A reabilitação mundial do populismo, enquanto conceito e política efetiva, decerto não obedece à temporalidade do debate nacional, inclusive sendo anterior ao lulismo. Mas aparenta ter se acelerado e aumentado sua audiência intelectual nos últimos anos, por conta de deslocamentos culturais e sócio-políticos análogos, escreve Marco Antonio Perruso, professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) em artigo publicado por Lua Nova, 21-11-2022.

Eis o artigo.

Nos últimos anos, no Brasil e no mundo, parece haver uma intensificação do debate em torno do populismo – o fenômeno e o conceito. Não se trata apenas da crítica ao populismo “iliberal” de direita que ascendeu, em maior ou menor grau, nos Estados Unidos, Brasil, Polônia, Hungria. Até porque verifica-se um recrudescimento autoritário genérico dentro das fronteiras, por vezes estreitas, da democracia burguesa em termos institucionais – vide os casos da Inglaterra e de Israel. Trata-se de um endurecimento geral dos regimes do Capital, expresso na personalização do poder: na China, por exemplo, eliminou-se o limite de mandatos para o chefe de Estado (algo comum nos parlamentarismos europeus, é bom que se diga).

Abordamos, aqui, contudo, a retomada de um debate correlato, ao redor do conceitual clássico relativo ao populismo, progressista, dito de esquerda, no Brasil. Resumidamente, este debate se inicia em meados dos anos 1950 na América Latina, a partir de uma crítica às políticas de viés modernizante e nacional-desenvolvimentista, então hegemônicas em várias nações da região. Na história brasileira, a crítica foi, em grande medida, realizada pelo marxismo produzido por intelectuais uspianos: o cientista político Francisco Weffort, o sociólogo Octavio Ianni e outros. Tal crítica forneceu subsídios teóricos e analíticos para o desenvolvimento político de uma nova esquerda, entre os anos 1960 e 70, que resultou no Partido dos Trabalhadores (PT) e na Central Única dos Trabalhadores (CUT). Também tornou-se senso-comum, sendo socializada culturalmente à esquerda, mas apropriada ainda pela direita liberal.

Já nos anos 1980, historiadores fluminenses, com destaque para Ângela de Castro Gomes, elaboraram uma crítica à categoria “populismo”, re-significando-o positivamente em termos políticos e reconceituando-o como trabalhismo. Nas décadas seguintes as discussões a respeito ampliaram-se, notadamente porque se formava no período um novo ciclo de governos progressistas na América Latina – aparentados àqueles antes mencionados, que foram interrompidos pelas ditaduras militares do século passado. O arrefecimento da crítica de esquerda ao populismo se agravou, em favor da defesa intelectual de um suposto ciclo de regimes de esquerda, fenômeno nítido no Brasil quando se trata dos governos Lula e Dilma. Ainda assim, formulou-se criticamente o conceito de lulismo, por André Singer, prosseguindo com a leitura uspiana do populismo.

Além disso, outras apropriações internacionais da terminologia populista se davam, muitas delas alargando o significado da categoria, por si mesmo motivo de longas e variadas controvérsias. O populismo se referiria então a fenômenos de maior alcance que de certa forma definiam a essencialidade do que é a política. Nesta chave analítica, também positivadora de uma factualidade populista, pode-se considerar que trabalham autores como Chantal Mouffe e Ernesto Laclau.

Neste pequeno artigo analiso preliminarmente essa espécie de reabilitação histórica do fenômeno populista, observando sucintamente a trajetória do debate intelectual em torno do conceito, hoje fortemente condicionado pela conjuntura de ascensão, queda, e ressurgimento do lulismo no Brasil – e do progressismo em geral na América Latina. A análise aqui apresentada se faz a partir de uma sociologia política da contemporaneidade nacional (que acabou nos levando do lulismo ao bolsonarismo), de uma determinada história conceitual do populismo e de minhas pesquisas em pensamento social e político brasileiro (PERRUSO, 2020).

Vários autores já pesquisaram as similaridades entre o lulismo e o populismo pré-64, bem como já pensaram o lulismo à luz da teorização marxista do populismo no Brasil. Ruy Braga, baseando-se na tradição analítica uspiana (da qual é um representante contemporâneo), indica que “é o aparelho de Estado” o lócus do “consentimento ativo ao lulismo” (BRAGA, 2012, 87-88 – itálico do autor). Prosseguindo e atualizando a crítica anti-populista de Weffort, ele nota que “sujeitos políticos foram transformados em parceiros do Estado”, mas num contexto mobilizatório, o da transição entre os séculos XX e XXI, inferior ao vigente nos anos 1950-60: “A arquitetura institucional para a absorção da combatividade sindical em benefício da participação no aparelho de Estado garantiu um contraponto à estagnação do poder de mobilização das bases pelos sindicatos” (BRAGA, 2012, p. 63).

Como que evocando o conceito de capitalismo burocrático de Caio Prado Jr. (1987) e fundamentando-se nas elaborações inovadoras de Francisco de Oliveira (1972), Braga demonstra como os sindicalistas lulistas “foram absorvidos pelo aparelho de Estado e pelos fundos de pensão” nos governos federais do PT, “transformando-se em verdadeiros administradores do investimento capitalista no país”. Assim, deixaram “de representar os interesses históricos dos trabalhadores”, de maneira que constituíram uma “burocracia sindical que rapidamente está se transformando em uma nova burguesia de Estado” (BRAGA, 2012, p. 58-59). Todavia, assim como o varguismo, as contradições do lulismo foram se avolumando, conforme preceituaria a análise weffortiana, explodindo ao fim em junho de 2013, que “inaugurou o colapso do consentimento passivo das classes subalternas ao projeto de governo lulista” (BRAGA, 2012, p. 90) – o que foi aproveitado pela extrema-direita face à acomodação de boa parte da esquerda.

A comparação mais conhecida e importante entre os populismos brasileiros de ontem e hoje é a que estabeleceu o próprio conceito de lulismo, realizada por Singer. De antemão este referiu-se à teorização weffortiana clássica como inspiração de sua análise, a qual, ao manter a “visada de classe”, demarca a diferença para as leituras liberais e, “atualizada”, propicia “entender o lulismo” (SINGER, 2012, p. 33). Aqui se afirma desde já o caráter crítico ao fenômeno populista, inerente à elaboração original da categoria “lulismo”. Na operação teórica que Singer perfaz, é visível a homologia entre as propriedades do populismo pré-64 e as do lulismo:

o lulismo representa a criação de um bloco de poder novo, com projeto próprio (…) [expresso em um] poder aparentemente acima das classes que leva adiante a integração do subproletariado à condição proletária, assim como o varguismo soldou os migrantes rurais à classe trabalhadora urbana por meio da industrialização, da CLT e do PTB (SINGER, 2012, p. 45, itálico do autor).

É fácil verificar nessa relevante obra o transformismo do PT e da CUT em direção ao lulismo, o deslocamento da perspectiva socialista à realidade populista, a transposição do campo popular dos movimentos sociais à órbita institucionalizante do Estado-Nação. O PT “já vinha mudando de orientação programática desde 2002” e não seria mais “um partido de classe, mas do povo” (SINGER, 2012, p. 74 e 73, respectivamente). Singer não se limita a creditar a Weffort a teorização que atualiza por meio do lulismo. Ele realça a antecipação marxiana da ideia de populismo, que constaria de O 18 de Brumário de Luis Bonaparte: “a projeção de anseios numa figura vinda de cima (…) é típica de classes ou frações de classe que têm dificuldades estruturais para se organizar”; estes setores “aparecem na política (…) sem aviso prévio, sem a mobilização lenta (e barulhenta) que caracteriza a auto-organização autônoma das classes subalternas” (SINGER, 2012, p. 59, itálico do autor).

Singer (2012, p. 83) também percebe que as afinidades entre lulismo e populismo agitariam nossa cultura política: “Não espanta que o debate sobre o populismo tenha ressurgido das camadas pré-sal anteriores a 1964, onde parecia destinado a dormir para sempre”. É o que abordo a seguir, com as devidas nuances.

O debate crítico ao conceitual e à terminologia populista se dá, cronologicamente, antes e depois dos governos do PT – do lulismo, portanto. Nos anos triunfantes do lulismo ele parece ter se dado moderadamente. Com sua crise e a decorrente queda, talvez tenha se intensificado e adquirido tons mais drásticos e maior capilaridade no debate público de viés mais ilustrado.

Nos anos 1970 e 80, nossa corrente intelectual nacionalista, diante do prestígio do marxismo uspiano e da ascensão da geração petista-cutista na política brasileira, perfez a crítica à categoria “populismo”, bem como a correspondente defesa do fenômeno. Após sua síntese teórica via ISEB, na época em que era hegemônico, o pensamento brasileiro de embocadura estatal-nacional teve continuidade de matiz acadêmica, por meio do IUPERJ, hoje IESP, na esteira da paradigmática leitura nacionalista da história brasileira elaborada por Wanderley Guilherme dos Santos (1978). O contexto aqui era outro, diverso do de São Paulo, pois nos anos 1980 e 90 havia o brizolismo no Rio de Janeiro: era forte ainda o legado trabalhista, assim como do antigo pecebismo. Em terras fluminenses, as rupturas entre a “velha” e a “nova” esquerda não eram tão nítidas quanto na trajetória paulista.

É com a inovação analítica promovida por Ângela de Castro Gomes, quem estabelece o conceito de trabalhismo (no seu doutorado em ciência política no então IUPERJ, orientada por Santos), que aviva-se a crítica à teorização uspiana do populismo. Sua tese, defendida em 1987, torna-se obra clássica em livro no ano seguinte: A invenção do trabalhismo. (2005)

Em artigo posterior, Gomes retoma o debate:

a idéia era investigar a história da constituição da classe trabalhadora no Brasil, atribuindo-lhe, durante todos os “tempos”, um papel de sujeito que realiza escolhas segundo o horizonte de um campo de possibilidades. A abordagem se recusava a atribuir aos trabalhadores uma posição política passiva, não importando se mais ou menos completa (GOMES, 2001, p. 46).

O que Gomes talvez não conceba, nesta passagem, é que Weffort, como ela, fazia a crítica ao populismo também do ponto de vista da agência sociológica dos trabalhadores, mas destes articulados em movimentos que ensaiavam ir além do sistema populista já na década de 1960 – como acabaram por fazer autonomamente anos depois, via novo sindicalismo e novos movimentos sociais no Brasil.

Percebe-se que Gomes reconhece tal fato, ao apontar o uso de uma noção cara à teorização do populismo pelo marxismo uspiano:

A categoria “manipulação” é proposta, portanto, não de forma unidirecional, mas como possuidora de uma intrínseca ambigüidade, por ser tanto uma forma de controle do Estado sobre as massas quanto uma forma de atendimento de suas reais demandas (GOMES, 2001, p. 34).

Todavia, o que acabou prevalecendo foi “a consagração da versão do populismo como política de manipulação das massas” (GOMES, 2001, p. 34). Em contraposição ao que seria o legado uspiano, ela assevera que “o populismo não limitou nossa experiência democrática, antes a possibilitou” (GOMES, 2001, p. 36). Na ótica de um pensamento (e uma ciência) social perspectivada pelas movimentações políticas das classes populares, pode-se alterar essa afirmação, no sentido de que aquela experiência é proveniente essencialmente da ação dos trabalhadores. Pois sob o populismo – que é um sistema que engloba hierarquicamente elites e “povo” – tal ação é limitada, dada a falta de autonomia dos setores sociais subalternizados. Isto é, sob pressão dos “de baixo”, o populismo possibilitou uma experiência democrática limitada – justamente por conciliar com as classes dominantes! – a qual foi ampliada com sua superação, para o que concorreu a teorização marxista anti-populista.

A emergência do bolsonarismo evidencia os limites das democracias populistas. Uma assertiva de Singer (2012, p. 82) nos auxilia a compreender tal tipo de limitação: “Lula cria um ponto de fuga para a luta de classes, que passa (…) a ser arbitrada desde cima, ao sabor da correlação de forças”. Sem autonomia e independência de classe, não é difícil a tantos segmentos populares trocarem um Messias por outro, Lula pelo Mito, conforme a mudança da conjuntura.

O debate prosseguiu nos anos 1990 com a cientista política Ana Maria Doimo, que acrescenta um elemento importante: o pano de fundo configurado pelas mobilizações populares, sob o qual as discussões a respeito do populismo também se dão – de resto, como todo pensamento social e político brasileiro. Nessa década “se registram visíveis sinais de ‘refluxo’ dessas formas de participação” representadas pelos movimentos de caráter autônomo que vicejavam nos anos anteriores (DOIMO, 1995, p. 74). O enfraquecimento das lutas dos setores subalternizados na cena pública pode facilitar a subestimação de sua agência sociológica no campo dos estudos do pensamento, para não dizer nas ciências humanas como um todo.

Quanto ao mérito do debate, Doimo enquadra o populismo em chave inversa à de Gomes. Assim como esta, registra a via de mão-dupla subjacente à noção de manipulação (DOIMO, 1995, p. 76). Mas não perde de vista que tal noção – embora traga o risco de nublar a análise face a uma possível normatividade relativa ao comportamento político dos trabalhadores e à performance dos movimentos populares – não é essencialmente moralista, por ser sociológica. A agência dos subalternizados e marginalizados anda lado-a-lado com a autonomia dos “de baixo”, não com a parceria desigual com setores das classes dominantes. Por isso Doimo conclui valorizando o pioneirismo intelectual de Weffort:

Ao rejeitar o preconceito incutido nas análises quanto ao “amorfismo” da classe operária ou das “massas”, esse autor abre importante flanco para a recuperação da capacidade ativa do povo, tão logo disseminada e potencializada por inúmeros intelectuais, dentre eles os teóricos dos movimentos sociais, a exemplo de José Álvaro Moisés… (DOIMO, 1995, p. 77).

A reabilitação mundial do populismo, enquanto conceito e política efetiva, decerto não obedece à temporalidade do debate nacional, inclusive sendo anterior ao lulismo. Mas aparenta ter se acelerado e aumentado sua audiência intelectual nos últimos anos, por conta de deslocamentos culturais e sócio-políticos análogos. Dois autores centrais nessa reabilitação ou ressignificação são Chantal Mouffe (2018) e Ernesto Laclau (2013), cujas ideias aqui abordo muito sumariamente, na medida em que se coloque em relevo suas afinidades com o pontuado sobre o populismo no Brasil.

Neles há o diagnóstico de que, na Europa Ocidental, a extrema-direita, nacionalista e xenofóbica, capturou as insatisfações populares diante do capitalismo, da globalização, do neoliberalismo e da financeirização da economia. Entendem que faz-se necessário disputar tais insatisfações em sentido progressista por um populismo de esquerda, de modo a combater a oligarquização da sociedade e a pós-política. No Brasil, acrescento, o mesmo se deu, figurando no papel de agente populista o lulismo.

Mouffe e Laclau registram que a esquerda possui uma visão consensual e racionalista da política e da democracia, a qual recrimina as paixões, assimilando-as à demagogia e irracionalidade populistas; por conseguinte, ela identificaria erroneamente esta direita como fascista, e seus apoiadores como ignorantes carentes de educação, escondendo convenientemente sua própria responsabilidade na ascensão desses extremistas. Aqui avulta como esta rica descrição aplica-se perfeitamente ao que vivemos em nosso país: tanto liberais quanto lulistas (que se imaginam de esquerda) atacam de modo um tanto elitista as bases populares bolsonaristas.

Os dois autores propõem o populismo de esquerda como uma configuração política baseada no povo, contra as oligarquias, pois a multiplicidade de lutas sociais (que incluiria as classificadas como “identitárias”) não permite mais sua subordinação à classificação tradicional do espectro ideológico da direita à esquerda. Neste ponto o populismo ofertado enquanto uma terceira via na política (o que nunca deixou de ser, para dizer a verdade) explicita-se, valendo citar mais uma vez Singer (2012, p. 83), a fim de revelar a similitude com o lulismo: “A velha noção de que o conflito entre um Estado popular e elites antipovo se sobrepõe a todos os demais cai como uma luva para um período em que a polaridade esquerda/direita foi empurrada para o fundo do palco”.

A razão e a política populistas remeteriam à essência da política em si mesma, que difere tanto da política tecnocrática ainda predominante, que a reduz à administração, quanto da política revolucionária, que peca por ser utópica. Novamente aqui observa-se a repaginação de uma terceira via pela dupla de autores em tela.

Devo dizer que seria fácil imputar às proposições de Mouffe e Laclau duas características que ambos recusam: a de que a renovação do populismo expressa uma resignação ao capitalismo contemporâneo, e uma renúncia ao horizonte socialista. Contudo, na proporção em que seus esforços reflexivos não fogem aos parâmetros intelectuais dos populismos que vigoraram até hoje, creio ser forçoso, ao menos por ora, restringir-me a tal desfecho.

Referências bibliográficas

BRAGA, R. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.

DOIMO, A. M. A vez e a voz do popular – movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ANPOCS, 1995.

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LACLAU, E. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013.

MOUFFE, C. O momento populista – Por un populismo de izquierda. Buenos Aires: Siglo XXI, 2018.

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SINGER, A. Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

IHU-UNISINOS

https://www.ihu.unisinos.br/624133-o-lulismo-e-a-reabilitacao-do-populismo