União, com a inclusão do inciso I-B ao artigo 30 da Lei nº 8.457/1992 (pela Lei nº 13.774/2018), passou a competir ao juiz togado da JMU processar e julgar, de forma singular, o militar federal (praça ou oficial) autor de crime militar, desde que no mesmo processo figure também como acusado um civil.

Tais alterações permanecem vigente já há anos, sem notícia de arguição de sua inconstitucionalidade ou de demonstração de retrocesso no funcionamento das justiças militares dos estados ou da União. Essa é, portanto, mais uma evidência de que juízes civis possuem plena capacidade para julgar crimes militares e seus autores, sejam eles quem for.

Nada mais justo e coerente, portanto, com o regime democrático e com os princípios da Constituição que os militares se submetam, ao menos em tempos de paz, não apenas aos Poderes Executivo e Legislativo, mas, também, ao Poder Judiciário civil; neste caso, para processá-los e julgá-los por todos os crimes que possam vir a cometer, sejam esses de natureza militar ou comum, tal como ocorre com os demais servidores públicos e cidadãos deste país.

Justiça Comum como solução


A solução que nos parece adequada — no mesmo sentido de retirada de alguns casos da competência do Conselho de Justiça para um juiz togado e civil, pela EC 45/04 e pela Lei 13.774/2018 — é o deslocamento completo da competência para processar e julgar os crimes militares da União, todos ou ao menos os praticados em tempo de paz, para a Justiça Comum Federal.

Como vimos acima, a Justiça Federal é o ramo do Poder Judiciário da União que possui o menor custo por processo (R$ 849,26) e, portanto, a que atua de forma mais eficiente, além de já possuir vasta e longeva experiência com processos criminais. Em que pese seja a que já possui a maior quantidade de processos por magistrado (7.666), é certo que o acréscimo de míseros 56 processos por ano nesse acervo não faria muita diferença, além do que a remoção dos atuais juízes togados da JMU para a JF configuraria um excelente reforço de mão-de-obra para a redistribuição e diminuição do atual e elevado quantitativo de processos por juiz federal.

Nesse sentido, duas proposições legislativas seriam cabíveis: uma proposta de emenda constitucional que revogue os artigos 122 a 124 da Constituição Federal (ou que os modifique para prever a manutenção da Justiça Militar da União apenas para julgamento de crimes militares praticados em tempo de guerra) e que altere o artigo 109, IV, para nele incluir os crimes militares praticados em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, mantida apenas a ressalva quanto à Justiça Eleitoral. Quanto aos crimes praticados por militares contra pessoas e instituições civis, não vinculadas, direta ou indiretamente, à administração pública federal, estes restariam a cargo das justiça estaduais, em sua competência residual (artigo 125).

Por fim, seria necessário revogar integralmente o Código de Processo Penal Militar (Decreto-lei 1.002/69), para, em seu lugar, aplicar o CPP comum (Decreto-lei 3.689/41), com o procedimento especial para os crimes de responsabilidade dos funcionários públicos (artigos 513 a 518). No CPP, seria, ainda, necessário revogar o inciso III do artigo 1º e recomendável alterar o seu parágrafo único para nele, expressamente, prever que as disposições desse código também se aplicam aos crimes militares (ou, ao menos, a esses, quando cometidos em tempo de paz). Uma alternativa seria manter o CPPM apenas para crimes militares praticados em tempo de guerra, com a manutenção em vigor apenas do seu Livro V (artigos 675 a 710).

Com essas singelas, porém significativas e históricas alterações, poderíamos avançar sobremaneira na democratização da responsabilização penal dos integrantes das Forças Armadas (e quiçá dos militares dos estados), rumo à maior proteção dos direitos humanos e ao pleno exercício do poder soberano da população civil e do controle pelas instituições civis e pelos três poderes da República sobre toda atividade militar. Também, como forma de garantir que não apenas os crimes do dia 8/1 sejam devidamente julgados e punidos, mas que todo crime praticado por militar seja julgado de forma soberana pelo poder civil ao qual se submetem de forma absoluta.

Parafraseando o promotor argentino Julio Strassera, em suas memoráveis alegações finais, em 24/3/1985, no processo que tratou dos crimes praticados pelos militares de seu país, durante a ditadura militar: "Esta es nuestra oportunidad y quizá sea la última".


[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2022. Brasília: 2022, p. 79 e 108. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf. Acesso em: 23 de janeiro de 2023m, p. 108.

[2] Idem, p. 60, 63 e 108.

[3] Idem, p. 64, 67 e 108.

[4] Idem, p. 68, 71 e 108.

[5] Idem, p. 108.

[6] MARTINS, Eliezer Pereira. Direito administrativo disciplinar militar e sua processualidade. São Paulo: Editora de Direito Ltda, 1996, p. 24.

[7] LOUREIRO, Ythalo Frota. Princípios da hierarquia e da disciplina aplicados às instituições militares:: uma abordagem hermenêutica. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 470, 20 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5867. Acesso em: 25 jan. 2023.

[8] São exemplos disso, os arts. 20, inc. II, e 116 da Lei 8.112/90.

[9] Na CLT, os arts. 482, h, e 483, b.

[10] Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96), o art. 27, inc. I.

[11] No Código Civil, os arts. 1.630 e 1.634, IX (incluído pela Lei nº 13.058, de 2014).

[12] ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira. A importância das Justiças Militares para o Estado Democrático de Direito. Revista do Ministério Público Militar, Brasília, ano 39, n. 24, p. 359-371, 2014. Disponível em: https://revista.mpm.mp.br/artigo/parte-especial-a-importancia-das-justicas-militares-para-o-estado-democratico-de-direito/. Acesso em: 25 de janeiro de 2023.



 é mestre em Direito Processual e graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo, defensor público federal e membro e coordenador da Câmara de Coordenação e Revisão Criminal da Defensoria Pública da União.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2023-fev-02/nicolas-bortolon-justica-militar-extinta