OPINIÃO

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Definitivamente, o Brasil não é para amadores.

Essa afirmação nada tem de ideológica, porquanto resultado de uma análise situacional e realista frente aos últimos acontecimentos notórios vividos por todos nós. Em Terra Brasilis, o que está ruim pode sempre piorar, impulsionado pela baixa conscientização política e eleitoral da população, fatores que atualmente parecem servir de cheque em branco para que a desumanização da política una-se à banalização do mal, perfazendo-se em campo fértil para o recrudescimento de períodos autoritários os quais, pensava-se, já estariam superados ou mesmos extintos pelo decurso da nossa história.

Próximo a um ano e meio de mandato, temos como razoavelmente decifrada a trajetória escolhida pelo governo Bolsonaro para comandar a nação rumo ao futuro: obscurantismo e erraticidade.

Sua aposta nada original, provavelmente, baseia-se no "quanto pior, melhor", e infelizmente o caos político para o qual o país aceleradamente já rumava foi sobremaneira catapultado, não pela pandemia da Covid-19, mas por seu enfrentamento omisso, pífio e genocida que, inicialmente liderado pelo governo federal, foi aos poucos sendo abraçado por muitos Estados e municípios, com raras e honrosas exceções. Resultado disso?

Fortíssimo candidato a pior do mundo em quantidade de casos, mortes e baixa qualidade preventiva e reativa aos danos causados pelo vírus — e isso é absurdo, pois somos um dos pouquíssimos países com um sistema universal e gratuito de saúde e poderíamos ter aprendido com outras experiências de combate que nos antecederam —, o Brasil certamente amargará anos e anos de retrocessos socioeconômicos e aprofundamento da reinante instabilidade institucional. Eis uma insensata e deliberada escolha por modalidade de "necropolítica", na qual exerce-se a soberania "no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer""ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder" (MBEMBE, Achile. Necropolítica, 2003).

Mas justiça seja feita: a culpa não é exclusiva do governo Bolsonaro. O cenário de terra arrasada vinha ao menos desde 2013/2014, com o errante governo Dilma, cujo impeachment da líder petista levou-nos a um governo Temer de DNA neoliberalizante, o qual, afundado em escândalo de corrupção, abriu portas para a ascendência de grupo e classe política que exercem seus mandatos com base no ódio e na ampla tentativa da opressão/repressão a tudo e todos que se opõe à sua corrente de ação e pensamento neoconservadora. É de se indagar aos eleitores e apoiadores que acenaram positivamente a essas candidaturas se estão plenamente satisfeitos com suas escolhas ou desejam ver o cenário geral piorar ainda mais para realizarem uma avaliação mais definitiva...

Sem prejuízo disso, no que tange ao governo Bolsonaro, os limites de sua política econômica excessiva e exclusivamente liberal, o desacerto de uma política social asfixiante dos menos favorecidos e de um presidencialismo de confronto restaram inequívocos, porém ainda encontram fortes defensores no mercado e na própria sociedade, representada por grupos cada vez mais radicais, intolerantes e ressentidos.

Após uma série de ruidosos ensaios voltados a abertamente vulnerabilizar ou mesmo solapar a ordem democrática, institucional e constitucional do país — com direito a ataques ao prédio-sede do Supremo Tribunal federal, com o uso de fogos de artifício de grupo extremista simpatizante ao governo — finalmente parte da sociedade civil — vide novos movimentos suprapartidários "Estamos Juntos", "Somos 70 porcento", "Basta!", entre outros — e algumas das instituições políticas fundamentais da República começaram a reagir, colocando no radar a importância de desenvolvermos antídotos voltados ao exercício da legítima defesa do Estado de Direito e da ordem democrática brasileira.

Se as ações e omissões do governo Bolsonaro não são ainda suficientes para que todos possam nele vislumbrar traços marcantes de autoritarismo e desprezo pelas instâncias políticas essenciais da democracia, parece claro que a rota escolhida é a da contínua instalação de um populismo hiperpresidencialista, voltado à destruição dos inimigos, promoção generalizada da instabilidade institucional e erosão das liberdades públicas fundamentais, como liberdade de expressão, de imprensa, pensamento e de reunião.

Usualmente o hiperpresidencialismo aflora para tornar o chefe do Executivo o líder supremo e único da nação, que passa a cooptar e desprezar os demais poderes e instituições públicas — mormente o Legislativo —, caminhando, assim, para um exercício autocrático do poder. Um hiperpresidente não tolera limites ou contenções advindos do legítimo exercício da ação de outros poderes.

Mas nem tudo parece perdido nessa arena. Um bom exemplo de antídoto à altura dos abusos ou desmandos hiperpresidencialistas, de parte do Legislativo, foi a devolução pelo Senado Federal, no último dia 12, da Medida Provisória nº 979 — aquela que autorizava o ministro da Educação a provisoriamente nomear reitores e vice-reitores nas universidades federais durante a pandemia — por considerar seu conteúdo contrário à Constituição.

No que tange à relação Executivo-Judiciário, a intencional ameaça à institucionalidade do STF e de suas decisões não mais pôde ser escondida por parte do Poder Executivo federal. As inúmeras bravatas e incontestável apoio a manifestações antidemocráticas a instituições e liberdades públicas constitucionais, infelizmente uma marca registrada deste governo e de seus apoiadores desde o seu início, levaram a Corte Suprema a instaurar inquérito para apuração de fake news e ataques frontais ao STF, tendo sido a validade e constitucionalidade do inquérito — tão controverso quanto inovador — devidamente reconhecida em decisão do Plenário da Corte, no último dia 18.

Eis aqui outro exemplo de forte antídoto para o exercício da "legítima defesa" da ordem democrática brasileira, agora pelo Judiciário, quando acaba por limitar ou condicionar o exercício de uma liberdade pública — in casu, a liberdade de expressão — em prol da manutenção e preservação, não somente de uma instituição política fundamental da República, mas de toda a sua ordem democrática e constitucional. Essa e outras recentes decisões da Corte Suprema são expressivas de uma jurisprudência constitucional de democracia defensiva ou democracia de resistência, aquela que visa a salvaguardar e impedir que ações violentas ou baseadas em discursos de ódio — perpetrados por grupos extremistas de quaisquer matizes ideológicos — possam ameaçar ou vulnerabilizar a ordem constitucional e democrática de um país.

Por um lado, é com pesar que identificamos que uma jurisprudência constitucional de democracia defensiva provavelmente terá sua produção intensificada a partir de agora no Brasil, principalmente diante deste quadro de forte polarização política, liderada ou estimulada pelo próprio Poder Executivo federal, direta ou indiretamente. De outro lado, importa notar que a democratização de um país não é um fato dado e acabado, ao contrário: trata-se de um processo permanente, o qual haverá de encontrar nas instituições fundamentais e na sociedade civil seus arautos e fronteiras de defesa e de resistência, sobretudo frente aos abusos e desmandos de poderes que se pretendam antidemocráticos.

Partidos políticos, organizações, grupos e cidadãos que desfiram ataques frontais e deliberados à estabilidade da ordem institucional e democrática brasileira, por meio de ações extremistas e por meio de discursos de ódio, agridem o texto constitucional e não podem encontrar abrigo e imunidade no exercício de liberdade de expressão. Ao contrário, apoiados em estratégias de democracia defensiva, Poder Legislativo e Poder Judiciário devem promover — com suporte na opinião pública e sociedade civil — ações claras, fundamentadas e legítimas que, embora condicionadoras ou eventualmente limitadoras do exercício de liberdades públicas, sejam necessárias para frear e impedir que agressões antidemocráticas possam prosperar livremente na ordem constitucional brasileiro.

Finalmente, tão ou mais graves do que essas manifestações antidemocráticas sociais, individuais ou coletivas, são ações perpetradas por agentes políticos e mandatários dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, razão pela qual em hipóteses de abuso ou excesso antidemocrático, a responsabilização desses impõe-se com rigor, por meio de medidas e decisões enérgicas, mas sempre fundamentadas e apoiadas na ordem constitucional.

Chegou a hora de refletirmos a democracia defensiva no Brasil, buscando diques e contenções institucionais por meio do uso de antídotos para o exercício da legítima defesa e consolidação da ordem democrática, mas a partir de balizas e parâmetros fundados na Constituição. Movimentos suprapartidários defensores da democracia importam sempre, e espera-se que este período conturbado seja breve, porém deixando marca indelével e legado inestimável para as próximas gerações. Ética pública e respeito às instituições importam sempre, e que todos possamos compreender que jamais um agente, seja público ou privado, encontra-se acima da ordem constitucional. Buscar a concretização da democracia defensiva significará atualizar e pavimentar o caminho da consolidação democrática do nosso Estado de Direito, sendo um dever de todos os poderes constituídos e de toda a sociedade brasileira. 

 é professor de Direito Administrativo na Universidade de São Paulo (USP) e no IDP (Brasília e São Paulo), árbitro, consultor e advogado especializado em Direito Público.

Revista Consultor Jurídico