Fato é que tal debate ainda se avizinha de nossa realidade, no momento em que a sociedade brasileira precisa discutir a efetividade das medidas tomadas em relação a pandemia de COVID-19.

Ainda se discute na Medicina e no Direito se as gestantes e puérperas estão sujeitas a maiores riscos de contágio pelo novo coronavírus ou de acometimento de sequelas graves oriundas da COVID-19 e se demandam cuidados preventivos especiais.

A polêmica acirrou-se com a Portaria Conjunta 20/20 do Min. da Saúde e da Secr. Especial da Previd. e Trabalho, pois incluiu somente as gestantes com gravidez de alto risco, excluindo as demais. De acordo com os itens 2.11.1, 6.1 e 6.1.1 da Portaria, apenas as gestantes com gravidez de alto risco devem receber atenção especial dos empregadores, com priorização de trabalho não presencial ou com contato reduzido com o público e com colegas.

Ante a insegurança jurídica causada e visando contribuir com o debate jurídico, mas sem qualquer pretensão de esgotar o tema, resolvemos expor os entendimentos divergentes dos autores, de modo dialético, permitindo aos leitores que estabeleçam suas conclusões sobre a questão posta.

Todas gestantes integram o grupo de risco1

Apesar da omissão legal, entendemos que a questão merece uma análise mais acurada e sistemática, à luz da Constituição, em consonância com a tutela integral do nascituro, e da proteção especial à gestante.

De início, cabe destacar que alguns documentos do próprio Min. da Saúde admitem que todas as grávidas e puérperas merecem cuidados especiais na prevenção contra a contaminação pelo novo coronavírus: (i) Nota Técnica 12/20, itens 2.5 e 2.62; (ii) Protocolo de Manejo Clínico da COVID-19 na Atenção Especializada3.

A comunidade médico-científica é uníssona ao reconhecer que as condições de gestantes e puérperas, assim como as crianças nos primeiros meses de vida, enquadram-se nos grupos com condições e fatores de risco para complicações de influenza (síndrome gripal e síndrome respiratória aguda grave)4 5.

Outro ponto precisa ser frisado: independentemente de se confirmar que as demais grávidas não se sujeitam a complicações mais severas ou que a COVID-19 não se transmite da mãe ao feto, é incontestável que todas as gestantes demandam maiores cuidados em relação aos demais indivíduos em geral.

Isso porque a letalidade média da COVID-19 do Brasil, até 25/7/20, era de 3,6%, sendo que, em alguns locais, chegava a quase 10%, como, p. ex., no estado do RJ, cuja letalidade até a mesma data era de 8,19%6.

Logo, pode-se afirmar que, se uma gestante (fora dos grupos de gravidez de risco) se acometer de COVID-19, ela tem, em média 3,6% de chance de vir a óbito, pondo em sério risco, também, a vida do nascituro. Se residir no estado do RJ o índice chega a 8,19%.

Ademais, estudo revelam que 10% a 15% de todos os infectados desenvolvem casos críticos da doença, necessitando de ventilação mecânica, sendo que parte desse grupo precisa de internação em UTIs7. Portanto, a partir de tais dados, se uma grávida com COVID-19 tem 10% a 15% de ser internada, percebe-se que há grande chance de as vidas da mãe e do feto se submeterem aos riscos decorrentes da internação dentro do ambiente hospitalar por tempo considerável, inclusive os notórios riscos de infecções hospitalares.

A CF confere especial proteção às gestantes, consagrando a proteção à maternidade como direito social (art. 6º), garantindo às gestantes e das puérperas a licença-maternidade (art. 7º, XVIII) e o salário-maternidade (art. 201, II). Também merece destaque o art. 10, II, b, ADCT, que prevê a garantia de emprego desde a concepção até cinco meses após o parto.

Destaca-se que o princípio da tutela integral da criança também se encontra cristalizado nos artigos 6º e 227 da CF.

Ainda, o art. 7º, XXII, da CF proclama como direito fundamental dos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

No âmbito internacional, não são poucas as normas que elevam a proteção das gestantes, puérperas, assim como aos nascituros e aos neonatos, lembrando que tais normas têm status de supralegalidade, conforme entendimento firmado pelo STF, destacando-se as Conv. 102 e 103 da OIT, bem como a Conv. Internacional sobre os Direitos das Crianças, a qual, no art. 6º, prescreve que os Estados Partes assegurarão ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança.

Na mesma linha, nos artigos 391 a 400 da CLT, regulam-se vários direitos das empregadas grávidas, entre os quais a transferência de função quando as condições de saúde exigirem (392, § 4º, I), a faculdade de romper o contrato quando prejudicial à saúde (394) e o afastamento de atividades insalubres (394-A).

Ao analisar a constitucionalidade do art. 394-A da CLT na ADI 5938, o STF ressaltou a imprescindibilidade de se atribuir máxima efetividade à tutela integral a todos os nascituros e recém-nascidos, assim também a todas as gestantes e lactantes, para afastá-los de qualquer situação de risco ou gravame à saúde e bem-estar, ainda que subsista cizânia científica quanto à existência ou não de riscos mais acentuados aos referidos grupos de pessoas.

Estamos tratando sobre os riscos que o meio ambiente do trabalho impõe às gestantes, razão pela qual a questão deve ser examinada, também, pelo prisma dos princípios do Direito Ambiental, lembrando que o meio ambiente do trabalho integra o meio ambiente, conforme expressamente estampado no art. 200, VIII, da CF.

Entre outros princípios, ressaltamos os da prevenção e da precaução, consagrados nos artigos 7º, XX, e 225, caput, e § 1º, V, da CF e na Decl. do Rio de 92

Pelo princípio da prevenção, o Poder Público, os agentes econômicos e a sociedade devem adotar todas as medidas possíveis para afastar os riscos conhecidos de degradação ao meio ambiente.

Já o princípio da precaução impõe a antecipação de medidas de cautela, antes mesmo de se ter plena certeza sobre os riscos, quando as consequências decorrentes da eventual concretização dos riscos acarretarem danos irreversíveis ou graves. Portanto, ainda que não haja absoluto conhecimento acerca dos riscos à saúde e à vida das gestantes e nascituros, devem os empregadores tomar todas as cautelas possíveis para afastá-las do contágio pelo novo coronavírus, pois os eventuais e potenciais danos podem ser extremamente graves e irreversíveis, até mesmo fatais.

Como último argumento, trazemos uma provocação extrajurídica, para estimular a reflexão sobre matéria: caso, hipoteticamente, sua esposa, companheira, filha, nora, neta ou alguma pessoa próxima estivesse grávida (fora dos casos de gestação de alto risco), você a convenceria ou encorajaria a trabalhar presencialmente, em contato com colegas e clientes, durante pandemia?

Muito além dos fundamentos jurídicos, temos que a questão pode ser respondida apenas com as noções éticas de empatia e solidariedade.

Gestantes não integram o grupo de risco8

A gravidez é um momento especial, cheio de emoção e antecipação e qualquer análise que se faça sobre esse tema irá ser permeado por esses sentimentos, entretanto, a análise aqui feita busca uma abordagem a partir do referencial da legislação trabalhista e demais institutos jurídicos aplicáveis, sob esse prisma, folgamos em dizer que não, grávida não deve ser considerada integrante do grupo de risco para COVID-19.

O STF, intérprete máximo e guardião da Constituição, no julgamento do RE166772-9-RS, relatado pelo Min. Marco Aurélio, assentou que a atividade interpretativa não pode levar:

... ao desprezo do sentido vernacular das palavras, muito menos ao do técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito. Toda ciência pressupõe a adoção de escorreita linguagem, possuindo os institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam conceito estabelecido com a passagem do tempo, quer por força de estudos acadêmicos, quer, no caso do Direito, pela atuação dos Pretórios.9

Já no tocante à extensão da carga construtiva na atividade interpretativa, o mesmo julgado assinala:

Se é certo que toda interpretação traz em si carga construtiva, não menos correta exsurge a vinculação à ordem jurídico-constitucional. O fenômeno ocorre a partir das normas em vigor, variando de acordo com a formação profissional e humanística do intérprete. No exercício da gratificante arte de interpretar, descabe inserir na regra de direito o próprio juízo - por mais sensato que seja -sobre a finalidade que conviria fosse por ela perseguida - Celso Antônio Bandeira de MELLO - em parecer inédito. Sendo o Direito uma ciência, o meio justifica o fim, mas não este àquele.

Portanto, não é possível ignorar o que foi expressamente declarado na Portaria Conjunta (Min. da Economia/Secretaria Especial de Previdência e Trabalho) 20/20 que "estabelece as medidas a serem observadas visando à prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da COVID-19 nos ambientes de trabalho".

A Portaria nos traz, oficialmente, uma luz legal ao estabelecer conceitualmente quem é ou não grupo de risco. Veja a redação do 2.11.1 do anexo I:

São consideradas condições clínicas de risco para desenvolvimento de complicações da COVID-19: cardiopatias graves ou descompensadas (insuficiência cardíaca, infartados, revascularizados, portadores de arritmias, hipertensão arterial sistêmica descompensada); pneumopatias graves ou descompensadas (dependentes de oxigênio, portadores de asma moderada/grave, Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica - DPOC); imunodeprimidos; doentes renais crônicos em estágio avançado (graus 3, 4 e 5); diabéticos, conforme juízo clínico, e gestantes de alto risco. (Grifo nosso)

Percebe-se, portanto, que apenas a gestante de ALTO RISCO está elencada como grupo de risco.

Além disso, documento do Min. da Saúde - o mesmo que aponta que todas as grávidas e puérperas merecem cuidados especiais na prevenção contra a contaminação pelo novo coronavírus: Nota Técnica 12 de 2020, itens 2.2 e 2.410 - deixa claro que estudos recentes apontaram que a evolução da COVID-19 não parece ser pior nas mulheres antes, durante e após o parto.

O que nos parece vir ocorrendo, é uma confusão entre a situação de grávidas sem comorbidades e grávidas com comorbidades, a Nota Técnica aponta que com base na observação dos altos índices de complicações, incluindo mortalidade, em mulheres no ciclo gravídico-puerperal com infecções respiratórias, sejam elas causadas por outros coronavírus (SARS-CoV e MERS-CoV), ou pelo vírus da influenza H1N14,5, é sensata a preocupação em relação a infecção pelo SARS-CoV-2 nesta essa população. Ou seja, somente aquelas que possuem doenças respiratórias preexistentes estão enquadradas no grupo de risco e tem índice de complicações que merece atenção especial de modo antecipado.

Alie-se a isso, que os estudos sobre COVID-19 e gravidez não são definitivos e estão em constante atualização e não há certezas quanto ao tema. Existem estudos e opiniões em todos os sentidos, tanto que publicações científicas e órgãos de saúde de renome chegam a conclusões absolutamente diversas, podemos citar como contraponto aos estudos citados nos tópicos anteriores relatórios da missão conjunta da OMS na China, que observou 64 mulheres grávidas e mostrou que as grávidas tiveram risco similar de desenvolvimento da positivas1 para o SARS-Cov-2 e concluiu que o desenvolvimento da doença em grávidas não é diferente do restante da população11.

Outro estudo, dessa vez realizado nos EUA, confirmou os resultados obtidos na China mostrando que gestantes tiveram risco similar de desenvolver a versão crítica da doença, ao grupo de não-grávidas. Foram 86% dos casos leves, 9,3% de casos graves e 4,7% foram situações críticas entre as gestantes12. O número é muito parecido com outro estudo chinês feito com 44 mil casos confirmados da população em geral: 80% de casos leves, 15% graves e 5% críticos. Portanto, não existem estudos suficientes ou mesmo tempo hábil para o amadurecimento das conclusões médicas sobre o tema.

Abordando o viés constitucional da discussão, vale lembrar que no Estado Democrático de Direito não há que se falar em nenhum direito de modo absoluto, o direito à vida e a saúde, embora sejam direitos de todos, não são intocáveis e não recebem atenção maior que os demais bens constitucionalmente tutelados, ou seja, a colisão de direitos gera uma necessária restrição de algum deles em determinadas situações, sendo que a principal forma de controle às restrições aos direitos fundamentais é a regra da proporcionalidade, a qual possui uma estrutura racional definida que se traduz na análise de suas três sub-regras (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), este é a base da qual o STF se serve, ou uma simples análise de compatibilidade entre meios e fins;

Assim, pode-se defender que considerar a gravidez por si só, como motivo para inclusão em grupo de risco para COVID-19, sem que a Lei, portaria, NR's ou qualquer outro expediente hábil expressamente determine inclusão, incorreria em violação princípio da legalidade, criando obrigação que a própria Lei não conveniou criar.

Nesse ponto, chamamos atenção para o PL 3932/20, o qual torna obrigatório o afastamento da gestante do trabalho presencial enquanto estiver vigente o estado de calamidade pública reconhecido pelo Congresso Nacional em razão da pandemia provocada pelo novo coronavírus. Conforme o texto em tramitação na Câmara dos Deputados, a gestante ficará à disposição para trabalho remoto

A CF/88 deu imensa liberdade ao legislador quanto à decisão de legislar ou não, ou, pelo menos, de decidir quando legislar. Implica dizer que o silêncio legislativo é uma opção política tolerada e nesse caso, a omissão até a presente data, com PL específico em tramitação, torna claro a que não houve atribuição de obrigatoriedade ao afastamento de gestantes que não possuam qualquer comorbidade. O silêncio legislativo nesse caso é "eloquente", não deixa qualquer dúvida que a situação não está regulada.

No âmbito internacional, recentemente a OIT publicou nota de orientação para "Um retorno seguro e saudável ao trabalho durante a pandemia da COVID-19" (Safe and healthy return to work during the COVID-19 pandemic)13, nesse documento a organização destaca que, para ajudar a revitalizar as empresas e as economias o mais rápido possível, os trabalhadores terão que cooperar com essas novas medidas. Isso significa que o diálogo social será de particular importância, pois é a maneira mais eficaz de traduzir informações e ideias em políticas e ações, criando assim as melhores condições para uma recuperação rápida e equilibrada, sublinhou Deborah Greenfield, Diretora-Geral Adjunta de Políticas da OIT.

Segundo o documento, para as pessoas que trabalham em casa, o risco de infecção no contexto de trabalho pode ser eliminado; já para aquelas que retornam aos locais de trabalho, deve-se priorizar opções que substituam situações perigosas por menos perigosas, como substituir reuniões presenciais por virtuais. Quando isso não for possível, será necessária uma combinação de medidas de controle técnico e organizacional para evitar o contágio.

As medidas específicas a serem aplicadas dependem de cada local de trabalho, mas podem consistir na instalação de barreiras físicas, como vitrines de plástico transparente, melhoria da ventilação ou adoção de horários flexíveis de trabalho, além de práticas de limpeza e higiene. As diretrizes também destacam que o uso de equipamento de proteção individual apropriado pode ser necessário para complementar outras medidas, principalmente para as ocupações mais perigosas, e que esse equipamento deve ser fornecido gratuitamente aos trabalhadores e às trabalhadoras.

Por fim, destaca-se que mundialmente caminha-se para o retorno paulatino das atividades e postos de trabalho habituais, no Brasil, ao contrário, ainda nos debruçamos sobre enquadramentos em grupo de risco ao invés de nos preocuparmos com alternativas voltadas para o agora.

Visando contribuir com o debate, mas sem qualquer pretensão de esgotar o tema, expusemos posicionamentos divergentes entre si, de modo dialético, possibilitando que os leitores reflitam e estabeleçam suas conclusões acerca da questão posta.

Sustenta-se, no capítulo 2 deste trabalho que, apesar do teor do disposio do item 2.11.1 da Portaria Conjunta 20/20, todas as gestantes - e não apenas as com gravidez de alto risco - fazem parte do grupo de risco da COVID-19 e, portanto, demandam atenção especial dos empregadores.

De outro lado, conforme defendido no capítulo 3 deste ensaio, não é possível realizar interpretação extensiva de dispositivos contidos na Portaria Conjunta 20/2020, pois, tal situação criaria verdadeira usurpação de competência do poder legislativo e feriria frontalmente o princípio da legalidade contido em nossa CF.

Fato é que tal debate ainda se avizinha de nossa realidade, no momento em que a sociedade brasileira precisa discutir a efetividade das medidas tomadas em relação a pandemia de COVID-19 e, sobretudo, buscar o desenvolvimento social em acepção ampla, sendo que o Judiciário será chamado a preencher as lacunas que eventualmente identificadas, seja pela necessidade de respostas a problemas únicos e nunca imaginados pelo Legislativo ou pela busca de efetivação de direitos fundamentais.

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1 Argumentos por Vinícius de Miranda Taveira.

2 Clique aqui. 25/7/20

4 Protocolo de Tratamento de Influenza 2017. 25/7/20

5 PASTORE, Ana Paula Winter; PRATES, Cibeli; GUTIERREZ, Lucila Ludmila P.. Implicações da influenza A/H1N1 no período gestacional. In: Scientia Medica. (Porto Alegre) 2012. Vol. 22, núm. 1. p. 56. Disponível aqui. 27/7/20

6 Clique aqui. 25/07/2020

7 RJ tem a maior taxa de letalidade da Covid-19 no país, diz estudo. 26/7/20

8 Argumentos por Rafael Lara Martins

9 Clique aqui. 14/9/20

10 Clique aqui. 14/9/20

11 Gravidez e coronavírus  14/9/20

12 Clique aqui. 14/9/20

13 Diponível em aqui. Acesso em 14/9/20.

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*Rafael Lara Martins é advogado. Mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas. Doutorando em Direitos Humanos. Conselheiro Federal da OAB, Diretor-Geral da Escola Superior de Advocacia da OAB/GO. Vice-presidente da Comissão Nacional de Compliance do Conselho Federal da OAB.

*Vinícius de Miranda Taveira é juiz do trabalho do TRT15. Especialista em Direito Público. Mestrando em Função Social do Direito.

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https://migalhas.uol.com.br/depeso/335305/quais-gestantes-integram-o-grupo-de-risco-da-covid-19--ponto-e-contraponto