Pedro Henrique Tonin


O mundo do trabalho mudou e, em grande parte, estas mudanças são oriundas da implementação de novas ferramentas de trabalho, como os celulares (e mais tardiamente os smartphones), os computadores, notebooks e outros instrumentos de comunicação e de trabalho.

A prestação de serviço em local externo ao ambiente da empresa não é uma novidade na legislação brasileira, pois antes mesmo de a lei 13.467/2017 estar vigente, a Consolidação das Leis do Trabalho trazia disposições específicas sobre essas modalidades de trabalho. O art. 6º, por exemplo, igualou o trabalho interno e externo para todos os fins de direito.

Inegável que estas novas formas de organização do trabalho tiveram grande destaque com a crise sanitária causada pela proliferação da covid-19, a tal ponto que até mesmo empresas mais tradicionais foram obrigadas a repensar o seu modus operandi e realocar os seus empregados em suas residências como forma de contenção da disseminação do vírus.

O fato é tão notável que, apesar da irrisória, mas já existente regulamentação sobre o home office, teletrabalho e trabalho remoto, o Governo Federal editou duas MPs específicas e subsequentes para legislar de modo urgente sobre a temática, quais sejam a MP 927/2020 e MP 1.045/2021.

A distinção1 entre o teletrabalho e o home office2, ainda que relevante, parece-nos de menor importância para a discussão que se apresenta neste ensaio, que trata exclusivamente sobre o direito de empregados submetidos a estes regimes se desconectarem de seus respectivos ambientes de trabalho após o término da jornada de trabalho convencionada.

Embora ainda não possamos nos alegrar com o arrefecimento da pandemia da covid-19 no Brasil, em outros países, como os Estados Unidos da América, há notícia sobre grupos representativos de empregados que se demonstraram descontentes com as determinações de retorno ao trabalho presencial nos escritórios das empresas3.

Ao mesmo tempo, verificou-se uma inversão do fenômeno denominado como "presenteísmo", caracterizado pela imposição, direta ou indireta, velada ou aberta, para que empregados estejam cada vez mais presentes em seu ambiente de trabalho.

A utilização da palavra "inversão" é proposital, pois se notou que, diante da impossibilidade de pleno retorno às atividades presenciais, bem como da adoção de regimes híbridos de trabalho (presencial e online) pelas empresas, muitos empregados estão sendo cada vez mais pressionados a estarem presentes, ainda que virtualmente:

Agora, o presenteísmo simplesmente se tornou digital: as pessoas estão trabalhando mais tempo do que nunca, respondendo e-mails e mensagens a qualquer hora do dia para mostrar o quão "comprometidas" estão. E, à medida que os chefes convocam os funcionários a voltar ao escritório, crescem evidências de que talvez não tenhamos saído mesmo do modo presenteísmo4.

O mundo do trabalho mudou e, em grande parte, estas mudanças são oriundas da implementação de novas ferramentas de trabalho, como os celulares (e mais tardiamente os smartphones), os computadores, notebooks e outros instrumentos de comunicação e de trabalho.

É inegável que um sem-número de empregados trabalham sem se valer destes mecanismos, especialmente na indústria e em outros setores que demandam menor contato com estas ferramentas tecnológicas, mas também é verdade que outros setores sofrem as consequências imediatas destas inovações.

Uma delas, certamente, é a dificuldade de o empregado se desconectar de seu ambiente de trabalho, estando ou não inserido fisicamente no contexto dos grandes escritórios da empresa:

Nesse contexto, o uso das TIC (Tecnologia da Informação e Comunicação) ampliou a imersão do empregado no trabalho, impedindo a sua desconexão, mesmo quando esse se encontra em período destinado ao descanso, devido ao uso incessante de equipamentos telemáticos, como celulares, tablets e notebooks. Dessa forma, o trabalhador que está conectado por esses mecanismos, pode ser contatado por seu empregador diuturnamente, por exemplo, através de mensagens via WhatsApp, e-mails, telefonemas, recados via Facebook, SMS, entre outros5.

A concepção da dificuldade de se desconectar do ambiente de trabalho é importante, mas também demanda um exercício de reflexão, segundo o qual o ambiente de trabalho moderno não mais pode ser entendido como a estrutura física, mas sim pelos elementos que compõem as condições, materiais ou não, para a execução das atividades e tarefas oriundas do contrato de trabalho:

O meio ambiente de trabalho, repita-se, não está adstrito ao local, ao espaço, ao lugar onde o trabalhador exerce suas atividades. Ele é constituído por todos os elementos que compõem as condições (materiais e imateriais, físicas ou psíquicas) de trabalho de uma pessoa6.

Considerando, portanto, que o conceito próprio de ambiente de trabalho é outro, diante das inovações tecnológicas inseridas no mercado de trabalho, bem como que a utilização destes novos instrumentos de trabalho tem causado grandes discussões a respeito do direito à desconexão, é importante entendê-lo. 

O direito à desconexão, em linhas gerais, pode ser conceituado como o direito de o empregado se desconectar de seu ambiente de trabalho (material ou imaterialmente), tendo respeitado os estreitos limites de sua jornada de trabalho e, consequentemente, seus momentos de descanso e lazer.

Em outras palavras, também pode ser entendido como:

O direito à desconexão do ambiente de trabalho é inerente a todo e qualquer empregado e consiste no "desligamento", na desconexão, como o próprio nome sugere, tanto físico ou mental, do empregado ao ambiente em que trabalha. O direito à desconexão é antes de tudo fator de resgate da natureza humana que na era da conexão em tempo integral encontra-se comprometida pelo uso indiscriminado no ambiente laboral das ferramentas telemáticas7.

Ele não está, no entanto, disciplinado em nossa legislação, de modo que não há nenhuma menção expressa ao "direito à desconexão" na Consolidação das Leis do Trabalho ou na Constituição da República Federativa do Brasil.

É, na melhor das hipóteses, tido como um "direito inespecífico", oriundo da interpretação sistemática de outros direitos fundamentais, tais como a limitação da jornada diária e semanal de trabalho, o direito ao descanso, à intimidade e ao lazer, todos de alçada constitucional.

Relevante, assim, não apenas porque encontra - direta e indiretamente - respaldo em nosso texto constitucional, mas também por sua importância social, na medida que impõe sérios limites ao poder diretivo e à típica subordinação do empregado ao seu empregador.

Curioso e significativo o posicionamento de João Leal Amado, segundo o qual o direito à desconexão, antes de ser conceituado como direito de todo empregado, deve ser entendido de modo inverso, ou seja, como dever do empregador de não conectar seus empregados ao ambiente de trabalho por típica imposição empresarial:

Pelo contrário, a obrigação de não perturbar, de não incomodar, recai sobre a empresa. O trabalhador goza, assim, de um "direito à não conexão" (dir-se-ia: de um right to be let alone) por parte da empresa, de um do not disturb! resultante do contrato de trabalho e da norma laboral aplicável. Sobre a empresa é que recairá, portanto, um "dever de não conexão profissional" fora da jornada de trabalho, fora das balizas representadas pelo horário de trabalho - por isso mesmo que, em princípio, o período de descanso, para o ser verdadeiramente, deve corresponder a um tempo de desconexão profissional8.

No Código do Trabalho de Portugal, ao contrário da legislação brasileira, estabeleceu-se expressamente a obrigação de o empregador respeitar a privacidade do trabalhador e os seus períodos de descanso, inclusive para a sua recuperação física e psíquica:

Art. 170º - Privacidade de trabalhador em regime de teletrabalho.

1 - O empregador deve respeitar a privacidade do trabalhador e os tempos de descanso e de repouso da família deste, bem como proporcionar-lhe boas condições de trabalho, tanto do ponto de vista físico como psíquico.

2 - Sempre que o teletrabalho seja realizado no domicílio do trabalhador, a visita ao local de trabalho só deve ter por objecto o controlo da actividade laboral, bem como dos instrumentos de trabalho e apenas pode ser efectuada entre as 9 e as 19 horas, com a assistência do trabalhador ou de pessoa por ele designada.

3 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto neste artigo9.

Inovação legislativa prudente e coerente com as atuais necessidades de respeito ao direito à desconexão/direito a não ser conectado.

Por termos consciência que a utilização da força de trabalho resulta inevitavelmente em cansaço físico e psicológico, entende-se por bem pela necessidade de adequação do ambiente e da forma de trabalho para que os riscos e as comuns lesões à saúde física e mental sejam minimizados.

Os benefícios desta nova cultura de trabalho, segundo a qual há claro respeito aos períodos de descanso e lazer dos empregados, atingem de forma igual e razoável empregados e empregadores, pois é certo que empregados descansados, física e psicologicamente saudáveis, são mais produtivos, geram menores gastos com afastamentos previdenciários e têm maior sentimento de pertencimento à empresa.

Deste modo, reconhecer o direito à desconexão (ou o right to be let alone) como direito fundamental, ainda que inespecífico, derivado de outros direitos igualmente relevantes, é importante para que o mundo do trabalho atinja patamares importantes de civilidade e respeito à privacidade, intimidade, ao descanso e ao lazer das pessoas.

Célio Pereira Oliveira Neto também faz lúcidos e importantes comentários sobre esse tema, demonstrando, em resumo, que a tecnologia deve servir ao ser humano, não o contrário:

O mundo está em um click, os smartphones, e-mails e outras formas contemporâneas de comunicação, estão fazendo com que a sociedade da informação trabalhe mais do que os antepassados, e pior, sem a desconexão com o trabalho, gerando prejuízo direto à saúde, além das diversas patologias modernas, do que a depressão, e especialmente a ansiedade representam formas típicas. Não se pode permitir que a tecnologia piore a vida do homem, deve ocorrer o contrário. Nesse sentido, a Quarta Revolução Industrial deve vir acompanhada da evolução do direito visando a preservação dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Dessume-se, pois, que o direito de desconexão não pode ser vilipendiado pelas novas tecnologias comunicacionais que permitem trabalho móvel em qualquer lugar do planeta10.

O não reconhecimento desta importância, além de negar uma necessária discussão do presente, impede o amadurecimento de ideias imprescindíveis para o futuro do trabalho, tendo em vista que o horizonte já demonstra que as relações de trabalho serão cada vez mais virtuais.

Isso não significa, no entanto, que empregados possam ser submetidos a ambientes de trabalho psicológica e fisicamente degradantes ou até mesmo a jornadas de trabalho excessivamente prolongadas, mesmo que virtuais.

Na realidade, deve-se buscar a equalização entre estes novos ambientes e formas de trabalho com o redimensionamento e o resgate da condição humana e de todos os seus consectários, sob pena de desnecessário e desproporcional enrijecimento das relações humanas e trabalhistas.

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1 Disponível aqui. Acesso em 16/7/2021.

2 Home office e teletrabalho: a importância da adequação terminológica. Acesso em 16/7/2021.

3 Disponível aqui. Acesso em 16/7/2021.

4 Disponível aqui. Acesso em 8/9/2021.

5 LAMBERTY, Andrey Oliveira; GOMES, Thais Bonato. O direito à desconexão do empregado e o teletrabalho: uma análise das alterações trazidas pela lei 13.467/2017. IN: 4º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede, p. 2, ano 2017.

6 MELO, Sandro Nahmias. Teletrabalho, controle de jornada e direito à desconexão. Revista LTr: legislação do trabalho, São Paulo, v. 81, n.9, p. 77, ano 2017.

7 MELO, Sandro Nahmias. Teletrabalho, controle de jornada e direito à desconexão. Revista LTr: legislação do trabalho, São Paulo, v. 81, n.9, p. 80, ano 2017.

8 AMADO, João Leal. Tempo de trabalho e tempo de vida: sobre o direito à desconexão profissional. Tempo de trabalho e tempo de vida: sobre o direito à desconexão profissional, p. 263, ano 2018.

9 Disponível aqui. Acesso em 9/9/2021.

10 OLIVEIRA NETO, Célio Pereira. Trabalho em ambiente virtual: causas, efeitos e conformação. 2017. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível aqui.

 

Pedro Henrique Tonin
Advogado, especialista em Direito Processual Civil pela PUC-CAMPINAS, membro do GERTS-FACAMP e membro do GETRAB-USP.

Migalhas

https://www.migalhas.com.br/depeso/351619/o-mundo-do-trabalho-e-o-direito-a-desconexao