OPINIÃO

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No último dia 2 de junho de 2022, o Supremo Tribunal Federal, julgando o Tema 1.046 da Tabela de Repercussão Geral, estabeleceu a seguinte tese:

"São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis."

O reconhecimento de acordos e convenções coletivos como normas decorrente do texto constitucional não é propriamente uma novidade, vez que a Corte Maior já havia decidido exatamente nesse sentido quando julgou o Tema 152 da Tabela de Repercussão Geral, fixando a tese segundo a qual:

"a transação extrajudicial que importa rescisão do contrato de trabalho, em razão de adesão voluntária do empregado a plano de dispensa incentivada, enseja quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas objeto do contrato de emprego, caso essa condição tenha constado expressamente do acordo coletivo que aprovou o plano, bem como dos demais instrumentos celebrados com o empregado" [1].

Por seu turno, pelo princípio da adequação setorial negociada, recordado em ambos os julgados citados (neste último, apenas nas razões de decidir), no dizer de Maurício Godinho Delgado, pode-se inferir dois critérios para a superação do legislado pelo negociado, desde que: a) "as normas autônomas juscoletivas implementem um padrão setorial de direitos superior ao padrão geral oriundo da legislação heterônoma aplicável"; e b) "as normas autônomas juscoletivas transacionem setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta)" [2].

No primeiro critério proposto pelo referido autor, há fina sintonia com o quanto disposto no caput do artigo 7º da CF-88 e o princípio da vedação ao retrocesso social [3]. Já o segundo critério se conecta ao que foi fixado ao final da tese, quando esta estabelece um limite à confecção de normas coletivas, devendo ser "respeitados os direitos absolutamente indisponíveis".

Surge então a primeira dúvida. Há direitos trabalhistas relativamente indisponíveis? A Carta Política de 1988 indica o caminho, quando permite, nos incisos VI, XIII e XIV, do artigo 7º, que salário e jornada, bens indisponíveis do trabalhador por excelência, possam ser coletivamente negociados. Mas também é possível pensar em outros direitos trabalhistas relativamente indisponíveis para fins de negociação coletiva: critério de pontuação para fins de pagamento de gorjetas; modalidade de pagamento de salário; alteração da data do pagamento do salário, respeitado o limite legal; tipo de jornada pactuada, etc. Há direitos trabalhistas, porém, que são, na estrita redação da tese firmada, "absolutamente indisponíveis" — e é sobre estes que este ensaio tratará.

Seria meio óbvio afirmar que gozariam de proteção absoluta e indisponível todos os direitos previstos no Texto Constitucional, que a própria Constituição não tenha admitido a possibilidade de negociação coletiva, mas é válido recordar que, em 2020, o STF, julgando o mérito da ADI 6363, decidiu que é constitucional reduzir salário sem a participação do sindicato, desde que em época de pandemia [4], inaugurando o que o ministro Gilmar Mendes denominou de "jurisprudência de crise" [5].

É imperioso afirmar, todavia, que o Direito do Trabalho já é e sempre foi o direito da crise. Este ramo especializado só existe porque capital e trabalho não conseguem alcançar entendimento sem que haja a intervenção do Estado, fixando normas mínimas, para que o próprio capital permaneça explorando a mão de obra, mas o trabalhador não se sinta aviltado, podendo "vender" a sua força de trabalho.

Afastar o Direito Constitucional do Trabalho quando há uma "crise" é, certamente, e com todas as vênias, desrespeitar que todos os direitos previstos no rol do artigo 7º da CRFB/88 se constituem como cláusulas pétreas e, para além disso, que o regramento específico previsto no inciso VI é uma regra, não um princípio, passível de ponderação com outros princípios, pela porosidade própria dos mandados de otimização, na dicção de Alexy [6].

Bem, a Corte Suprema, ao afirmar na tese sob análise que os direitos absolutamente indisponíveis estariam salvaguardados, diz muito, mas também permite que o debate em torno dos limites à autonomia privada coletiva permaneça pois, conforme já se viu, em suposta época de crise (ignorando-se, evidentemente, que a crise é subjacente ao conflito capital e trabalho), sequer as cláusulas pétreas estariam a salvo de possível negociação meramente individual entre patrão e empregado.

Supondo, porém, que as normas coletivas estejam sendo firmadas em época não pandêmica, é correto afirmar que são absolutamente impermeáveis à negociação coletiva o que não tenha sido expressamente autorizado pela Constituição, ou os direitos que, uma vez previstos na Carta Política, pela redação do texto normativo, não possam ser transacionados, como as normas que tratam de saúde, segurança e medicina do trabalho, os direitos de liberdade, intimidade, privacidade, anotação na CTPS, dentre outros previstos na Constituição Federal e normas cogentes que tratam de tais matérias. Igualmente gozam de indisponibilidade absoluta as normas de tratados e convenções internacionais que foram ratificadas pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Destarte, o artigo 611-B da CLT dispõe que determinados direitos não poderão ser transacionados, mesmo em um cenário coletivo. Assim é que o aludido dispositivo, no inciso I, não permite transação coletiva em relação às normas de identificação profissional, inclusive as anotações na Carteira de Trabalho e Previdência Social. A limitação normativa encontra justificativa constitucional, sendo certo que o empregado alijado da proteção formal fica à margem dos direitos fundamentais específicos do trabalhador, inclusive o seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário, e o valor dos depósitos mensais e da indenização rescisória do FGTS, respectivamente tratados nos incisos II e III do dispositivo. Causa espécie o inciso III do artigo 611-B da CLT, que torna infenso à negociação coletiva o valor dos depósitos mensais, caminhando para além do texto constitucional, que somente prevê o FGTS como direito dos trabalhadores urbanos e rurais, assim como assegura a multa de 40% em caso de rescisão sem justa causa.

O inciso IV do artigo em análise dispõe que a norma coletiva não poderá suprimir ou reduzir o salário mínimo. A lei disse menos do que deveria ter estatuído, pois a proteção deverá observar o salário mínimo fixado em lei (CF, artigo 7º, inciso IV), inclusive o salário mínimo-hora, garantindo-se o patamar para os empregados que recebem remuneração variável (CF, artigo 7º, inciso VII), bem assim o piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do serviço (CF, artigo 7º, inciso V).

Também prevê o artigo 611-B da CLT que as normas coletivas não podem conter cláusula in pejus em relação ao valor nominal do décimo terceiro salário. A literalidade do dispositivo é preocupante, pois permite, em tese, flexibilização da gratificação natalina, ao não vedar a diluição do direito ao longo do ano. Caso a norma coletiva preveja algo nesse sentido, estaria sendo subvertida a razão de ser do décimo terceiro, que se propõe historicamente a fazer frente às despesas advindas pela época natalina. Assim, o pagamento parcelado não atende ao escopo constitucional, constituindo-se em previsão normativa ilícita.

Explorando o dispositivo em análise, o inciso VI estabelece que há ilicitude em cláusula normativa que ofenda a "remuneração do trabalho noturno superior à do diurno". A leitura rápida da norma pode levar à não percepção de um detalhe muito importante: o percentual do adicional noturno e a hora noturna reduzida não encontram assento constitucional e, assim, ficariam livres à criatividade do pleno exercício da autonomia privada coletiva. Todavia, é necessário recordar que tais normas, embora de previsão infraconstitucional, são de indisponibilidade absoluta, pois tratam de higiene e saúde no trabalho. Nada obstante, por honestidade informativa, convém pontuar que o Tribunal Superior do Trabalho admite, em sede de negociação coletiva, a supressão da redução da hora noturna, desde que haja majoração no percentual noturno [7].

Ainda palmilhando o artigo 611-B da CLT, o inciso IX atribui ilicitude à norma coletiva que suprima ou reduza o repouso semanal remunerado, tendo o legislador reformista ignorado a completude do texto constitucional, que prevê o usufruto do direito preferencialmente aos domingos. A observação é de peculiar importância, para ratificar que há limite à confecção de norma coletiva que preveja gozo do repouso semanal aquém do já legalmente previsto [8].

Retornando ao texto constitucional, seria possível pensar que haveria vedação à norma coletiva poder criar restrições não previstas na CRFB/88 para a garantia de emprego da gestante, pois isso seria permitir uma superação da norma constitucional por uma norma criada pela autonomia das partes.

Por fim, mas sem intentar encerrar o debate, igualmente seria viável pensar que haveria vedação clara à confecção de normas coletivas, quando estas almejem tratar de forma diversa à Lei nº 13.709/2018 todo o conteúdo de proteção de dados dos empregados, vez que isso afrontaria o inciso LXXIX do artigo 5º da CRFB/88.


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 590415/SC. Relator ministro Roberto Barroso; Órgão julgador: Pleno; Data de julgamento: 30.04.2015; Data de publicação: DJe de 29.05.2015.

[2] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 15. ed. São Paulo: LTr, 2016, p. 1465-1466.

[3] Sobre o conteúdo do referido princípio: LACERDA, Rosangela Rodrigues; VALE, Silvia Teixeira do. Curso de direito constitucional do trabalho. São Paulo: LTr, 2021, p. 86-87.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 6363/DF. Relator ministro Ricardo Lewandowski; Redator do acórdão ministro Alexandre de Moraes; Data de julgamento: 17/04/2020; Data de publicação: 24/11/2020.

[5] MENDES, Gilmar. Jurisprudência de crise e pensamento do possível: caminhos constitucionais. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-11/observatorio-constitucional-jurisprudencia-crise-pensamento-possivel-caminhos-solucoes-constitucionais>. Acesso em: 04 jun 2022.

[6] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90.

[7] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista nº 0002332-03.2013.5.03.0057. Relator ministro Walmir Oliveira da Costa; Órgão julgador: Primeira Turma; Data de julgamento: 07.05.2020; Data de publicação: DEJT de 11.05.2020. "EMENTA. RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. TRABALHO EM PERÍODO NOTURNO. PRORROGAÇÃO. NORMA COLETIVA QUE PREVÊ ADICIONAL NOTURNO SUPERIOR AO LEGAL. LIMITAÇÃO ÀS HORAS NOTURNAS. VALIDADE. A jurisprudência desta Corte Superior é firme no sentido de reconhecer a validade da norma coletiva que, de um lado, fixa o horário noturno (limitando o pagamento do adicional ao período das 22h às 5h) e, de outro, estabelece o adicional noturno em percentual superior ao mínimo estabelecido no art. 73, 'caput', da CLT. Precedentes da SbDI-1 do TST. Recurso de revista de que não se conhece".

[8] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Agravo de Instrumento em Recurso de Revista n. 0000932-47.2018.5.09.0562. Relatora ministra Dora Maria da Costa; Órgão julgador: Oitava Turma; Data de julgamento: 18.12.2019; Data de publicação: DEJT de 07.01.2020. "EMENTA. AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. RITO SUMARÍSSIMO. LABOR AOS DOMINGOS. REGIME DE TRABALHO 5X1. Segundo o entendimento perfilhado por esta Corte, é devido o pagamento em dobro dos domingos trabalhados na jornada de trabalho 5x1 quando a respectiva folga não coincidir com o domingo em pelo menos uma vez no período máximo de três semanas, haja vista que, em tal sistema de escala, o gozo de repouso semanal coincide com o domingo somente a cada sete semanas, o que não atende a finalidade do artigo 7º, XV, da CF, sobretudo diante do disposto no artigo 6°, parágrafo único, da Lei nº 10.101/2000. No caso, o Regional determinou o pagamento em dobro de um domingo a cada módulo de quatro semanas, excetuados os meses em que houve folga dominical. Neste contexto, inviável o conhecimento do recurso de revista por ofensa ao artigo 7º, XV, da CF. Agravo de instrumento conhecido e não provido".

 é procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho da 5ª Região, professora adjunta da Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito (FBD), CERS, Universidade Católica do Salvador (Ucsal), Universidade Salvador (Unifacs) e das Escolas Judiciais do TRT da 5ª, 6ª, 7ª e 16ª Regiões.

 é juíza do Trabalho no TRT da 5ª Região, mestra em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), pós-doutora pela Universidade de Salamanca, professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito (FBD), EMATRA5, CERS, Centro de Estudos Jurídico Aras (Cejas), Universidade Salvador (Ucsal) e da Escola Judicial do TRT da 5ª, 6ª, 10ª, 13º e 16ª Regiões, diretora da EMATRA5, biênio 2019/2021, membra do Conselho editorial da Revista eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da Quinta Região e da Revista Vistos etc. e do Conselho acadêmico da Enamantra, órgão de docência da Anamatra, coordenadora acadêmica da EJUD5, biênio 2021/2023, autora de livros e artigos jurídicos e ex-professora substituta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2022-jun-19/lacerdae-vale-direitos-fins-negociacao-coletiva