Carga tributária elevada é mito. Reduzir pobreza é imperativo moral.

A pandemia escancarou as mazelas sociais brasileiras. Já eram fraturas expostas, mas, naturalizadas e invisíveis para muitos, permaneciam nos subterrâneos da sociedade. O colapso geral da renda causada pela paralisação abrupta da atividade econômica trouxe à tona o gigantesco exército de vulneráveis que sobrevivia em situação precária.

Na situação extraordinária da pandemia, enquanto o governo e seu ministro da Economia vacilavam, o Congresso, puxado pela Câmara dos Deputados, aprovou um auxílio de emergência temporário, no valor de R$ 600, com alguns critérios de seleção de beneficiários. Cálculos mais atualizados da IFI (Instituição Fiscal Independente), órgão vinculado ao Senado Federal, apontam 80 milhões de pessoas beneficiadas, a um custo total de R$ 155 bilhões.

O auxílio funcionou, apesar da demora em cadastrar as pessoas, das falhas de cadastro que, de um lado, deixaram de ser elegíveis e, de outro, acolheram inscrição de quem não teria direito, inclusive militares e pessoas de classe média, e dos atrasos na liberação dos recursos. Funcionou não só para mitigar as dificuldades de quem precisava ser atendido, mas também para, segundo pesquisas, ampliar a aprovação do governo e do presidente Bolsonaro entre os beneficiários.

Tudo junto e misturado resultou na quase certeza de que, no mínimo, o auxílio será prorrogado. E aí começaram os problemas. O ministro Paulo Guedes quer prorrogá-lo por apenas 2 meses e reduzir o valor pelo menos para a metade. Há ainda quem aceite que o auxílio seja estendido até o fim do ano, quando, presumem seus defensores, a pandemia já estaria sob controle.

Mas a experiência desses primeiros 3 meses, a perspectiva de melhoria e ampliação do Cadastro Único, que reúne e organiza informações e localização de pobres e muito pobres, sob a pressão do momento, e os evidentes bons resultados do auxílio tiveram o condão de abrir uma avenida para o debate da ideia de uma renda básica permanente. Diversas propostas subiram na mesa e, com elas, logicamente, as questões relativas a seus custos e formas de financiamento.

Com a rapidez imposta pelos novos e dramáticos tempos, foram surgindo respostas para essas questões. Está claro que programas de renda básica permanente têm custos e que esses custos são maiores ou menores dependendo dos limites mais ou menos abertos para determinar o contingente de elegíveis.

O leque de alternativas já conhecidas também é amplo. Vai de uma renda básica para todos os brasileiros, que custaria por ano a enormidade de 15% do PIB, até um programa focado em crianças e adolescentes, estrato em que se encontram 70% dos pobres brasileiros, com custo mais moderado de 1% a 1,5% do PIB ao ano.

Financiar qualquer um desses programas, contudo, não dispensará um aumento de carga tributária. Diante das restrições fiscais existentes, sem pressionar em excesso a dívida pública, não será possível bancar uma renda básica permanente sem aumento da receita tributária.

Cortes de outras despesas, incorporação ou eliminação de programas existentes que possam ficar sobrepostos, recalibragem de subsídios, melhora da arrecadação propiciada pela maior circulação de renda, tudo isso pode ajudar. Mas seria insuficiente.

Pode parecer surpreendente, mas o fato é que a urgência do momento parece ter contribuído para acelerar a busca de um consenso em relação a esse ponto clássico da resistência brasileira a distribuir renda. Como ficou difícil defender a desnecessidade de uma atuação afirmativa para eliminar a pobreza absoluta, mitigar a pobreza e reduzir as inacreditáveis desigualdades de renda (e oportunidades), restaram poucos espaços para evitar discutir alternativas capazes de reorganizar o sistema tributário numa direção mais progressiva.

É hora, portanto, de jogar luzes sobre o mito da elevada carga tributária brasileira. A começar da decomposição do conjunto agregado, que serve para escamotear a verdade de uma carga tributária média realmente mais alta do que nos países de renda per capita semelhante, mas concentrada nos que menos podem contribuir. Aquela história de que os brasileiros trabalham 4 meses do ano só para pagar impostos é uma balela retórica. Se for ver quem paga imposto mesmo no Brasil, ficará claro que tem quem trabalhe mais tempo do que isso, e, em geral, é gente menos rica. E tem quem trabalhe bem menos, o grosso no grupo de maiores posses.

É notório que o sistema tributário brasileiro taxa mais quem pode menos, primeiro por tributar mais o consumo do que a renda e o patrimônio, e depois por isentar, subsidiar ou permitir abatimentos para certos tipos de rendimentos e riqueza. Difícil acreditar, mas a verdade é que, no Brasil, quem ganha até 2 salários mínimos é taxado no equivalente à metade de sua renda, enquanto quem ganha mais de 30 salários mínimos é tributado no equivalente a 1/4 de seus rendimentos.

O total de gastos tributários previstos para 2020 dá uma ideia de que a carga de impostos não é tão alta para muitos detentores das maiores rendas. São R$ 330 bilhões, o equivalente a 4,34% do PIB e a 1/5 da arrecadação federal. Se nem todas essas renúncias tributárias são elimináveis e existam casos que cumpram a função para a qual foram previstos, uma grande parte é desnecessária ou não passa de desperdício, não resultando no pretendido.

O caso mais notório é o do Simples, sistema que reduz substancialmente a carga de impostos de empresas pequenas e médias, sob o pretenso objetivo de reduzir a burocracia do pagamento de tributos e, assim, incentivar a formalização de empreendimentos. A um custo anual (previsão para 2020) de R$ 83,2 bilhões, equivalente a 1% do PIB, 5,5% do total da arrecadação federal e 1/4 de todas as renúncias tributárias, o Simples é um ônus pago pela sociedade para gerar ineficiências.

O desenho do Simples desestimula o aumento do porte das empresas, e, ao contrário, incentiva a pulverização de negócios, visto que a partir de um faturamento anual acima de R$ 4,8 milhões, a empresa perde o benefício. O Simples também dá passagem a uma avalanche de “PJs”, pessoas físicas que abrem empresas sem funcionários apenas para ter acesso ao benefício tributário, vestindo a fantasia de pessoas jurídicas. Se fossem empregados, provavelmente pagariam imposto de renda à alíquota máxima de 27,5%, mas como PJs, optantes pelo Simples, recolhem, pelo mesmo tipo de trabalho, de 4% a 10% dos rendimentos contabilizados como faturamento.

Isenção de lucros e dividendos, abatimento de despesas pessoais e de dependentes, assim como outros subsídios no IR da pessoa física, somam, na previsão para 2020, um total de R$ 56,7 bilhões em renúncias fiscais. Estudos recentes mostram que com a redução de renúncias no IR da pessoa física, o aumento da taxação nas faixas mais altas de renda, e a revisão na tributação de patrimônio permitiriam arrecadar 1,5% do PIB por ano, cerca de R$ 100 bilhões, a mais do que é recolhido.

Nos últimos dias, sentindo a onda irresistível em favor de uma ampliação dos programas sociais —e de olho nos possíveis ganhos eleitorais que podem propiciar— o governo, pela palavra de Paulo Guedes, achou por bem jogar uma cortina de fumaça no ambiente. O ministro acionou seu incansável departamento de marketing e anunciou vagos “estudos” para a criação de um programa de renda básica, com o nome de Renda Brasil, que substituiria o Bolsa Família e outros.

Pelas histórias pregressas, pouco provável que essa conversa avance. Felizmente, os debates sobre uma renda básica, não concorrente com o Bolsa Família, que elimine a extrema pobreza, ataque a vergonhosa pobreza e as chocantes desigualdades brasileiras, amadurece com rapidez. Eis uma chance que não deveria ser desperdiçada, ainda que seja necessário aumentar a tributação sobre quem mais pode e até hoje menos contribui.

Nunca é demais repetir: reduzir a pobreza e as desigualdades não é apenas um imperativo moral. É um caminho eficaz para elevar a produtividade e impulsionar um crescimento mais vigoroso e, principalmente, mais sustentável.

Fonte: Poder360