OPINIÃO

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Um advogado trabalhista consulta um advogado criminalista questionando se haveria crime por parte de um empresário específico que, utilizando-se da situação do coronavírus, está tomando decisões com impactos nos direitos de seus funcionários. Frisa o advogado trabalhista que se trata de empresa estável e com capacidade financeira, além de estar parcialmente funcionando.

É um tema de grande complexidade. A capacidade financeira de uma empresa depende, e muito, de prognósticos e projeções de curto, médio e longo prazos. A situação vivida em virtude da pandemia ainda não permite dizer como será afetado o empresariado, nem sequer quais setores serão os mais prejudicados. No entanto, a situação de quarentena e de medidas que restringem o funcionamento de determinados setores pode atingir o empresário em todos os cenários econômicos (curto, médio e longo prazos). Essa é uma ressalva necessária, pois que torna difícil dizer se aquilo que se entende por estável e por capacidade financeira em tempos de mercado normal seguirá da mesma forma, ainda que com certo abalo, neste novo cenário financeiro global impactado por essa pandemia.

Vencido esse debate, surgem duas situações: a primeira, se o empresário realmente estaria tomando medidas drásticas necessárias para a sobrevivência do negócio. E a segunda, se realmente se tratava de uma situação de oportunismo (no seu sentido pejorativo). A partir desse momento, surge um segundo questionamento: se houve o oportunismo, este se deu mediante simples descumprimento da legislação trabalhista (o que ficaria somente na esfera da Justiça do Trabalho) ou, para alcançar o objetivo, fez-se uso de um meio ardil, engenhoso e artificial pelo qual se induziu a erro o trabalhador — momento em que poderá se começar a falar na Justiça Penal.

O Código Penal brasileiro regulamenta, em título próprio, os crimes contra a organização do trabalho, e aborda diversas formas típicas, entre elas o ilícito penal de frustração de direito assegurado por lei trabalhista.

Art. 203  Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho. Pena — detenção de um ano a dois anos e multa, além da pena correspondente à violência.

Trata-se de matéria penal complexa, em que a aplicação não é automática pela simples demissão sem recolhimento de verbas rescisórias, ou imposição vertical da redução do salário. Isso, pois, inexistindo vestígios de emprego de fraude ou violência contra os trabalhadores para frustrar direito assegurado pelas leis trabalhistas, não há de se falar em cometimento do crime tipificado no artigo 203 do Código Penal (APELAÇÃO CRIMINAL N. 0000268-91.2012.4.01.3905/PA, TRF1, Relator Desembargador Federal Ney Bello, D.O. 30/01/2020).

O ato de frustrar um direito assegurado pela legislação trabalhista, por si só, é matéria corrente nas cortes especializadas, sendo, infelizmente, uma realidade presente (e muitas vezes tida como normal) nas relações trabalhistas. O termo é facilmente compreendido, pois se refere ao não corresponder à expectativa, que se traduz no impedimento da realização de um direito que era garantido ao trabalhador.

Contudo, o interesse penal somente nasce quando há subsunção ao núcleo do tipo penal, que não está somente na frustração do direito assegurado pela legislação do trabalho, mas que esta se dê mediante fraude ou violência.

A competência para o julgamento poderá se dar pela Justiça Federal ou pela Estadual, a depender do caso. Cumpre à Justiça Federal processar e julgar "os crimes contra a organização do trabalho" (CR, artigo 109, inciso VI) quando "houver ofensa ao sistema de órgãos e institutos destinados a preservar, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores" (EDcl no AgRg no CC 129.181/MG, Rel. Ministro Jorge Mussi, Terceira Seção, julgado em 25/02/2015; Súmula 115/TFR).

O Ministério Público Federal recentemente tornou público o Enunciado 83, da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do órgão em matéria criminal, nesse mesmo sentido:

"Não é de atribuição do Ministério Público Federal a persecução penal do crime de frustração de direito assegurado por lei trabalhista, previsto no artigo 203 do Código Penal, se, após diligências, restar demonstrado apenas lesão a um restrito número de trabalhadores. Aprovado na 176ª Sessão de Coordenação, de 10/02/2020".

Com isso, não será de competência da Justiça Federal processar e julgar causa decorrente de relação de trabalho relacionada à violação de direitos individuais, ainda que pertencentes a um grupo determinado de pessoas, cabendo, subsidiariamente, à Justiça Estadual.

Em conclusão sobre o questionamento: haveria crime, por parte de um empresário específico que, utilizando-se da situação do coronavírus, está tomando decisões com impactos nos direitos de seus funcionários? A resposta é que é possível, sim, haver crime, desde que o argumento da pandemia seja um meio ardiloso, uma fraude que não corresponda à realidade, isto é, um oportunismo com a finalidade de induzir a erro o funcionário para frustrar direitos trabalhistas que seriam imediatos.

Por fim, cabe sempre advertir que o tipo penal exige a consciência e a vontade, isto é, o dolo, não sendo perpetrado na forma culposa, ainda que não se exija elemento subjetivo específico. Para além, no caso da pandemia do coronavírus deve ser verificada a conduta específica, pois que a inexigibilidade de conduta diversa é realidade para muitos empresários, inclusive amparada pela edição de Medidas Provisórias, ao exemplo da de número 927, que previa a suspensão de contratos de trabalho por até quatro meses, mas não indicava como trabalhadores afetados seriam compensados, o que resultou na revogação desse trecho. E, atualmente, da MP nº 936, que institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda. 

 é advogado, professor de Direito Processual Penal, mestre em Ciências Criminais pela PUCRS e especialista em Direito Empresarial.

Caio Rangel é advogado e professor de Direito Penal.

Revista Consultor Jurídico