OPINIÃO

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O professor Lênio Streck e o professor Marcelo Cattoni, meus amigos, publicaram aqui uma crítica à entrevista da professora Clarissa Gross na Folha de São Paulo, também minha amiga. Isso coloca-me em condição desconfortável para assumir uma posição no debate, mas o apreço pelo conhecimento exige isso de mim.

O texto que o artigo do professor Streck e do professor Cattoni critica não é um artigo de opinião, como o deles, mas uma entrevista publicada no dia 21 de junho. Em termos puramente retóricos, ambos têm públicos distintos e estão em níveis diferentes de escrita e de capacidade de produzir o convencimento. Acredito que Streck e Cattoni tiveram a oportunidade de escolher cada palavra que utilizaram, o que certamente não foi o caso da professora Gross, respondendo de improviso a perguntas do entrevistador (em uma conversa obviamente informal, como a necessidade de inserção de colchetes pelo redator revela). Talvez, se tivesse tempo para meditar sobre suas respostas, e se pensasse na repercussão que teria, Gross teria escolhido outras palavras. Apesar disso, para aqueles que pesquisam liberdade de expressão, fica claro o que ela quis dizer. Certamente a história da liberdade de expressão nos Estados Unidos não se iniciou na década de 1960, não porque seja possível fornecer outra data para seu início, mas porque ela é uma construção progressiva da história constitucional americana, como mostra Anthony Lewis em seu livro "Freedom for the Thoughts that We Hate" (2007). No entanto, se me perguntassem quando a atual concepção de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa se consolidou nos EUA, eu diria que foi de fato na década de sessenta, mais precisamente em 1964, com New York Times v. Sullivan [1], mais que com qualquer outra decisão anterior da Suprema Corte norte-americana. Esse leading case reelaborou a liberdade de expressão e, sobretudo, de imprensa (indissociáveis na ótica constitucional norte-americana) ao estabelecer como seu limite apenas a real malícia ou falta de diligência de quem se expressa (o que talvez seja o caso em questões como as postagens nas redes sociais conclamando a população a agredir os familiares dos ministros do STF).

Parece-me que a posição da professora Gross é que existe um risco inerente a toda democracia: que, por meio de seus próprios mecanismos, ela chegue a um fim, não de uma, mas de duas formas, extinguindo-se as instituições democráticas por meio da maioria ou impedindo-se alguma minoria de participar do discurso democrático. Para a segunda, a solução passa por impedir a censura e permitir a todos o acesso à arena pública. Para a primeira, o professor Streck e o professor Cattoni parecem sugerir limitar-se o conteúdo de certos discursos. Não me parece que isso seja possível (como também parece pensar a professora Gross).

Certamente a liberdade de expressão não diz respeito apenas ao falante, porque "falante" só existe quando existe "ouvinte". Mas, como aponta o professor Andrej Marmor ("Two Rights o Free Speech", 2018), a liberdade de expressão do ouvinte não é o direito de não ouvir o que não lhe agrada, mas o direito de ser considerado plenamente capaz de distinguir os argumentos corretos dos incorretos, de não ser tutelado acerca do que pode ou não ouvir. A democracia, na medida em que depende estruturalmente da liberdade de expressão, exige que sempre se considere o cidadão como capaz de escolher, entre os vários argumentos, o que é melhor para si e para a sociedade. Em outros termos, como pensa Ronald Dworkin ("Freedom`s Law", 1996), a liberdade de expressão é o que garante a democracia, e não o contrário, ou, dito de outro modo, não é possível dissociar liberdade de expressão de democracia, como se uma fosse serva da outra.

É muito lamentável que o discurso possa produzir algum dano psicológico ou subjetivo em alguém, como aponta Jeremy Waldron ("The Harm in Hate Speech", 2007), mas dificilmente há algum discurso que não produza alguma consequência psicológica em alguém (eu, por exemplo, ficaria magoado se alguém atacasse minha honra). Por isso, avaliar o discurso pelo efeito que produz, e não por sua força intrínseca de produzir convencimento e, assim, de produzir vinculação entre os falantes, seria reconhecer que as palavras possuiriam apenas efeito perlocucionário (um efeito que decorre do discurso), com o que John L. Austin não poderia concordar. Ao contrário, é exatamente porque lhes é permitido falar que aqueles que proferem um discurso se vinculam ilocucionariamente (ou seja, pelo simples ato de falar) à decisão democraticamente produzida. Isso leva a uma necessidade de se reduzir a noção de discurso de ódio àqueles com capacidade de induzir de fato, e direta e iminentemente, à violência física. Só se pode controlar os efeitos perlocucionários do discurso, não seus efeitos ilocucionários.  Creio que, quando a professora Clarissa Gross se referiu à capacidade de o discurso induzir à ação como único limite, ela estava se referindo a uma vasta tradição que passa por John Locke, John Stuart Mill, Oliver Holmes, Jr., Louis Brandeis, Billing Learned Hand, Alexander Meiklejohn, C. Edwin Baker, Stanley Fish e Ronald Dworkin, mas também pelos leading cases norte-americanos Brandenburg v. Ohio [2]National Socialist Party of America v. Village of Skokie [3]R. A. V. v. City of St. Paul [4] e, sobretudo, New York Times, Co. v. Sullivan. Ao contrário de desprezar a história da liberdade de expressão, a entrevista da professora Clarissa se remete a toda ela, e à conclusão de muitos free speech scholars e à opinião da Suprema Corte norte-americana de que não é possível se indicar conteúdos que materialmente possam ser excluídos do debate democrático anteriormente à sua ocorrência. Para que isso fosse possível, precisaríamos ter um acesso imediato, não discursivo, à verdade, o que Streck e Cattoni negam em seu artigo.

É claro que isso coloca em risco a democracia. Podemos sempre extingui-la, paradoxalmente, por meios democráticos. Não se trata de uma contradição performativa. A contradição performativa diz respeito a algo que não pode (e não a algo que não deveria) ser feito, no sentido de ser impossível se realizar (creio que muito da divergência entre Streck e Cattoni e Gross está na ambiguidade do verbo poder na língua portuguesa, ao contrário do que ocorre em inglês ou em alemão: se a democracia pode extinguir o STF, o Congresso e outras instituições democráticas; para ilustrar, tenho certeza que Gross concordaria com a seguinte frase de Streck e Cattoni: "podemos dizer e escrever o que quisermos, mas (...) também podemos ser responsabilizados e cobrados por tudo o que expressarmos" — grifo do autor). Uma contradição performativa ocorre, por exemplo, quando se afirma (um discurso) que deveriam ser excluídos todos os discursos que excluem outros discursos (e, então, este discurso também está excluído).

Para se impedir legitimamente a ocorrência de discursos que ameacem as instituições, seria preciso reconhecer que alguém teria um acesso privilegiado ao que é o correto, e dar a essa pessoa a capacidade de revelar-nos o que é o correto. Mas, nesse caso, já estaríamos na aristocracia dos sábios de Platão (em seu diálogo "A república"), e portanto fora da democracia.

Mesmo sem pôr fim à democracia, o discurso ainda pode configurar-se em um abuso por si só. Mas, como dizia James Madison (retomado na opinion do juiz Willian J. Brennan em Time Inc v. Hill), alguma medida de abuso é inseparável do uso apropriado de qualquer coisa. De novo, a questão envolvendo o inquérito das fake news e a incitação ao crime contra os familiares dos ministros deve ser avaliada em ternos de sua capacidade de induzir performativamente à ação (o que talvez seja o caso aqui), e não por seu conteúdo (que só pode ser avaliado a posteriori no próprio discurso que as fake news ensejam). É por isso que pessoas tão distintas como Felipe Neto e Eugênio Bucci (ambos na Folha de São Paulo de 5 de junho) desconfiam da possibilidade de uma lei abolir as fake news. No máximo, o que podemos ter é uma regulação de sua forma (por exemplo, criminalizar o uso de robôs para reproduzi-las), mas o conteúdo só pode ser avaliado a posteriori.

No fundo, creio que haja mais concordâncias que discordâncias entre Gross (e mim) e Streck e Cattoni Apesar disso, estamos interessados nas discordâncias, e o cerne da questão parece ser que Gross e eu acreditamos que não se pode limitar o discurso previamente por causa de seu conteúdo, enquanto Streck e Cattoni parecem acreditar que o discurso sempre pode ser limitado. Creio que todos nós, porém, concordamos que a democracia corre risco. Mas as alternativas a esse risco não são destituídas de risco. A democracia não pode ser protegida por um pedaço de papel ou por 11 pessoas, mas apenas por nós, o povo. Esse é o preço que temos que pagar por vivermos em uma democracia.

P.S.: Algumas ideias neste artigo foram sugeridas pelos membros do Núcleo de Pesquisa Justiça e Democracia do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas, embora eu seja inteiramente responsável por sua incorporação ao texto

 

[1] Decisão de 1964 cuja opinion determina que notícias falsas sobre pessoas públicas, desde que não maliciosas (malicious) ou descuidadas (reckless), no sentido de falta de diligência, são protegidas pela constituição norte-americana. Com isso se garante definitivamente o direito de se criticar o governo.

[2] Decisão de1969 que estabelece o Brandenburg Test, um teste qualificar o discurso como discurso de ódio (hate speech). Para tanto, o discurso deve 1) incitar a produzir iminentemente um ato contra o direito, com 2) probabilidade de levar alguém a praticar a ação.

[3] Decisão de 1977 que determina que uma decisão judicial que restrinja a liberdade de expressão de alguém deve ser reanalisada imediatamente, sem demora.

[4] Decisão de 1992 que determina manifestações que não provoquem violência ou insulto não devem ser impedidas.

Marcelo Campos Galuppo é professor da PUC-Minas e da UFMG, visiting scholar da University of Baltimore School of Law, presidente da Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito (Abrafi), vice-presidente da Internationale Vereinigung für Rechts- und Sozialphilosophie (IVR), ex-presidente do Conselho Nacional de Pesquisa e de Pós-graduação em Direito (Conpedi) e doutor em Filosofia do Direito pela UFMG.

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