A definição de autogerenciamento subordinado contrapõe à noção de empreendedorismo, embasando também a tese de que elementos tipicamente periféricos estão se generalizando pelas relações de trabalho.

Ludmila Costhek Abílio

  1. Dando a partida

Marília é médica. Atualmente, trabalha para alguns dos melhores hospitais privados da cidade de São Paulo e quiçá do país. Na linha de frente da pandemia, trabalha 7 dias por semana, 16 horas por dia. Há anos, as longas jornadas sem dia de descanso são o normal para ela. No último ano, lembra-se de ter tirado 5 dias de folga. Distante das plataformas digitais e dos trabalhadores da base da pirâmide social brasileira, ela pode ser definida como uma trabalhadora uberizada? A trabalhadora tem a condição de prestadora de serviços – podendo também ser tomada como um exemplo claro da chamada “PJotização do trabalho”. O enfoque que nos possibilita reconhecer nessa relação a uberização mira nas formas de controle e gerenciamento, que ora concorrem ora se apropriam de outras formas de terceirização do trabalho. De saída, não se trata da superação de um modelo por outro, mas da eficaz combinação de diversos elementos que potencializam as formas contemporâneas de exploração do trabalho. Neste caso, o hospital é o provedor da infraestrutura; assim como um motorista da Uber, a trabalhadora pode até entrar com instrumentos de trabalho nessa relação, mas os meios que irão determinar a execução, a precificação e a distribuição do trabalho são da empresa. A força da marca confere confiabilidade ao trabalho da médica, assim como do motorista. A empresa-hospital recruta e subordina de forma centralizada o exército de profissionais “pejotizados” de alta qualificação que se tornam trabalhadores sob demanda. Estes vivem subordinados às determinações do hospital, ao mesmo tempo em que intensificam o próprio trabalho, engajam-se na extensão de sua própria jornada, estabelecem estratégias cotidianas para burlar seu próprio adoecimento e exaustão e outros obstáculos que coloquem em jogo um trabalho que já não tem a forma emprego. Esta perda de forma atinge diversos profissionais e ramos da saúde, e corre junto com os processos de oligopolização deste setor, financeirização do direito à saúde, privatizações e mudanças nas formas de organização do setor público. Aqui é apenas apresentada de forma incipiente a referência a estes processos com profissionais da saúde, mas eles nos ajudam a ampliar e aprofundar a definição de uberização. Está em jogo a centralização do controle – que conta com meios sociotécnicos que possibilitam uma administração altamente eficaz do uso da força de trabalho no tempo e espaço –, uma centralização que tem de ser compreendida na sua relação com a perda de formas estáveis, reguladas, reconhecíveis, das determinações que operam sobre distribuição, tempo de trabalho e remuneração, entre outros elementos. Riscos e custos são transferidos aos trabalhadores, assim como parte do gerenciamento do trabalho, o qual segue subordinado. Assim, as regras que regem o processo de trabalho se informalizam, ao mesmo tempo em que são constantemente operantes e centralizadas.

Desta forma, a uberização nomeia a síntese de uma série de processos em curso há décadas. Aqui é compreendida como uma nova forma de controle, gerenciamento e organização do trabalho. Comumente associada ao trabalho subordinado por meio de plataformas digitais, refere-se, entretanto, a um sentido mais amplo e complexo. Trata-se de uma tendência que hoje permeia globalmente o mundo do trabalho, que envolve dois aspectos centrais: a consolidação dos trabalhadores como trabalhadores sob demanda (Abílio, 2017 e 2020a) e processos de informalização (Abílio, 2020a), que abarcam não apenas a informalidade, mas também a perda de formas estáveis e reconhecíveis dos meios de controle e gerenciamento do trabalho.

Estes processos de informalização não são simples de definir: envolvem novas regulações do trabalho que promovem a despadronização da jornada de trabalho (Gibb, 2017; Krein et al., 2021); os novos arranjos produtivos possibilitados pelas tecnologias da informação e mais recentemente pelo desenvolvimento da inteligência e artificial e o gerenciamento algorítmico; a mobilidade do capital e a financeirização; a eliminação e redefinição dos direitos do trabalho e dos direitos sociais. A perda de formas estáveis, fixáveis, refere-se a diversos aspectos: envolve centralmente a crescente dificuldade em mapear e discernir quais são os custos do trabalho – e quem arca com eles; o que é e não é tempo de trabalho; o que é e não é trabalho pago e não pago; o que são meios de produção e instrumentos de trabalho e, de forma ainda mais complexa, qual o papel e participação do trabalho nas formas contemporâneas da acumulação capitalista. Nestas indistinções e nebulosidades, podemos, entretanto, reconhecer meios bem sucedidos de transferência de riscos e custos para os trabalhadores, assim como um elemento central que dá mais um nó no reconhecimento da exploração e dominação do trabalho: a transferência de parte do gerenciamento do trabalho para o próprio trabalhador, aqui definido como autogerenciamento subordinado (Abílio, 2019).

O autogerenciamento subordinado está no cerne do que convencionamos chamar de flexibilização do trabalho. Sua face mais visível e hoje amplificada na pandemia é o home office. Eliminam-se definições estáveis e reguladas sobre o local de trabalho, os custos do trabalho, o tempo de trabalho. Trabalhando por metas, prazos, produtos, trabalhadores arcam com custos – alguns incontabilizáveis –, tornam-se gerentes de sua própria jornada e execução do trabalho. Entretanto, gerentes subordinados. A definição de autogerenciamento se refere à internalização do controle pelo trabalhador, não como apropriação do mesmo, mas exercício de sua própria subordinação. Contraditoriamente, suas decisões cotidianas sobre o trabalho integram os meios de controle e gestão que operam sobre ele.  A compreensão do Toyotismo em sentido amplo (Antunes, 2019), da flexibilização do trabalho por meio de novos modelos disciplinares que irão incorporar de forma produtiva e controlada as críticas aos elementos da dominação fordista (Boltanski e Chiapello, 2009), já trazem há algumas décadas a questão dos modos de subjetivação e controle que contam então com a internalização do gerenciamento – subordinado –, não como subversão, mas parte dos modos contemporâneos de dominação e exploração do trabalho.

É neste árido cenário que enfrentamos o enigma de como é possível empresas controlarem centralizadamente enormes contingentes de trabalhadores informais, garantindo o uso racionalizado e eficiente de uma força de trabalho que não é contratada, nem mesmo formalmente selecionada; não é formalmente estabelecida qualquer prescrição sobre a jornada de trabalho, o uso dos instrumentos de trabalho, nem mesmo sobre os seus modos de execução. Neste sentido, o trabalho subordinado por meio de plataformas digitais vem ganhando visibilidade mundial, talvez por dar materialidade a estes processos de informalização e por crescer em velocidade acelerada, ainda que tendo pequena participação nas economias dos países do Norte (Huws et al., 2017) e do Sul. Olhar para entregadores por aplicativo e motoristas da Uber possibilita de alguma forma ver esse enigma em ato e compreender que os elementos que regem a vida destes trabalhadores estão se generalizando pelas relações de trabalho.

A noção de autogerenciamento subordinado (Abílio, 2019) – foco central deste artigo – nos desafia em vários sentidos. Primeiramente, demandam-nos um enfrentamento crítico sobre o forjamento de uma subjetividade neoliberal (Laval e Dardot, 2016): não se trata de disputa conceitual, mas de um exercício que coloque menos fichas no empreendedorismo de si e mais nas formas contemporâneas de gerenciamento e controle do trabalho. Envolve, portanto, uma tentativa de escapar em alguma medida da produção discursiva – que envolve políticas públicas, regulações do trabalho, produções teóricas a esquerda e direita – em torno de um trabalhador que agora supostamente se reconhece e age como empresário de si próprio, movido por uma racionalidade concorrencial em diversas esferas da vida. A noção do empreendedorismo de si hoje obscurece elementos que estruturam o mundo do trabalho, podendo deslizar para abordagens no mínimo complicadas feitas na relação da produção de conhecimento acadêmico com a experiência dos trabalhadores, que podem atribuir ao trabalhador de forma simplista uma falsa consciência sobre sua própria condição, deslocando perigosamente a compreensão do autogerenciamento para a do autoengano.

Isso nos leva a um segundo desafio, forjado em solos periféricos. O autogerenciamento subordinado, como se desenvolverá ao longo do texto, é elemento historicamente estruturante do mundo do trabalho na periferia e corre junto com a formação de um mercado de trabalho de nascença flexível, constituído por desigualdades abissais e pela não generalização da categoria emprego. O que parece estar em jogo são meios de monopolização e centralização dessa subordinação e da administração de modos de vida. Entretanto, as dualidades formal-informal, centro-margem, modernização-atraso, produtivo-improdutivo, proletariado-subproletariado – elementos guias persistentes no pensamento social brasileiro – contribuem para o obscurecimento da centralidade produtiva do autogerenciamento no tecido dos modos de vida periféricos e do mundo do trabalho brasileiro.  Neste sentido, trata-se de considerar a gestão de si quando nada ou  muito pouco está garantido não como característica da exceção ou margem, mas elemento central da reprodução social e da acumulação na periferia.

Desta forma, defende-se aqui um olhar construído a partir da periferia para a compreensão das transformações contemporâneas do trabalho, que envolvem a eliminação de redes de proteção social, deslocamentos dos parâmetros de justiça que atravessam a categoria emprego e correm junto com a transferência integral para o trabalhador da gestão de sua própria sobrevivência. O que se defende aqui então é que, a despeito de sua atualidade, esta transferência historicamente nunca foi exceção ou margem na tessitura do trabalho na periferia (Leeds, 1977; Oliveira, 2003). A uberização do trabalho evidencia a normalização – ou melhor seria banalização? – dessa gestão, como elemento que agora integra o gerenciamento do trabalho de forma racionalizada, mas pouco localizável. Trata-se, então, de um duplo movimento: por um lado, a apropriação racionalizada e centralizada da gestão de modos de vida periféricos; por outro, elementos tipicamente periféricos parecem se espraiar pelas relações de trabalho.

Por essa perspectiva, estratégias cotidianas, saberes e competências – facilmente invisibilizados – que compõem o viver instável e sem garantias que envolvem um engajamento de si permanente residem no cerne de formas contemporâneas de gerenciamento do trabalho. Quando olhamos para as plataformas digitais e o gerenciamento algorítmico, vemos que chegaram ao ponto de serem datificadas (Couldry e Mejias, 2019; Zuboff, 2018) e incorporadas como elementos racionalizados – e automatizáveis – da gestão.

  • Trabalhador just-in-time, processo de informalização e despotismo algorítmico

A redução do trabalhador a trabalhador sob demanda é elemento central da uberização. Pode ser compreendida por meio da reconfiguração da questão social (Castel, 1998), cada vez mais moldada pelo dueto empregabilidade-descartabilidade social, talvez sintetizado no “não há alternativa” de Margareth Thatcher (Harvey, 2008). A responsabilização pela reprodução social hoje parece passível de ser inteiramente transferida para o próprio trabalhador, então representado como um empreendedor de si próprio. Mantem-se então a subordinação e o uso do trabalhador como força de trabalho, mas Estado e Capital não comparecem quando se trata de garantir sua reprodução social. Esta reconfiguração tem de ser compreendida junto aos processos de centralização do capital e a financeirização, que correm junto com as desigualdades abissais que hoje nos organizam socialmente.

Ser um trabalhador sob demanda é ver final e perversamente resolvida a contradição – que move o conflito entre capital e trabalho – entre ser humano e força de trabalho. Trata-se do esfacelamento dos limites historicamente conquistados sobre o uso da força de trabalho, que, como bem sabemos, correm junto com a constituição de proteções e direitos do trabalho. A duração da jornada, a intensidade e a ergonomia do trabalho envolvem ao mesmo tempo as disputas sobre o uso eficiente e racionalizado da força produtiva social do trabalho (Marx, 1982) e também sobre os parâmetros mínimos em torno das definições de dignidade e humanidade. Estas determinações conflituosas se referem a definições socialmente estabelecidas, em constante movimento sobre o lazer, os direitos sociais, o envelhecimento, a família, habitação, alimentação, dentre outros elementos. A consolidação do trabalhador just-in-time significa que este é passível de ser socialmente reconhecido como pura força de trabalho, tornando-se inteira e solitariamente responsável pela gestão de sua própria sobrevivência. Estar disponível, mas não ter qualquer garantia sobre o valor de um dia de trabalho; ver banalizada uma jornada de 12 horas por dia, 6 a 7 dias por semana – sem que isto nem mesmo signifique uma remuneração correspondente a um salário mínimo (Aliança bike, 2019); arcar com os poros do trabalho, que agora são vividos como tempo de trabalho não pago. Todos esses são elementos cotidianos da vida do trabalhador sob demanda.

O trabalho sob demanda pressiona hoje o mundo do trabalho como presente ou como tendencialmente um futuro próximo para grande parte dos trabalhadores. Já corre por dentro do trabalho formal (Krein et al., 2018), como na instauração do trabalho intermitente, a qual subverte a definição do emprego, retirando do trabalhador qualquer garantia sobre sua reprodução social. Trata-se, portanto, de ser utilizado como um fator de produção, ao mesmo tempo em que as garantias e freios sobre esse uso vão se esfumaçando.

As fronteiras entre o que é ou não tempo de trabalho, entre o que é trabalho remunerado e o que não é, tornam-se fracamente operantes ou reconhecíveis. Estar disponível ao trabalho, mas só ser remunerado no tempo efetivo de produção[1]. A busca pela delimitação do tempo efetivo de produção opera em realidade a transferência dos poros do trabalho para o trabalhador. A reforma trabalhista já alcançou a façanha de realiza-la em diversas minúcias por dentro da categoria de trabalho formal. Vide a possibilidade de não considerar como tempo de trabalho o tempo de deslocamento da entrada do estabelecimento até o posto de trabalho, as horas itinere, ou mesmo o tempo da troca de uniforme (Krein et al. 2021).

Este modo just-in-time envolve a informalização dos meios de gerenciamento do trabalho. Assim, deparamo-nos com a multidão de centenas de milhares de trabalhadores – como a dos chamados entregadores – subordinada a algumas poucas empresas. Eles estão disponíveis ao trabalho; entretanto, não possuem qualquer garantia sobre a distribuição, valor e remuneração. Arcam com riscos e custos, estabelecem metas cotidianas que garantem sua sobrevivência, entretanto, dependem inteiramente da determinação das empresas sobre a distribuição do trabalho, a qual é feita por meio de regras obscuras e cambiantes, que não têm formas estáveis ou fixáveis (Abílio, 2017; 2020b). A volatilidade e onipresença ferrenha das regras reside no cerne da vida do trabalhador uberizado, que estabelece assim estratégias cotidianas numa relação com determinações que não são passíveis de ser desvendadas, cuja única clareza é que nada está garantido.

Esta consolidação envolve meios técnico-políticos que possibilitam a informalização dos meios do controle e, ao mesmo tempo, o uso eficiente e racionalizado da força de trabalho. O gerenciamento algorítmico (Rosenblat, 2018; Rosenblat e Stark, 2016; Abílio, 2020b) hoje catalisa e materializa esta possibilidade de controlar de forma dispersa e centralizada centenas de milhares de trabalhadores como trabalhadores sob demanda, mapeados e administrados individual e coletivamente. Critérios humanamente definidos – mas dificilmente reconhecíveis e localizáveis – vão tecendo as regras do jogo, por meios técnicos que hoje provêm a possibilidade de combinar uma enorme gama de variáveis, uma combinação inteiramente voltada ao uso mais racional e menos custoso da força de trabalho. Inserido numa relação que podemos considerar despótica, no caso um tipo de despotismo algorítmico (Abílio, 2020a e 2020b), autogerentes subordinados como os entregadores por aplicativo traçam suas estratégias cotidianas enfrentando critérios de ranqueamento e avaliação inacessíveis, bloqueios e desligamentos sumários, variações no valor da sua hora de trabalho, bonificações que nunca estão realmente garantidas. Já as empresas se apresentam como empresas de tecnologia, supostamente responsáveis por prover meios técnicos e neutros para o melhor encontro entre oferta e procura. Na realidade, subordinam de forma despótica não apenas trabalhadores, mas outras empresas, como vêm fazendo as empresas-aplicativo de entrega de comida com restaurantes e outros estabelecimentos (Madureira, 2020).

Mas a própria relação despótica se informaliza. Não é simples categoriza-la, na medida em que as regras são operantes, mas obscuras e em movimento. Em realidade, é a falta de formas que a sustenta enquanto uma relação despótica. O “bloqueio branco” (ver Bapitestella, 2021), por exemplo, define as regras do jogo, ao mesmo tempo em que não tem formas estáveis ou fixáveis. Entregadores decifram na sua experiência cotidiana – e não por meio de contratos ou acordos de qualquer tipo –, que, se recusarem corridas, são penalizados pela empresa, em uma espécie de bloqueio informal. Ficam sem receber novas corridas por um período que também não está claro, mas que incide diretamente nos seus ganhos e na extensão de sua jornada de trabalho.

A informalização também opera na aparente contradição de que o despotismo se exerce numa íntima relação com o que aparece como autonomia do trabalhador – comumente apresentado como “empreendedor de si”, “chefe de si”; como propagandeia a Uber: “seja seu próprio chefe”. Na versão das empresas, o sonho da autonomia do trabalhador pareceria ter sido finalmente alcançado: trabalhe como quiser, quando quiser, do jeito que você quiser. Em realidade, quanto menos definições pré-estabelecidas/acordadas sobre jornada, valor, intensidade do trabalho, mais se firma o poder de utilizar o trabalhador como pura força de trabalho – sob demanda. Longe de ser um exercício de liberdade, a aparente autonomia de fato se realiza por meio de decisões do próprio trabalhador, que, no entanto, estão subordinadas às regras sobre as quais individualmente ele não tem qualquer poder de determinação. Trata-se da administração de si subordinada, inteiramente voltada para a garantia de sua própria reprodução social.

No caso dos entregadores por aplicativo, se as empresas definem como o trabalho é distribuído e com qual valor, resta ao trabalhador gerenciar a extensão do tempo de trabalho e criar estratégias para intensificar o próprio trabalho. Mas se trata de um gerenciamento subordinado, dado que a duração da jornada é definida pelo valor mínimo que garanta sua reprodução social – e depende inteiramente das determinações da empresa; já suas estratégias se desenvolvem em um terreno arenoso entre vigilância e controle, em que decisões são permanentemente mapeadas e incorporadas como elementos da gestão.

  1. Trajeto: Informal, formal, terceirizado, uberizado, virador

A uberização vem suscitando diferentes perspectivas que refletem diferentes compreensões sobre a estruturação do mercado de trabalho brasileiro. Aqui enfrentamos algumas questões, a primeira já apresentada: 1) A uberização é facilmente tomada como sinônimo de plataformização do trabalho. Ainda que tomemos as plataformas digitais em um sentido forte, tal qual apresentado por Van Dijck e Poell (2018) – a plataforma não como simples meio técnico, mas como infraestrutura digital –, a perspectiva defendida aqui toma o trabalho subordinado por meio de plataformas digitais como uma das expressões mais visíveis da uberização. Entretanto, esta precede as plataformas e as ultrapassa. Tomamos como elementos centrais a condição generalizada do trabalhador just-in-time e processos de informalização (Abílio, 2020a) não só do trabalho, mas dos meios de controle e gerenciamento, como seus elementos centrais. 2) A uberização é também facilmente tomada como sinônimo de uma nova gestão do desemprego, ou da generalização do “viver de bicos” (como expressa a importação do termo gig economy). A uberização operaria assim a oferta de ocupação transitória e renda para uma multidão de trabalhadores que se tornaram descartáveis. Isso nos desliza facilmente para as categorias dualistas produtivos-improdutivos, integráveis-descartáveis e até mesmo formal-informal. A tese aqui apresentada vai no sentido contrário e busca romper com essas dualidades. Tomar a uberização como uma “nova forma de gerenciamento, controle e organização do trabalho” (Abílio, 2017) envolve a compreensão de que a informalidade nunca foi exceção, mas hoje se firma como regra e horizonte para as relações de trabalho; significa pensar em como a categoria emprego está se reconfigurando e que a uberização não corre em paralelo ao emprego formal, mas o perpassa e o modifica. Em um sentido mais amplo, significa pensar que a subsunção do trabalho na contemporaneidade opera novos tipos de controle centralizados que correm junto com a dispersão e perda de formas estáveis do trabalho, elementos que potencializam a transferência de riscos e custos para os trabalhadores, além de serem bem sucedidos em usá-los como força de trabalho disponível e utilizável de acordo com as determinações de empresas. As mediações regulatórias e minimamente protetivas do trabalho vão se desfazendo. Neste sentido, olhar para motoristas e entregadores por aplicativo é enxergar os elementos centrais que tendencialmente desenham o horizonte do trabalho.

Podemos ainda dar um passo a mais e definir a uberização como “subsunção real da viração” (Abílio, 2017). Trata-se de escapar do par formal-informal para jogar luz nos modos de vida que tecem a periferia e sua estruturação do mercado de trabalho. A viração, necessário destacar, é aqui compreendida não como sinônimo de bicos, de trabalhos temporários. Trata-se do movimento permanentemente invisibilizado e pouco conhecido por relações de trabalho que, na vida dos trabalhadores, não têm fronteiras tão claras quanto as categorias de análise buscam expressar. A trajetória dos trabalhadores e trabalhadoras periféricos não conta com uma linearidade na formação de uma identidade profissional. Não conta com estabilidade, seja dentro ou fora do emprego formal. Os arranjos cotidianos podem ser compreendidos como estratégias de sobrevivência que são tipos informalizados de enfrentamento das injustiças, desigualdades, inseguranças e precariedade; o outro lado desse enfrentamento é a criação e aproveitamento de oportunidades efêmeras e passageiras, que envolvem diferentes sociabilidades e redes de relações sociais. A viração organiza o mundo do trabalho de forma dispersa e permanente. Francisco de Oliveira, nos anos 1970, trouxe esses modos de vida para o cerne da compreensão do subdesenvolvimento. O trabalho informal ganhava então um sentido diverso do das teorias da marginalidade, sendo tomado como veículo da transferência de custos para os próprios trabalhadores na formação e reprodução social da classe trabalhadora urbanizada e industrializada. O que o autor denomina de “talento organizatório de milhares de pseudo-pequenos proprietários o (Oliveira, 2003: 68) poderíamos também denominar autogerenciamento subordinado. Sua atual versão obscurecida é a do empreendedorismo de si. A noção de subsunção real da viração precisa ainda ser mais bem aprofundada, mas ela nomeia um novo tipo de apropriação deste autogerenciamento. De forma centralizada e racionalizada, as estratégias de sobrevivência se tornam elementos da gestão, administradas por meios difíceis de decifrar. Em outras palavras, agora são datificadas e gerenciadas, como mais um pontinho do desenho da distribuição controlada e rebaixada de trabalhadores no tempo e no espaço. A apropriação monopolizada de modos de vida periféricos pode ser vista em ato nas estratégias do jovem negro que, dentre outras atividades que compõem sua entrada no mercado de trabalho, aluga uma bicicleta para ter um rendimento como bike boy; passa o dia traçando meios para não ter que enfrentar a brutalidade policial, a brutalidade do tráfego urbano, as violências raciais cotidianas; estabelece meios para intensificar seu próprio trabalho, dispõe-se a trabalhar 12 horas ininterruptas para ganhar uma bonificação (Machado, 2019) e integra a distribuição do setor de alimentos – por ora, sua atividade provavelmente será incorporada a outros setores, de acordo com as mudanças em disputa nas regulações do transporte de bens e mercadorias por bicicleta (ver Abílio, 2020a).

Olhar para os modos de vida também nos possibilita ver na viração um caminho para a compreensão de modos de subjetivação periféricos. Essa perspectiva nos ajuda a enfrentar dilemas em torno do trabalho formal, assim como nos arma contra a produção discursiva sobre o empreendedorismo de si. Um dos elementos talvez mais complicados da análise da uberização é a compreensão do engajamento e adesão dos trabalhadores. Questão que fica evidente, por exemplo, no #brequedosapps, quando o pedido pelo reconhecimento do vínculo de emprego passou longe de ser a tônica da pauta das mobilizações. A organização horizontalizada dos entregadores possibilita diferentes narrativas e disputas que envolvem a participação dos sindicatos, o surgimento de uma liderança pós-mobilização e de – ainda? – pequena base social, como a de Paulo Galo, além de dezenas de projetos de lei que são apresentados como se resultassem das questões suscitadas pelas mobilizações. Mas a pauta comum que organiza o movimento nacionalmente gira em torno de condições mais justas, formuladas dentro e não fora dos termos de uma relação de trabalho uberizada. Fim dos bloqueios indevidos, fim dos sistemas de pontuação e melhores taxas foram demandas que pautavam condições mais decentes de trabalho, fora do esquadro da formalização.

Este é um debate espinhoso, na medida em que, nos últimos anos, vemos uma intensificação e mudança qualitativa nos ataques bem sucedidos aos direitos e proteções do trabalho. Entretanto, deslizar para a simples defesa de um autoengano de trabalhadores que então acreditariam que são chefes de si torna a análise no mínimo infrutífera. Para além do não esquecimento de que a própria definição de emprego já foi profunda e perversamente alterada pela Reforma Trabalhista, a compreensão dos modos de subjetivação periféricos é fundamental para compreender o lugar que o emprego formal ocupa nas trajetórias dos trabalhadores. A alta rotatividade, as desigualdades brutais, injustiças cotidianas e a herança escravocrata se perpetuam por dentro da formalidade. Quando o trabalhador diz que “não quer ter patrão”, é necessário estar aberto aos sentidos múltiplos e contraditórios que esta afirmação encerra.

Se seguirmos com a tese da uberização como uma apropriação centralizada de modos de vida periféricos, podemos constatar que a busca por uma autonomia real e negação das formas de dominação e exploração constituídas por dentro do emprego formal no Brasil (Vinícius, 2020) também é incorporada como elemento da gestão. Algumas pesquisas qualitativas e quantitativas com diferentes categorias de trabalhadores mostram que não é pequena a participação de trabalhadores que abriram mão de seus empregos para aderirem ao trabalho por meio de plataformas digitais. Uma crítica radical à uberização precisa incorporar a contradição de uma busca dos trabalhadores pela autonomia que é incorporada nas formas contemporâneas de exploração e dominação. Mas esta discussão precisa ser construída à luz da realidade do mundo do trabalho brasileiro. Neste sentido, propomos um exercício de análise a partir da trajetória de motoboys, bike boys e uma manicure. Vemos então trajetórias formadas pelo trânsito e combinação entre o emprego formal e a informalidade, empreendimentos próprios, múltiplas profissões num mesmo trabalhador. Seguindo o fio dessas trajetórias, vai se desenhando o autogerenciamento subordinado, ou, em outras palavras, a apropriação centralizada da viração como modo de vida.

2.1 Mensageiro de entregas, motoboy terceirizado, entregador por aplicativo

A trajetória dos motoboys nos permite acompanhar de perto as mudanças dessa profissão, que também evidenciam transformações mais amplas do mundo do trabalho. A uberização do setor de entregas muda até mesmo o reconhecimento profissional destes trabalhadores, que passam a compor a indistinta categoria de “entregadores”, evidência do processo de amadorização desta ocupação.

A adesão ao trabalho ao invés de contratação, as formas de seleção que se informalizam por uma concorrência dispersa e com regras não fixáveis, o desenvolvimento dos GPS e instrumentos automatizados que substituem e controlam o conhecimento do trabalhador sobre a cidade formam este deslocamento de um trabalho profissional que agora – independentemente da experiência profissional, dos custos, saberes e competências necessários para permanecer na atividade, assim como do tempo dedicado ao trabalho – se apresenta como um trabalho amador[2].

Mário[3] tem 49 anos. Hoje, recorre aos amigos para conseguir ao menos pagar a conta de luz. Aos 20, tentou seguir os passos do pai. O objetivo era se tornar um metalúrgico, o que conseguiu alcançar durante alguns anos. Olhando para trás, reflete que o cotidiano dos diversos empregos pelos quais passou o levaram a tentar durante a vida toda ser um trabalhador autônomo. Diz que três pilares o formam como trabalhador: ser motoboy, sacoleiro e metalúrgico.

Mário é negro, morador de um bairro periférico de Campinas, com ensino médio completo e alguns cursos técnicos. Assim como grande parte dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros, tem uma diversidade inenarrável de conhecimentos e competências adquiridos por tantas profissões e ocupações que tecem sua trajetória, feita de empregos formais, microempreendimentos, trabalho informal, atividades que mal são reconhecidas como trabalho, bicos. Ele guarda em uma caixa registros, lembranças, arquivos dos empregos e ocupações que já teve. Na juventude, trabalhou em hipermercados como guardador de carrinho, fez curso no Senai de soldador e operador de empilhadeira. Durante 5 anos, teve um emprego de metalúrgico. Após pedir demissão, transitou por vários bicos e empregos. Foi promotor de vendas, fazia bicos de pintura e reparos em casas, foi atendente numa loja de uma empresa de celulares, repositor em mercado e novamente soldador, também trabalhou como técnico em telefonia. No início dos anos 2000, tornou-se motoboy. Longe de uma trajetória profissional linear, entre 2000 e 2010, transitava entre essa ocupação, empregos como soldador, entre outras atividades.

Uma espécie de fuga do emprego vai tecendo sua trajetória. As humilhações e injustiças cotidianas por vezes culminavam na sua revolta e pedido de demissão ou nos desligamentos feitos pelas empresas. Há mais de 10 anos se estabilizou como motoboy por conta própria, uma condição cada vez mais instável e insustentável. Nesta última década, combina o trabalho com o de sacoleiro; em geral, revende artigos réplica de marcas famosas. As entregas retroalimentam as vendas, traça estratégias para que a circulação como motoboy alimente a compra e comercialização dos produtos[4].

Desde os anos 90, o processo intenso de terceirização das entregas promovia a expansão e reconfiguração dessa profissão. No início dos anos 80, antes da terceirização, os motoboys eram mais conhecidos como “mensageiros de entrega”. A moto, em geral, não era do trabalhador, sendo fornecida pela empresa que contratava diretamente estes trabalhadores. Como narra Afrânio, entrevistado em 2014, então com 51 anos e 32 de profissão, o trabalhador tomava um ônibus para a empresa, passava o dia fazendo entregas e a noite voltava para casa. Naquela época, o trabalho envolvia uma logística outra, a qual hoje nos parece tão distante e que definia a intensidade e as formas de distribuição deste trabalho. Motoboys levavam consigo sacos de fichas; a distribuição das corridas pela cidade contava com a ligação feita nos telefones públicos.

A expansão das empresas de delivery amplia a oferta de trabalho, estabelecendo-se uma organização bem estruturada e, ao mesmo tempo, socialmente invisível. Hoje, esses trabalhadores ganham visibilidade na pandemia como entregadores de comida; entretanto, o trabalho dos motoboys é há décadas essencial para a circulação de documentos, de bens pessoais e, mais recentemente, da distribuição do e-commerce. Estes trabalhadores fazem serviços de cartório, transportam bens delicados como flores e amostras de sangue. Motoboys brasileiros em Londres, por exemplo, transportam até mesmo órgãos para transplante[5]. Podem desempenhar diferentes atividades sob o rótulo de motoboy, como ser o motociclista que trabalha para empresas de seguros, transportando e vendendo baterias, além de dar auxílio para motoristas com carro em pane.

Com as terceirizações, o número de vagas se expande significativamente, instauram-se novas formas de remuneração, assim como a transferência de custos para o trabalhador, sem falar nos riscos.  Remunerados por entrega ou por dia de trabalho, estes trabalhadores passaram, especialmente no início dos anos 2000, por um processo de formalização e profissionalização da categoria. Em 2009, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva sanciona o projeto de lei que reconheceu a profissão dos motoboys. O contrato formal de trabalho envolvia duas categorias, denominadas pelos trabalhadores de trabalho por contrato ou trabalho esporádico – mais conhecido como “explorádico”.  No primeiro, o trabalhador era contratado pela terceirizada e fornecido de forma fixa para outra empresa. Tinha um salário fixo mensal e jornada de trabalho pré-estabelecida. Nesta condição, o motoboy tinha uma remuneração menor, mas condições mais seguras de trabalho, na medida em que não era o número de entregas realizadas que definia a sua remuneração. Já como “explorádico”, o trabalhador recebia o correspondente ao piso salarial estabelecido pela categoria mais uma remuneração por entrega – baseada na distância percorrida.

A popularização do acesso aos celulares na primeira década dos anos 2000 reconfigura a distribuição e o ritmo desse trabalho. Em 2014, Fernando, então motoboy há mais de 20 anos, referia-se às empresas terceirizadas como as “Furasóio express”. Na época da entrevista, trabalhava como guardador de motos nas ruas do centro de São Paulo, além de fazer entregas por conta própria. Trabalhou na roça quando criança; veio do Nordeste para São Paulo na adolescência. Depois de anos trabalhando no comércio, tornou-se funcionário concursado do Banco do Brasil. Aderiu nos anos 90 à leva de demissões voluntárias. O termo irônico em referência às empresas sintetiza as duras condições de trabalho dos motoboys – que se deterioraram mais ainda com o processo de uberização. O emprego formal trazia algumas proteções e garantias no que se refere à saúde e segurança dos trabalhadores frente ao alto risco de acidentes. Os ganhos do motoboy esporádico, entretanto, eram calculados a partir das distâncias percorridas para cada entrega, sendo que, em geral, 40% do valor da entrega era retido pela empresa.  Quando Mário se torna um motoboy no início do milênio, já está legalizado que os custos da moto são do entregador, assim como banalizadas as mortes e acidentes dos motociclistas – não só de entregadores, mas de trabalhadores de baixa qualificação e rendimento, que, como parte da viração, crescentemente arcam com riscos e custos de seu deslocamento para o trabalho e morrem pelas ruas da cidade (Biavati e Martins, 2009)[6].

Como dito anteriormente, ao longo de sua trajetória como motoboy, Mário consegue realizar o projeto de muitos destes trabalhadores: romper com a exploração das empresas terceirizadas e estabelecer uma cartela própria de clientes, para os quais trabalha como autônomo. Durante oito anos, ele conseguiu se manter assim. Em 2015, em plena crise econômica e o estabelecimento vitorioso do processo de oligopolização de algumas poucas empresas que operam por plataformas digitais, Mário vê suas possibilidades se esvaírem frente ao rebaixamento brutal do valor do trabalho dos entregadores, a quebra das empresas terceirizadas e ainda a falência econômica de vários de seus clientes. Com a moto irregular, a carteira vencida e sem dinheiro nem para a luz, a opção ainda não alcançada que lhe resta, ao menos por enquanto, é criar meios que possibilitem se “regularizar” como um entregador por aplicativo uberizado.

Passados alguns anos da consolidação das empresas de entrega por aplicativo, a profissão dos motoboys se reconfigura profundamente. O valor da hora de trabalho é reduzido significativamente (Abílio, 2020b); na pandemia, há uma redução ainda maior (Abílio et al., 2020). Já o número de acidentes envolvendo entregadores aumenta (Agora, 2020; G1, 2020; Resk e Carvalho, 2020). Condições mínimas de saúde e segurança são eliminadas: como parte do processo de informalização, entregadores não contam nem com uma base de apoio definida; se antes o trabalhador aguardava sua vez num sofá velho da empresa jogando dominó, hoje até mesmo o acesso à água e aos banheiros se torna parte das estratégias e negociações informais cotidianas. Quando empregado terceirizado de uma “furasóio express”, o motoboy tinha clareza sobre as regras que definiam a distribuição do trabalho, assim como o valor recebido por cada entrega. A exploração era evidente, assim como as injustiças cotidianas. Não podemos perder de vista que uma das principais estratégias para as empresas-aplicativo oligopolizarem esse setor foi a oferta de uma remuneração mais alta por entrega, que levou muitos trabalhadores a abrirem mão de seus empregos para se dedicarem exclusivamente à entrega por aplicativo. Entretanto, as empresas de entrega por aplicativo que conseguiram oligopolizar o setor de deliveries alcançaram a façanha de, por um lado, informalizar os motoboys, que contavam com a possibilidade da formalização; por outro, fomentar de forma centralizada uma ocupação que antes existia de modo disperso e pouco organizado: a dos bike boys.

As bicicletas têm sido associadas com o desenvolvimento sustentável, mas hoje se tornam o grande símbolo da uberização. Da figura da energia limpa, deslocamo-nos para a brutalidade do uso da energia física com meio de subsistência em pleno tráfego urbano. O jovem negro pedalando com a bag nas costas, segurando o guidão com uma mão enquanto vê o celular com a outra no meio de vias de tráfego intenso que não têm sequer ciclovias, hoje materializa essa forma contemporânea de exploração.

A grande maioria dos bike boys entregadores por aplicativo em São Paulo é negra, tem até 27 anos. Em média, esses trabalhadores recebem R$ 936 por mês, trabalhando em sua maioria entre 9 e 12 horas diárias, de segunda a domingo (Aliança bike, 2019). Uma análise comparativa entre trabalhadores uberizados e terceirizados “clássicos” evidencia que a profissão do bike boy se torna mais negra e jovem quando se uberiza, ou seja, processos de precarização se traduzem no aumento da participação de jovens negros (Abílio, 2020a). Em poucos anos, a profissão dos bike boys se expande e banaliza;  contingentes gigantescos de trabalhadores distribuídos pelas ruas da cidade numa precariedade explícita parecem compor a base da pirâmide da uberização

Carlos[7] tem 19 anos. Diz que já fez “de tudo na vida”: revenda de cosméticos com a mãe, venda de coxinhas na porta do estádio Itaquerão, bicos na construção civil. Ele é branco, morador de um bairro periférico de São Paulo. Com ensino médio completo e muitos currículos enviados sem resposta, consertou uma bicicleta antiga do pai, teve o cadastro aceito e passou a trabalhar para o iFood. Trabalha em média 12 horas por dia, de seis a sete dias por semana. Em geral, dedica-se o tempo que for necessário para retirar R$ 100 por dia durante a semana e R$ 150 aos finais de semana. No dia da entrevista, em 2020, conversamos longamente, pois havia sido injustamente bloqueado pela empresa: a reclamação de um cliente se traduz na suspensão temporária sumária do entregador, que não conta nem com meios bem estabelecidos para se defender e regularizar. Em outro dia, cancelou a segunda entrevista, estava no hospital – seu irmão, também bike boy, havia sido atropelado enquanto trabalhava. Esse se recuperou bem, escapando das estatísticas que mostram um crescimento acelerado da morte de ciclistas na cidade de São Paulo, muito provavelmente associado à expansão do trabalho de bike boys entregadores por aplicativo (Resk e Carvalho, 2020). Ele e o irmão convivem pelas praças da cidade, enquanto esperam a próxima entrega.

Carlos quer cursar a faculdade de Educação Física; também já tentou se profissionalizar como jogador de futebol. Seu plano para o futuro próximo é arrumar um emprego com carteira assinada e jornada fixa, o que lhe possibilitaria trabalhar de dia e cursar a faculdade a noite. O trabalho como bike boy não tem deixado tempo para a combinação com os estudos. Além da longa jornada, gasta algumas horas do dia no deslocamento pelo transporte público da periferia para o centro de São Paulo, onde deixa sua bicicleta num bicicletário. Para ele, o entorno da Av. Paulista se mostrou o lugar mais propício para as entregas. Ele segue buscando um emprego. A questão é se ser bike boy se tornou não só uma degradada porta de entrada como também meio de permanência informalizada no mercado de trabalho. Nestes termos, vai se constituindo a carreira de entregador: passar de bike boy a motoboy se torna um horizonte possível; como ele diz, “seria um cargo acima”.

  1. Chegada: Deslocamento – do autoengano para o autogerenciamento subordinado

A expansão do trabalho uberizado se dá em diversos setores, de diferentes formas. As atividades uberizadas controladas por empresas via plataformas digitais são mais facilmente reconhecíveis, dada a transformação profunda e acelerada que estas promovem. As manicures hoje passam a integrar o universo da entrada das plataformas digitais. Aplicativos como Singu hoje se firmam no mercado utilizando estratégias semelhantes às das empresas de delivery. O aplicativo oferece serviços de manicure, pedicure e depilação, além de massagem e drenagem linfática. Para Clara – manicure entrevistada pela socióloga Juliana Andrade Oliveira no âmbito da pesquisa da Informalidade no Brasil Contemporâneo –, o aplicativo hoje representa um meio para que otimize a utilização de seu tempo, ainda que isso signifique arcar com riscos e custos diferentes dos do salão. Com 48 anos, Clara é separada e tem dois filhos; mora no centro de São Paulo. Trabalhou sem registro durante dez anos para um mesmo salão. Ganhava por serviço realizado; o salão retinha 60% do valor e assumia os custos com manutenção e higienização dos aparelhos; todo o restante cabia às manicures. O estabelecimento tinha uma alta demanda, de forma que, mesmo arcando com alguns custos e não sendo formalizada, considera que obtinha um bom rendimento. O salão foi vendido e a nova proprietária decidiu registrar as manicures seguindo o piso salarial da profissão, o que para ela significaria uma queda de mais de 50% na sua remuneração.

As novas regulações sobre o trabalho das manicures abriram a porteira da legalização da uberização. A Lei “salão parceiro-profissional parceiro” foi implementada em 2016, pelo governo de Michel Temer. Passou um tanto desapercebida, talvez por incidir no trabalho tipicamente feminino e de baixa remuneração; também se tornou um prenuncio do cardápio de alterações profundas promovidas pela Reforma Trabalhista. A lei dissolve o vínculo de emprego das manicures, possibilitando que estas sejam consideradas autônomas. O salão passa então a ser considerado um provedor de infraestrutura para que a “profissional-parceira” realize seu trabalho. Atualmente, as manicures lidam assim com a possibilidade de serem legalmente transformadas em autônomas, trabalhando diariamente em um salão, com relações de subordinação explícitas.

A experiência de Clara sintetiza como no mundo do trabalho brasileiro as fronteiras entre trabalho formal e informal nem sempre são tão claras: “mesmo que você não seja de carteira assinada ou seja de carteira assinada, você tem que ficar ai bonitinho, cumprindo o horário bonitinho, eles te põe, a lei deles, que você tem que ficar. independentemente de como a relação é estabelecida, no salão” (Oliveira, 2018: 07).  A manicure vem tentando trabalhar exclusivamente por meio do aplicativo. Preza a possibilidade organizar o seu próprio tempo, o que não quer dizer que não esteja ciente das formas de controle e gerenciamento da empresa:

Digamos que essa [cliente] é oito da manhã, aí eu vou puxando, tem outra aqui na Santa Cecília, tipo umas onze e meia, vou e aceito, lá nas duas da tarde tem outra. Esta cliente que é pé e mão, Liberdade, eu vou e aceito, e assim vou enchendo a minha agenda. Eu já tenho noção do tempo, de uma cliente para outra, também de deslocamento de um lado para outro, então, a gente mesmo se programa, é tudo bonitinho e dá certo (…) Ah, eu não quero de saber de salão nunca mais. Sério. Você sabe por quê? Porque nessa empresa por aplicativo eu mesma sou a minha chefa, eu mesmo preencho a minha agenda, eu faço meus horários, atendo quantas clientes (…) que eu quero, e pelo aplicativo eu sei que se sair de manhã, não vou chegar [em casa] dez da noite, como já aconteceu (Oliveira, 2018).

Sua fala pode nos levar erroneamente a interpretação do autoengano, de uma trabalhadora que se vê como empreendedora. Entretanto, em diálogo aqui com o pesquisador Leo Vinícius (2020), o que parece de fato estar em jogo é a busca pelo gerenciamento do próprio tempo e a recusa das formas de opressão encarnadas na figura do patrão e das formas injustas e corriqueiras de extensão não paga do tempo de trabalho, de cerceamento de direitos e eliminação de garantias, de humilhações cotidianas,  exercidas por dentro do emprego formal.

A busca pela possibilidade de ser um trabalhador por conta própria mobiliza os trabalhadores e trabalhadoras brasileiros. Trata-se menos de uma subjetivação neoliberal e mais da fuga das opressões e injustiças que são tecidas por dentro e por fora do trabalho formal.

Para complexificar, hoje enfrentamos os desafios de uma categoria de trabalho formal que se reconfigurou e se aproxima de caraterísticas do trabalho informal (Krein et al., 2018). Também enfrentamos processos de informalização que reconfiguram a própria informalidade. Vemos em ato a apropriação racionalizada de elementos que tecem estes modos de vida, e agora são gerenciados por novos meios, difíceis de mapear. Está em jogo a consolidação dos trabalhadores enquanto trabalhadores sob demanda que corre junto com processos de monopolização e o aprofundamento das desigualdades.

Trata-se de uma tendência que hoje atravessa e pressiona globalmente o mundo do trabalho. Neste sentido, trabalhadores são reduzidos a força de trabalho, sendo-lhes transferida toda responsabilização e custos de sua reprodução social. São recrutados de acordo com determinações das empresas e não têm qualquer garantia sobre sua remuneração. A ausência de jornada de trabalho regulada e contratualmente estabelecida, a ausência de definições estáveis sobre o valor e a remuneração do trabalho, a transferência dos instrumentos do trabalho, custos e riscos para os trabalhadores e o uso racionalizado do trabalhador como mero fator de produção vão formando o caldo que conta também com a transferência de parte do gerenciamento do trabalho para os próprios trabalhadores. O autogerenciamento subordinado nos evidencia que as redes de proteção social formadas em torno da categoria emprego – desde sempre precárias, localizadas e instáveis na periferia – dão lugar a generalização da gestão individualizada da sobrevivência. Entretanto, não nos enganemos: essa gestão segue inteiramente subordinada. É uma subordinação que conta com meios de controle que cada vez mais perdem formas estáveis e socialmente reguladas e se apropria da busca pouco alcançável do trabalhador pela sua autonomia e liberdade.

Referências

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Notas

[1]  Termo que emprestamos do PL 3748/2020, atualmente tramitando na câmara dos deputados, que dá nome aos bois – “Institui e dispõe sobre o Regime de trabalho sob demanda”.

[2] Este é mais um aspecto central do processo de informalização do trabalho. A comparação entre um taxista e um motorista da Uber, por exemplo, deixa evidente este processo de amadorização. Enquanto o primeiro aparece como um profissional, o segundo é reconhecido como um trabalhador amador, uma espécie de temporário-permanente (Abílio, 2014). Envolve também novas formas de certificação do trabalho, que passam ao largo do Estado. Também são informalizadas e garantidas pela atividade vigilante da multidão de consumidores. Para uma discussão aprofundada sobre o trabalho amador ver Abílio 2014, 2017 e 2019.

[3] Todos(as) entrevistados(as) tiveram seu nome trocado para preservação de sua identidade.

[4] Essa ideia de retroalimentação e combinação de diferentes atividades como meio de sobrevivência é desenvolvida em profundidade na análise sobre revendedoras de cosméticos (Abílio, 2014).

[5] Fato constatado em entrevistas por mim realizadas no Reino Unido, em 2018.

[6] Quem morre nos acidentes de trânsito envolvendo motocicletas na cidade de São Paulo? Esta era a pergunta do Relatório Mortos e feridos sobre duas rodas: Estudo sobre a acidentalidade e o motociclista em São Paulo. A conclusão era que se tratava de “Frentistas, garçons, manobristas, motoristas, porteiros, seguranças e vigilantes, ajudantes gerais, mecânicos, eletricistas e pedreiros. Em 2008, mais da metade das mortes a partir de 21 horas até 6:59 horas são de motociclistas dos grupos de Trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio em lojas e mercados e Trabalhadores da produção de bens, manutenção e reparação” (Biavati e Martins, 2009: 13).

[7] Carlos foi entrevistado em 2020, no âmbito do projeto xx.

Ludmila Costhek Abílio é  Doutora em Ciencias Sociais pela UNICAMP e pós-doutora pela FEA-USP. Possui graduação em Ciências Sociais e mestrado em Sociologia.

Fonte: DDF

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/empreendedorismo-autogerenciamento-subordinado-ou-viracao-uberizacao-e-o-trabalhador-just-in-time-na-periferia/