OPINIÃO

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Randy Barnett, professor da Georgetown Law School, tuitou recentemente: "Meu telefone inteligente não pode me reconhecer na minha máscara. Eu questiono o quão inteligente ele realmente é" [1]. É certo que o professor americano estava se referindo ao alcance da tecnologia para reconhecimento facial nessa crise pandêmica [2], mas a metáfora que se pode extrair das entrelinhas induz a relevantes reflexões.

A primeira delas é a crise sanitária, responsável por encher a pauta da arena global. Os problemas da saúde pública, que têm convivido com o triste cenário de mortes em grande escala, causa temor e descontrole social. Se os países desenvolvidos têm sofrido com esse descompasso, pode-se avaliar o nível de desorganização que nações subdesenvolvidas têm enfrentado para conter eventual colapso nos seus sistemas internos clínicos e hospitalares.

A segunda é o grande poder da tecnologia. A revolução digital dos novos tempos, que do antigo ao "novo normal" [3] continua a sua evolução, reinventa-se a cada momento, produzindo consequências em vários âmbitos da vida humana. Até na gramática as mudanças são visíveis. Basta lembrar que há bem pouco tempo os dicionários não descreviam o significado de "tuitar".

A terceira e última reflexão deste ensaio se refere às deepfakes. Aqui, sim, a metáfora da máscara faz muito sentido. Um novo pilar da problematização tecnológica, que utiliza a inteligência artificial exatamente para artificializar a natural característica do ser humano, substituindo vozes e rostos com intenções irregulares, qualifica ainda mais a preocupação na contemporaneidade.

Referenciados como exemplos de problemas globais complexos, o coronavírus e a deepfake são paradoxos que vão influenciar uma gama de conflitos a serem analisados pelas Cortes Constitucionais. Assim, diante dessas três balizas argumentativas, ilustram-se quatro semelhanças: a) o uso de uma máscara; b) a célere transmissão global; c) o número indeterminado de atingidos; e d) a desproteção dos direitos fundamentais. Convido o leitor para, em apertada síntese, explicar tais circunstâncias da sociedade globalizada, para, após, demonstrar o papel das Cortes Constitucionais no atual cenário.

Estamos diante de uma instabilidade multinível. O ano que marca a transição da segunda para a terceira década do século XXI está literalmente formado por máscaras. Em um primeiro momento, quem chama a atenção é a máscara física, de prevenção de contágio do mal do século. Em um segundo prisma, o centro das atenções passa a ser o da máscara digital, que não costuma prevenir, e, sim, gerar problemas inéditos.

Em que pesem os sentidos das máscaras serem diferentes, uma evitando doença e outra proliferando desrespeito a direitos, ambas se congregam com a rapidez na veiculação de seus propósitos. A simplicidade na transmissão física, de um lado, e a sofisticação dos avanços tecnológicos, de outro, produzem implicações em nível global. Um mero contato próximo passa a ser arma tão letal quanto uma tela de um telefone inteligente.

O alcance dos seus malefícios não se restringe a uma comunidade local ou regional, mas se interliga com a aldeia global, polinizando situações de instabilidade mundial. Tal fato só é possível em razão do entrelaçamento da sociedade atual, que, na ambivalência que lhe é peculiar, convive com o simples e o complexo, proporcionando desgastes multiníveis e semelhantes. Quem diria que um despretensioso "espirro" e um simples "clique" seriam protagonistas de tantas involuções!

Mas o ciclo do atraso já se findou. Iniciamos uma fase. E para onde vão os direitos fundamentais de todos nós? Como as suas compressões podem ser vividas hoje? A Covid-19 resgata o significado de isolamento social e, com isso, produz um entrincheiramento entre o direito de reunião e a garantia de manifestação, assim como a liberdade de expressão, a imagem, a intimidade e a vida privada das pessoas se mostram vulneráveis com as deepfakes.

Como contingenciar esse panorama dos direitos fundamentais e trazer possibilidades resolutórias para problemas ainda sem solução? Os impasses são novos para o mundo. O ineditismo das problematizações instigam, com respeito às diferenças, um "olhar ao redor" [4]. A análise dos casos em outras jurisdições pode esclarecer o quanto estamos cegos, "cegos que veem, cegos que, vendo, não veem" [5] as muitas possibilidades de, pelo menos, administrar as desproteções aos bens jurídicos.

Essas reflexões se movimentam na jurisdição constitucional de maneira sincrônica ao grau de essencialidade dos próprios direitos fundamentais. Disso resulta a ideia segundo a qual a compressão dos direitos também pode ter uma conotação protetiva para o novo tempo. O ciclo resultante do momento inconstante permite novas práticas constitucionais, fulcradas na integração e no aprimoramento da tutela da fundamentalidade dos bens jurídicos.

Se a compressão dos direitos fundamentais serve para que outros direitos sejam aplicados e usufruídos, acomodando interesses constitucionais na exata medida em que a Constituição, direta ou indiretamente, prevê, e segundo as balizas do caso concreto, então se pode extrair que a sua compressão é, por si só, uma forma de protegê-los.

Nessa esfera mundializada, na qual os paradoxos enfrentam as complexas formas de se apresentarem à sociedade, as Cortes Constitucionais possuem a oportunidade de efetivar maiores integrações, permitindo intercâmbios entre realidades distintas, de maneira a construir relacionamentos estruturais mais coparticipativos, a ponto de entender os pontos de vista utilizados por outros Tribunais Constitucionais na construção do direito.

É importante aprender com o outro e enxergá-lo na sua própria perspectiva. Eis a ponte para um novo normal. O diálogo judicial encontra aqui a oportunidade de mostrar o seu papel. A construção da síntese judicial para problemas complexos, no século XXI, pode ser mais eficiente com a integração das Cortes Constitucionais, atores jurídicos responsáveis pela proteção dos direitos fundamentais na democracia constitucional.

 

[1] BARNETT, Randy. Twitter. 23/5/2020, 12:54 AM. Disponível em: <https://twitter.com/RandyEBarnett/status/1264041879001317378>. Acesso em: 27/5/2020. "My smart phone can’t recognize me in my mask. I question how smart it really is".

[2] GERSHGORN, Dave. OneZero. Disponível em: <https://onezero.medium.com/new-facial-recognition-tech-only-needs-your-eyes-and-eyebrows-9e7dc155cd7f>. Acesso em: 27/5/2020. Já existe tecnologia para que o reconhecimento facial seja feito apenas com os olhos e sobrancelhas.

[3] BARROSO, Luis Roberto. E Se Fizéssemos Diferente? In: O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/opiniao/artigo-se-fizessemos-diferente-24365667>. Acesso em 27/5/2020.

[4] GARLICKI, Lech. Universalism v Regionalism? The role of the supranational judicial dialogue. In: GARCIA ROCA, J; FERNANDEZ, P. A.; SANTOLAYA, P.; CANOSA, R. (eds.). El Diálogo entre los Sistemas Europeo y Americano de Derechos Humanos. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 58.

[5] SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 310. 

 é juiz de Direito no Estado do Maranhão, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) e pesquisador visitante no Centro de Investigación de Derecho Constitucional Peter Häberle, da Universidade de Granada, na Espanha.

Revista Consultor Jurídico