OPINIÃO

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A pandemia da Covid-19 não é a primeira da história da humanidade, mas há um fator inédito que será fundamental para a quantidade de infectados e de mortos que será contabilizada ao final: a influência das redes sociais. Se por um lado ferramentas como Facebook, Instagram, YouTube, Twitter e Whatsapp podem ser úteis para que governos, entidades internacionais, imprensa e pesquisadores possam informar a sociedade sobre o avanço da doença e sobre as medidas que devem ser tomadas para evitar o contágio, por outro essas mesmas plataformas também são utilizadas como meio fértil para disseminação de notícias falsas ou distorcidas.

Se em situações ordinárias esse fato já é preocupante, numa pandemia trata-se de algo alarmante, que pode causar milhões de mortes ao redor do mundo. As gigantes de tecnologia que são donas dessas plataformas costumam ser bastante cautelosas quanto à exclusão de conteúdo e de perfis, até porque estão sediadas nos Estados Unidos da América, país com uma tradição bastante protetiva da liberdade de expressão.

Essa abordagem bastante liberal está subjacente a decisões de diminuir o alcance de determinadas publicações no Facebook ou retirar a "monetização" de vídeos no YouTube, por exemplo, mas excluir o conteúdo apenas em casos muito extremos.

Sendo assim, é muito fácil encontrar nas redes sociais perfis que divulgam teorias de que a Terra é plana, de que vacinas podem causar doenças em crianças ou de que o aquecimento global causado pela atividade humana é uma invenção de globalistas.

Essa permissividade com conteúdos claramente falsos, que se iniciou nas redes sociais, também chegou à mídia tradicional. Mesmo que a esmagadora maioria dos cientistas afirme que o aquecimento global é causado por atividades humanas, é normal assistir a debates em rádios, canais de TV e jornais que colocam em equivalência uma pessoa que defende a posição embasada pela ciência e outra que defende a posição contrária. Claro, muitas vezes esse segundo lado do debate busca mascarar seus argumentos anticientíficos com base em um outro estudo realizado por um pesquisador irrelevante. Assim, semeia-se a dúvida: se não é possível ter certeza de que esse problema é causado pela atividade humana, então não há motivos para preocupação.

Essa mesma tática de semeação da dúvida a partir de "achismos" está sendo empregada por grupos negacionistas nos últimos dias. Apesar de a Organização Mundial da Saúde (OMS) e de quase todos os países do mundo que estão sofrendo os efeitos da pandemia recomendarem medidas radicais de isolamento social, fundamentando-se em estudos científicos, no Brasil há uma onda de desinformação que sustenta que todos devem voltar à vida normal com a maior brevidade possível.

Para fundamentar essa posição anticientífica, vale tudo: afirmação de que o país está próximo de encontrar a cura para a doença; compartilhamento de notícias e vídeos antigos; disseminação de teorias da conspiração de que o vírus teria sido criado propositalmente pelo governo chinês para aumentar sua influência sobre o mundo. E, claro, para completar o cenário, ignoram-se as notícias que mostram que a orientação de voltar à vida normal apenas aumenta o número de mortes, como ocorreu no Reino Unido e em Milão, que mudaram a orientação após a explosão do número de casos.

Nesse cenário, as gigantes do Vale do Silício não podem se omitir. Deve haver um controle rigoroso para que conteúdos negacionistas sejam excluídos com celeridade. Perfis que violarem reiteradamente essa regra devem ser excluídos, sejam eles pertencentes a reis, príncipes herdeiros ou bobos da corte.

Nessas primeiras semanas de quarentena, algumas dessas empresas vêm cumprindo um papel importante no combate à desinformação. Após divulgar que não toleraria informações falsas sobre a Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro viu algumas de suas publicações no Twitter, no Instagram e no Facebook serem apagadas. O Twitter também excluiu publicações do senador Flávio Bolsonaro, do ministro Ricardo Salles e de Silas Malafaia.

A exclusão dessas publicações se fundamenta na tradição jurídica estadunidense sobre liberdade de expressão. Em 1919, o juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Oliver Wendell Holmes fez referência a uma metáfora para explicar os limites que devem ser colocados à liberdade de expressão. No célebre caso "Schenk v. United States", Holmes afirmou que esse direito não poderia proteger uma pessoa que gritasse falsamente "fogo!" em um teatro lotado, causando pânico. No ano de 1969, no caso "Brandenburg v. Ohio", a Suprema Corte criou o teste da "incitação à ação ilegal iminente", segundo o qual uma expressão ou manifestação pode ser restringida apenas se houver intenção de incitar uma ação ilegal iminente e se houver risco real de essa ação ser efetivada.

Conforme explicado acima, apesar da cautela no tratamento às restrições à liberdade de expressão, há precedentes nos últimos anos de medidas adotadas para enfrentar riscos reais à vida, à saúde e à integridade física das pessoas. Em 2018, o Whatsapp precisou limitar o número de compartilhamentos de mensagens em função de uma série de linchamentos que ocorriam na Índia em função de boatos; no mesmo ano, em Myanmar e em Sri Lanka, o Facebook decidiu excluir publicações que estimulavam agressões a minorias étnicas. Durante uma pandemia tão grave como esta que o mundo enfrenta em 2020, informações erradas sobre os riscos que a doença apresenta e sobre formas de tratá-la acarretam risco real de danos à vida de todos os cidadãos.

A remoção de publicações por parte de empresas privadas causa controvérsia em função da ausência de legitimidade para decidir sobre o que as pessoas podem ou não publicar. De fato, esse risco existe, mas não há outra forma de combater o risco causado por campanhas de desinformação disseminadas por redes sociais que não seja a exclusão imediata das publicações por parte das próprias empresas. Cabe à sociedade exigir que as redes sociais apresentem critérios objetivos e transparentes, que comuniquem a cada usuário os fundamentos da exclusão de uma publicação ou de suspensão de perfil e que forneçam um mecanismo interno por meio do qual o usuário pode pedir a revisão dessas decisões. Para qualquer usuário que se sentir prejudicado indevidamente, cabe o recurso ao Poder Judiciário [1].

Portanto, há limites que não devem ser ultrapassados. Se a liberdade de expressão for utilizada para disseminar desinformação capaz de levar a uma explosão do número de infectados e de mortos por uma doença, não pode haver tolerância por parte das redes sociais. Retomando a metáfora do incêndio mencionada pelo Juiz Holmes, na pandemia da Covid-19 há, de certa forma, uma inversão: existe o incêndio, mas há aqueles que insistem em negar que o fogo possa causar danos às pessoas. Obviamente, em uma situação de pandemia, até mesmo essas grandes empresas enfrentam uma diminuição do número de moderadores. Porém, elas devem deixar centrar os maiores esforços possíveis para enfrentar essa onda de desinformação. Caso contrário, as redes sociais servirão como combustível para aumentar ainda mais o incêndio. Ao mesmo tempo, não devem se descuidar da necessidade de se fundamentar em critérios objetivos e transparentes ao restringir um direito fundamental como a liberdade de expressão.

 

[1] Um documento que deve servir de guia para a exclusão de publicações pelas redes sociais é fruto de um grupo que reuniu acadêmicos e instituições sem fins lucrativos, que criaram os "Princípios de Santa Clara". Disponível em < https://santaclaraprinciples.org/open-letter/spanish/>. Acesso em 02 de abril de 2020.

 é advogado do escritório Frullani Lopes Advogados, especialista em Direito e Tecnologia da Informação pela Escola Politécnica da USP, graduado pela Faculdade de Direito da USP e mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela mesma instituição.

Revista Consultor Jurídico