OPINIÃO

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O Direito Portuário encontrou na Lei  8.630/1993 seu grande marco, já que foi com a referida Lei dos Portos ou Lei de Modernização dos Portos (LMP) que o setor portuário sofreu importante inovação.

Entretanto, cronologicamente, houve a edição da Lei  12.815/2013, cuja finalidade foi regular a exploração pela União dos portos e instalações portuárias e as atividades desempenhadas pelos operadores portuários.

Diante da pandemia declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020, por sua vez, fez-se necessário estabelecer medidas temporárias de enfrentamento à Covid também no âmbito do setor portuário.

Com isso, a Medida Provisória  945/2020 proibiu a escalação pelo Ogmo (órgão gestor de mão de obra) de trabalhadores portuários avulsos que apresentem sintomas compatíveis com o novo coronavírus, que sejam diagnosticados com a doença ou submetidos ao isolamento domiciliar por residir com pessoa diagnosticada com a Covid, que tenham idade igual ou superior a sessenta anos, que sejam diagnosticados com imunodeficiência, doença respiratória ou doença preexistente crônica ou grave, e na hipótese, finalmente, de trabalhadora gestante ou lactante.

Em qualquer das mencionadas hipóteses, caberá ao Ogmo o encaminhamento semanal à autoridade portuária de lista atualizada dos trabalhadores portuários avulsos que estão impedidos de serem escalados, podendo haver a comprovação mediante a apresentação de atestado médico.

Aos trabalhadores impedidos de serem escalados por qualquer dos motivos previstos pela MP  945/2020 haverá o pagamento de indenização mensal correspondente a 50% da média mensal recebida pelo trabalhador portuário avulso no período entre 1 de outubro de 2019 a 31 de março de 2020, enquanto perdurar o afastamento, à exceção das hipóteses de trabalhadores que estejam usufruindo benefício do Regime Geral de Previdência Social ou de regime próprio de previdência social ou que esteja recebendo o benefício assistencial de que trata o artigo 10-A da Lei  9719, de 27 de novembro de 1998.

É cediço que os trabalhos portuários, em regra, são exercidos por trabalhadores portuários avulsos ou por trabalhadores vinculados, estes assim entendidos como aqueles que estabelecem um vínculo de emprego por prazo indeterminado com os operadores portuários ou tomadores de serviços.

Nada obstante, com a publicação da referida Medida Provisória de 4 de abril de 2020, foi prevista a possibilidade de livre contratação de trabalhadores com vínculo de emprego, por tempo determinado, pelos operadores portuários, quando não atendidas as requisições pelo Ogmo quando verificada a situação de indisponibilidade de trabalhadores portuários avulsos para atendimento às requisições.

Referida indisponibilidade diz respeito, por força da MP  945/2020, a qualquer causa que importe no não atendimento imediato às requisições levadas a efeito pelo Ogmo, citando-se, exemplificativamente, as hipóteses de movimentos paredistas, sendo que em tais circunstâncias a contratação dos trabalhadores portuários vinculados não poderá ser por prazo superior a 12 meses.

Não bastasse a previsibilidade da nova forma de contratação do trabalhador portuário (por tempo determinado e nas hipóteses previstas em razão da movimentação de trabalhadores decorrente da Covid), houve proibição expressa quanto à escalação presencial, passando a ser exigido que a escalação de trabalhadores portuários avulsos passe a ser realizada exclusivamente por meio eletrônico, evitando-se assim formas de aglomeração evidentes no setor portuário.

Outra questão nevrálgica a ser enfrentada com a análise da MP  945/2020 refere-se ao trabalhador portuário avulso que tenha idade igual ou superior a sessenta anos e que, por critério absolutamente objetivo, passa a deixar de ser escalado pelo Ogmo, recebendo, em contrapartida, indenização correspondente apenas a 50% da média do montante que recebeu no período de outubro/2019 a março/2020.

A Convenção  111 da OIT, com vigência nacional a partir de 26 de novembro de 1966, veda qualquer distinção, cuja finalidade seja "destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão", e, ao que parece, a seu despeito, a hipótese da vedação etária imposta pela MP  945/2020 representa evidente discriminação no que tange ao livre acesso à profissão.

Ademais, não bastasse a norma constitucional prevista no artigo 7º, inciso VI prevendo a "irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo", há o inciso XXXIV do mesmo artigo prevendo a "igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso", bem como o teor do artigo 7º, inciso XXX prevendo a "proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil".

Veja, que se o trabalhador portuário avulso vinha laborando normalmente, não poderia no momento em que mais necessita, em tese, do seu posto de trabalho — seja em razão da idade que dificulta a recolocação no mercado de trabalho, seja justamente porque em meio à pandemia —, deixar de ser escalado recebendo apenas o valor de "indenização" que sequer se iguala ao montante que vinha recebendo ordinariamente. 

Por outro lado, impõe-se ponderar que a Convenção nº 137 da OIT, ratificada pelo Brasil determina que em todo caso, um mínimo de períodos de emprego ou um mínimo de renda deve ser assegurado aos portuários sendo que sua extensão e natureza dependerão da situação econômica e social do país ou do porto de que se tratar.

Ora, a situação sócio-econômica brasileira, em presente combate à Covid, parece justificar, de início, que trabalhadores portuários avulsos com 60 anos de idade ou mais e mediante indenização correspondente à metade do que vinham percebendo, deixem de ser escalados pelo Ogmo.

Entretanto, ao que parece, a Convenção  137 da OIT somente permite leitura sob a claridade das normas constitucionais principiológicas já mencionadas, que estabelecem a irredutibilidade salarial, a isonomia e a não discriminação.

Outrossim, a garantia da renda mínima na legislação ordinária nacional é deixada à mercê das negociações coletivas. A propósito, é o teor da Lei  12815/2013:

"Artigo 43. A remuneração, a definição das funções, a composição dos ternos, a multifuncionalidade e as demais condições do trabalho avulso serão objeto de negociação entre as entidades representativas dos trabalhadores portuários avulsos e dos operadores portuários.

Parágrafo único. A negociação prevista no caput contemplará a garantia de renda mínima inserida no item 2 do Artigo 2 da Convenção nº 137 da Organização Internacional do Trabalho — OIT".

À luz da legislação infraconstitucional mencionada ao que parece, portanto, não há espaço para redução do montante habitualmente recebido pelo trabalhador portuário avulso sem que haja a participação do sindicato da categoria profissional.

Recentemente o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região afastou, através de liminar concedida em mandado de segurança (MSCiv. 1001147-67.2020.5.02.0000, DEJT de 12/05/2020), a aplicação da Medida Provisória 945/2020, relativamente ao critério etário, garantindo ao trabalhador avulso com idade igual ou superior a 60 anos sua escalação.

A par de toda esta reflexão, porém, estará para alguns (e muitos), sempre a pergunta acerca do custo a ser pago por cada cidadão em meio à pandemia declarada pela OMS e ao seu enfrentamento.

Contudo, ainda sob tal contexto de grave crise sanitária que se atravessa, impõe-se, mais que por toda a leitura lógico-sistemática que se possa fazer em matéria de direito portuário, que não se olvide, por um momento sequer, dos princípios norteadores que reconhecem a todos os cidadãos um mínimo civilizatório garantidor em primeira e última análise da dignidade da pessoa humana que, ressalte-se, precede a toda e qualquer possibilidade de construção da estrutura positivada que se tem na atualidade. 

Lúcia Zimmermann é juíza titular da 1ª. Vara do Trabalho de Jundiaí e juíza auxiliar da Corregedoria Regional do TRT-15.

Revista Consultor Jurídico