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O período reclama reflexões sobre os motivos que ensejaram a designação de uma data específica para debates sobre a desigualdade de gênero e acerca das razões que levam à persistência desse quadro. Em que pese comercialmente a data seja explorada para a venda de presentes suspostamente ligados ao universo feminino, é indispensável que as causas políticas e sociais, que são a verdadeira essência da "comemoração", estejam no centro das discussões.

Assim, deve-se debater a necessária superação de estereótipos e de vieses tradicionais de gênero e raça, as relações assimétricas de poder, o machismo estrutural e organizacional, o patriarcado e os caminhos para o reconhecimento de igualdade material, como dever de não discriminação, imposto não só pela Constituição de 1988, como também pela Convenção Americana de Direitos Humanos e por outras convenções internacionais, diplomas aos quais o Brasil e demais Estados-partes estão vinculados.  

Nesse sentido, a fim de que as legítimas reinvindicações, que devem ser permanentes, não sejam subjugadas por questões que não se relacionam com as lutas e conquistas por igualdade de gênero e também com as barreiras que ainda limitam a atuação das mulheres na política, na economia, na sociedade e no trabalho, a data deve ser priorizada para a divulgação de pesquisas, análises estruturais, estatísticas, econômicas e da legislação, assim como de marcadores sociais para a proposição de políticas privadas e públicas e para as necessárias mudanças cultural, postural e prática.

Diante de tal quadro, não podemos nos afastar da alta violência que permeia os lares, a sociedade e o trabalho, praticada por diversas formas, seja a violência psicológica, física e até velada, além dos relacionamentos abusivos, que vitimam milhares de mulheres todos os dias, independentemente da sua classe social, nível de instrução, etnia, aparência ou orientação sexual. Não podemos perder de vista a imensa desigualdade salarial entre homens e mulheres, ainda mais aprofundada quando vista sob o prisma racial, com diferenças abissais entre os ganhos de homens brancos e mulheres negras. Não podemos nos esquecer da divisão sexual dos serviços domésticos e das tarefas de cuidado, que geralmente ficam mais a cargo de mulheres do que de homens, sem contar os incontáveis lares brasileiros que são chefiados apenas por mulheres. Não podemos deixar de dar voz às mulheres que sofrem diversos tipos de discriminação, por serem negras, pobres, homossexuais, entre outras características.

No que respeita aos desafios para o trabalho da mulher no século 21, além de todas as particularidades já mencionadas, denota-se o grande abismo no mercado de trabalho causado pela pandemia da Covid-19.

Segundo reportagem especial sobre o Dia Internacional da Mulher, divulgada no dia 5 de março pela Organização Internacional do Trabalho, houve queda sem precedentes da taxa de participação laboral feminina e acentuado aumento do desemprego, o que torna urgente a implementação de políticas para uma maior igualdade de gênero no trabalho, como "componente-chave das estratégias de recuperação", pós-pandemia da Covid-19.

Ainda segundo a OIT, os planos de recuperação do mundo do trabalho após a pandemia na América Latina e no Caribe devem incluir medidas especiais que favoreçam a reincorporação no mercado de trabalho das mulheres, em razão de crise sanitária e humanitária gerada pela Covid-19 ter provocado perda em massa da força de trabalho das mulheres, desemprego e grandes demandas por cuidados não remunerados.

É certo que a desigualdade de gênero já era alarmante no mercado de trabalho, desafiando a superação de obstáculos para a implementação de políticas trabalhistas inclusivas, confrontadoras das raízes estruturas que impõem barreiras à maior participação feminina, porém, a pandemia trouxe à tona a fragilidade da inserção da força de trabalho da mulher, diante de contextos econômicos precários ou instáveis.

De acordo com a OIT, a retomada econômica e a recuperação da crise do trabalho deve, desde logo, considerar a ampliação das desigualdades geradas pela Covid-19 para o alcance de empregos produtivos e de qualidade, não só pela necessária observância da igualdade de gênero, mas, sobretudo, para minimizar os retrocessos que a pandemia trouxe em termos sociais e econômicos, principalmente para as mulheres. 

Segundo a reportagem divulgada pela OIT, os dados disponíveis apontam que, em 2020, a taxa de participação feminina sofreu abrupta queda, seja pelo afastamento do mercado de trabalho ou pelo desemprego, atingindo 13,1 milhões de mulheres na América Latina e no Caribe, em momento em que os níveis de desemprego já eram significativos, envolvendo cerca de 12 milhões de mulheres, antes da pandemia. Assim, segundo o estudo divulgado, cerca de 25 milhões de mulheres estão desempregadas ou fora do mercado de trabalho atualmente na região, devido à afetação mais direta pela crise, de setores como o comércio e serviços, onde a presença feminina é bastante significativa.

A OIT identificou, ainda, as crescentes dificuldades conciliatórias entre o trabalho remunerado das mulheres e as possibilidades familiares, no contexto pandêmico, em razão da suspensão dos serviços de educação e das tarefas de cuidado de crianças, idosos e doentes, face às medidas de distanciamento social, muito mais afeta às mulheres do que aos homens, com reflexos negativos no teletrabalho e no trabalho em domicílio.

Nesse contexto e tendo em vista a grave crise econômica, haverá maior dificuldade de reinserção das mulheres no mercado de trabalho, o que reclama respostas políticas, sociais e trabalhistas com perspectiva de gênero, para a recuperação equitativa dos mercados de trabalho das mulheres.

Quanto ao papel do Poder Judiciário Trabalhista, não se pode desconsiderar as dificuldades na produção de provas nos processos em se que discute, por exemplo, assédio moral em razão de gravidez, casamento ou metas inatingíveis pela condição pessoal, assédio sexual e outras questões que podem estar ligadas, devido às suas especificidades, ao universo feminino.

Diante de tal quadro, essencial o julgamento com perspectiva de gênero e também com recorte racial, para ampliação do acesso à Justiça, a fim de que a aplicação das normas não gere efeitos desproporcionais.

Nesse sentido, importante destacar o julgamento, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, do caso da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus vs Brasil (2020), com a responsabilização do Brasil pela violação de direitos e garantias fundamentais de crianças e adolescentes negras que estavam trabalhando e foram, em maioria, vítimas da explosão do estabelecimento, em 1998, com o reconhecimento da violação aos direitos, às garantias judiciais e à proteção judicial, pois nos processos civis, penais e trabalhistas conduzidos no caso o Estado não garantiu as respectivas reparações. De forma emblemática, a Corte Interamericana se referiu à relevância da interseccionalidade como medida efetiva de acesso à Justiça e sobre a consideração da pobreza estrutural como fator de prejuízo ao reconhecimento de direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos. A corte assentou a necessidade de incorporação de cultura de não discriminação para o verdadeiro alcance do acesso à Justiça, mediante o reconhecimento de igualdade material.

Nesse quadro, é essencial que o Poder Judiciário esteja atento, a fim de interpretar e aplicar a legislação com base na Constituição, sobretudo com inspiração na valorização da dignidade humana e reconhecimento da igualdade material, como dever de não discriminação. Para tanto, é relevante considerar o afastamento de estereótipos que podem contaminar a produção de provas; reconhecer a maior dificuldade da prova em situações de violências, de poder e em questões indissociavelmente ligadas ao universo feminino e verificar, se diante dessa dificuldade, a prova produzida é suficiente para o julgamento com perspectiva de gênero, para a ampliação do conteúdo probatório, quando cabível.

Assim, o Poder Judiciário poderá deixar de reproduzir, em alguns casos, estereótipos, relações assimétricas de poder ou de reafirmar estruturas organizacionais desiguais e fundadas em alicerces intolerantes ou preconceituosos.

 é juíza do Trabalho da 6ª Região, doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB, mestre em Processos Constitucionais pela UFPE, diretora de Formação e Cultura da Anamatra e da Enamatra (biênio 2019-2021), diretora de Prerrogativas da Amatra 6 (biênio 2020-2022) e professora da Esmatra 6.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2021-abr-13/conforti-justica-trabalho-igualdade-genero